volume III
O Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Ao sair do quartel, eu dava uma volta e depois, aguardando o momento em que ia almoçar diariamente com Saint-Loup, no hotel em que ele e seus amigos tinham se hospedado, dirigia-me para o meu, tão logo o sol se punha, a fim de ter duas horas para ler e descansar. Na praça, o entardecer pousava, nos telhados do castelo, nuvenzinhas rosadas que combinavam com a cor dos tijolos e completavam a harmonização suavizando-os com um reflexo. Tamanha corrente de vida me afluía aos nervos que nenhum dos meus movimentos poderia esgotá-la; cada um dos meus passos, depois de ter tocado uma laje da praça, ressaltava, parecia-me ter nos calcanhares as asas de Mercúrio. Uma das fontes estava cheia de um clarão vermelho e na outra o luar tornava opalina a cor da água. Entre elas, meninos brincavam, soltavam gritos, descreviam círculos, obedecendo a alguma necessidade da hora, à maneira dos gaviões ou dos morcegos. Ao lado do hotel, os antigos palácios nacionais e a estufa de Luís XVI, nos quais se encontravam agora a Caixa Econômica e o regimento, estavam iluminados de dentro pelas douradas e pálidas lâmpadas do gás já aceso, que, no dia claro ainda, convinha àquelas amplas e altas janelas do século XVIII, onde ainda não se apagara o último reflexo do poente, como conviria a uma cabeça avivada em tons de vermelho um adereço de concha loura, e me convencia a ir ao encontro de meu fogo e de minha lâmpada que, na fachada do hotel em que eu morava, lutava sozinha contra o crepúsculo e pela qual eu regressava à casa, antes que fosse inteiramente noite, com prazer, como se faz pelo lanche. Conservava, dentro de casa, a mesma plenitude de sensação que experimentava lá fora. Ela curvava de tal modo a aparência das superfícies que nos parecem muitas vezes planas e vazias, a luz amarela do fogo, o espesso papel azul do céu sobre o qual a tardinha riscara, como um colegial, garatujas a lápis cor-de-rosa, a toalha de desenho singular da mesa redonda, sobre a qual uma resma de papel de escola e um tinteiro me esperavam com um romance de Bergotte, que desde então essas coisas continuaram a me parecer ricas de toda uma espécie particular de existência que julgo poderia extrair delas se me fosse dado encontrá-las de novo. Pensava com alegria nesse quartel que acabara de deixar e cujo cata-vento girava em todos os sentidos. Como um mergulhador respirando por um tubo que sobe até a superfície das águas, era para mim como estar de novo ligado a uma vida saudável, ao ar livre, ter aquele quartel como ponto de contato, aquele alto observatório que dominava a campina trilhada de canais de esmalte verde, e a cujos barracões e edifícios eu contava, graças a um precioso privilégio que esperava fosse duradouro, poder ir quando quisesse, certo de sempre ser bem recebido.
Às sete horas eu me vestia e voltava a sair para jantar com Saint-Loup no hotel em que ele
se hospedava. Gostava de ir a pé. A escuridão era profunda, e desde o terceiro dia começou a
soprar, mal baixava a noite, um vento gélido que parecia anunciar a neve. Enquanto caminhava,
parece que não deixava de pensar na Sra. de Guermantes; era só para tentar me sentir próximo
dela que viera à guarnição de Robert. Mas uma recordação e um desgosto são coisas móveis. Há
dias em que se vão para tão longe que mal os avistamos e os julgamos desaparecidos. Então
prestamos atenção em outras coisas. E as ruas daquela cidade ainda não eram para mim, como
nos locais onde temos o hábito de viver, simples meio de ir de um ponto para outro. A vida que
levavam os habitantes daquele mundo desconhecido me parecia dever ser maravilhosa, e às
vezes os vidros iluminados de alguma residência me mantinham longo tempo imóvel na noite,
pondo diante de meus olhos cenas verídicas e misteriosas de existências em que eu jamais
penetraria. Aqui o gênio do fogo me mostrava, num quadro purpurino, a taverna de um
comerciante de castanhas onde dois suboficiais, com os cinturões colocados nas cadeiras,
jogavam cartas sem adivinhar que um mágico os fazia surgir da noite, como numa aparição
teatral, e os evocava tais como eram efetivamente, naquele instante mesmo, aos olhos de um
passante parado que eles não podiam ver. Em um pequeno armazém de bricabraque, uma vela
meio consumida, projetando seu clarão avermelhado sobre uma gravura, transformava-a em
sanguínea, enquanto, lutando contra a sombra, a claridade do lampião amorenava um pedaço de
couro, esmaltava um punhal de faiscantes lantejoulas, em quadros que não eram mais que cópias
medíocres depositava uma douração preciosa como a pátina do passado ou o verniz de um
mestre, e por fim fazia daquele casebre, onde só havia imitações e ninharias, um inestimável
Rembrandt. Às vezes eu erguia os olhos para um amplo apartamento antigo, cujos postigos ainda
não se achavam cerrados e onde homens e mulheres anfíbios, adaptando-se de novo cada noite
a viver em um outro elemento que não o dia, nadavam lentamente no espesso licor que, ao cair
da noite, surge incessantemente do reservatório das lâmpadas para encher os quadros até os
bordos de suas paredes de pedra e de vidro, e em cujo seio eles propagam, deslocando seus
corpos, redemoinhos suntuosos e dourados. Retomava o meu caminho, e muitas vezes, na rua
negra que passa diante da catedral, como antigamente no caminho de Méséglise, a força do meu
desejo me fazia parar; parecia-me que uma mulher iria surgir para satisfazê-lo; se, na escuridão,
sentia de súbito passar um vestido, a própria violência do prazer que experimentava impedia-me
de crer que aquele roçar fosse casual, e tentava cerrar em meus braços uma passante assustada.
Essa ruazinha gótica guardava para mim algo tão real que, se ali pudesse agarrar e possuir uma
mulher, me teria sido impossível não acreditar que se tratasse da antiga volúpia que nos iria unir,
mesmo que essa mulher não passasse de uma simples profissional ali postada todas as noites,
mas à qual o inverno, a nostalgia, a escuridão e a Idade Média teriam emprestado o seu mistério.
Eu pensava no futuro: tentar esquecer a Sra. de Guermantes me parecia horrível, porém razoável,
e, pela primeira vez, possível, talvez fácil. No sossego absoluto daquele bairro, ouvia à minha
frente palavras e risos que deviam provir dos que passeavam meio ébrios e voltavam para casa.
Parava para vê-los, olhava para o lado de onde escutava o barulho. Mas era obrigado a esperar
muito tempo, pois o silêncio circundante era tão profundo que deixava fluir com força e nitidez
extremas os rumores ainda longínquos. Enfim chegavam os passeantes, não à minha frente,
como julgara, mas bem atrás. Ou porque o cruzamento das ruas e a interposição das casas
tivessem causado por refração aquele erro de acústica, ou porque é difícil situar um som cujo local
não é conhecido, eu me havia enganado não só quanto à distância, mas também quanto à
direção.
O vento aumentava. Era todo eriçado e granuloso de uma aproximação de neve; alcancei
a rua principal e saltei para o bondezinho de cuja plataforma um oficial, que parecia não vê-los,
respondia às continências dos soldados broncos que passavam pela calçada com o rosto
vermelho de frio; e faziam pensar, naquela cidade que o brusco salto do outono nesse princípio de
inverno parecia ter arrastado mais para o norte, nas faces rubicundas que Breughel confere a
seus alegres camponeses, farristas e gelados.
E, justamente no hotel em que eu tinha encontro marcado com Saint-Loup e seus amigos e
para onde as festas que começavam atraíam muita gente da vizinhança e estranhos, havia,
enquanto eu atravessava diretamente o pátio que dava para cozinhas avermelhadas onde
giravam frangos no espeto, onde se assavam porcos, onde lagostas ainda vivas eram atiradas
naquilo que o hoteleiro chamava de "fogo eterno", uma grande afluência (digna de algum
"Recenseamento em Belém", como os que eram pintados pelos velhos mestres flamengos) de
pessoas que chegavam e se reuniam em grupos no pátio, indagando ao patrão ou a um de seus
ajudantes (que lhes indicava um alojamento na cidade quando não os achava de boa cara) onde
poderiam ter quarto e comida, enquanto um garçom passava segurando pelo pescoço uma ave
que se debatia. E, na grande sala de jantar que atravessei no primeiro dia, antes de alcançar a
pequena peça onde me esperava o meu amigo, era igualmente numa refeição do Evangelho,
figurado com a ingenuidade dos tempos de outrora e o exagero da Flandres, que fazia pensar o
número de peixes, de frangas cevadas, de tetrazes, de galinholas, de pombos, trazidos,
enfeitados e fumegantes, por garçons sem fôlego que deslizavam pelo chão encerado para ir mais
depressa e depô-los sobre o imenso consolo, onde logo eram trinchados, mas onde pois muitas
das refeições já estavam acabando quando eu chegara ficavam empilhados inutilmente; como se
sua profusão e a precipitação daqueles que os traziam respondessem, muito mais que aos
pedidos dos fregueses, ao respeito ao texto sagrado escrupulosamente seguido em sua letra, mas
ingenuamente ilustrado por detalhes reais tomados de empréstimo à vida local, e à preocupação
estética e religiosa de mostrar aos olhos o brilho da festa pela profusão de avitualhas e pela
pressa dos empregados. Um dentre eles, na extremidade da sala, sonhava, imóvel, ao lado de um
guarda-louças; e, para indagar àquele, que parecia ser o único com tranqüilidade suficiente para
me responder, em que peça fora preparada a nossa mesa, avançando por entre os fogareiros
acesos aqui e ali, a fim de impedir que se resfriassem os pratos dos retardatários o que não
impedia que no centro da sala estivessem as sobremesas erguidas nas mãos de um enorme
boneco a que às vezes serviam de suporte as asas de um pato de cristal, ao que parecia, mas na
realidade feito de gelo, cinzelado diariamente a ferro em brasa por um cozinheiro escultor, no
melhor gosto flamengo -, eu seguia reto, arriscando-me a ser derrubado pelos outros, na direção
desse empregado, no qual julguei reconhecer um personagem tradicional nesses temas sagrados
e de quem reproduzia escrupulosamente o rosto achatado, ingênuo e mal traçado, a expressão
sonhadora, já meio presciente do milagre de uma presença divina de que os outros ainda não
haviam suspeitado. Acrescentemos que, em virtude sem dúvida das festas próximas, a essa
figuração se juntou um suplemento celeste inteiramente recrutado dentre um pessoal de
querubins e serafins. Um jovem anjo músico, de louros cabelos emoldurando um rosto de
quatorze anos, na verdade não tocava nenhum instrumento, mas devaneava diante de um gongo
ou de uma pilha de pratos, ao passo que anjos menos infantis se apressavam através dos
espaços desmesurados da sala, agitando o ar com o frêmito incessante dos guardanapos que
desciam ao longo do corpo em forma de asas pontiagudas de primitivos. Fugindo dessas regiões
mal definidas, veladas por uma cortina de palmas, onde os servidores celestiais pareciam, de
longe, dar a impressão de chegarem do emprego, abri caminho até a saleta onde ficava a mesa
de Saint-Loup. Ali encontrei alguns de seus amigos com quem ele jantava sempre, todos nobres,
salvo um ou dois plebeus, mas em quem os nobres tinham, desde o colégio, adivinhado amigos e
aos quais se haviam ligado de muito boa vontade, provando assim que não eram, em princípio,
hostis aos burgueses, fossem mesmo republicanos, contando que tivessem as mãos limpas e
comparecessem à missa. Logo na primeira vez, antes que nos sentássemos à mesa, puxei Saint-Loup para um canto da sala de jantar e, diante de todos os outros, mas que aliás não nos ouviam,
disse-lhe:
- Robert, o momento e o local não são próprios para lhe dizer isso, mas só vai levar um
minuto. Sempre me esqueço de lhe perguntar no quartel; não é o retrato da Sra. de Guermantes o
que você tem sobre a mesa?
- Claro que sim; é o da minha boa tia.
- Ora, é verdade, que loucura a minha; eu bem que o sabia antes, mas nunca pensara
nisso; meu Deus, os seus amigos devem estar impacientes, falemos rápido, eles nos olham, ou
fica para outra vez, isto não tem nenhuma importância.
- Que nada! Continue, eles estão aí é para esperar.
- De jeito nenhum, faço questão de ser cortês; eles são tão amáveis. Aliás, não tenho
como proceder de outro modo, você sabe.
- Conhece então essa grande Oriane?
Essa "grande Oriane", como se tivesse dito "boa Oriane", não significava que Saint-Loup
considerasse a Sra. de Guermantes como especialmente bondosa. Nesse caso, boa, excelente,
grande, são simples reforços de "essa", designando uma pessoa que ambos os interlocutores
conhecem e de quem não se sabe muito bem o que dizer ante uma pessoa que não é da nossa
intimidade. "Boa" serve de hors-d'oeuvre e permite esperar um momento até que se tenha
achado: "O senhor a vê muitas vezes?" ou "Faz meses que não a vejo", ou "Eu a vi na terça", ou
"Ela já não deve estar na primeira juventude".
- Não sei dizer como me diverte que seja o retrato dela, pois moramos na mesma casa
agora e eu soube a seu respeito coisas inauditas (ficaria muito embaraçado para dizer quais) que
fazem com que ela me interesse muito, de um ponto de vista literário, você compreende, como
direi, de um ponto de vista balzaquiano, você que é tão inteligente há de compreender isto em
meia palavra, mas acabemos depressa; o que é que seus amigos hão de pensar de minha
educação!
- Mas eles não pensam absolutamente nada; eu lhes disse que você é sublime, e eles
estão ainda mais intimidados que você.
- Você é muito gentil. Mas veja: a Sra. de Guermantes não imagina que nos conhecemos,
não é?
- Não sei; não a vejo desde o último verão, pois não consegui licença depois que ela
voltou.
- É que, me disseram, ela me considera um perfeito idiota.
- Não creio nisso; Oriane não é nenhuma águia, mas também não tem nada de estúpida.
- Você bem sabe que, em geral, não faço nenhuma questão que torne públicos os bons
sentimentos que sente por mim, pois não tenho amor-próprio. Assim, lastimo que tenha dito coisas
amáveis sobre mim a seus amigos (com quem vamos nos reunir dentro de dois segundos). Mas,
quanto à Sra. de Guermantes, se puder lhe fazer saber, mesmo com um pouco de exagero, o que
pensa a meu respeito, me daria um grande prazer.
- Com muito gosto, se é somente isto o que tem a me pedir; não é muito difícil, mas que
importância pode ter o que ela venha a pensar de você? Suponho que estará pouco se
importando. Em todo caso, se é apenas isso, poderemos falar do assunto diante de todos, ou
quando estivermos a sós, pois receio que você se canse de falar em pé e de forma tão incômoda,
quando temos tantas oportunidades de estar juntos.
Era justamente esse incômodo que me dera coragem de falar com Robert; a presença dos
outros servia-me de pretexto que me autorizasse a dar às minhas frases um jeito breve e
desarrumado, graças ao qual podia mais facilmente dissimular a mentira que pregava ao dizer a
meu amigo que esquecera o seu parentesco com a duquesa e para não lhe dar tempo de me
fazer, sobre os meus motivos para desejar que a Sra. de Guermantes me soubesse ligado a ele,
inteligente, etc., perguntas que tanto mais me desconcertariam como não saberia de que modo
lhe responder.
- Robert, você, tão inteligente, me espanta que não compreenda que não se deve discutir o
que dá prazer aos amigos, mas fazê-lo. Quanto a mim, se me pedisse seja o que for, e até
desejaria muito que me pedisse alguma coisa, asseguro que não lhe pediria explicações. Vou
mais longe do que desejo; não faço questão de conhecer a Sra. de Guermantes; mas deveria ter
dito, para experimentá-lo, que desejaria jantar com a Sra. de Guermantes e sei que você não me
conseguiria semelhante coisa.
- Não só conseguiria como vou consegui-lo.
- Quando?
- Logo que for a Paris, dentro de três semanas, sem dúvida.
- Veremos; aliás, ela nem vai querer isso. Nem sei lhe dizer como estou agradecido.
- Ora, não é nada.
- Não me diga isso, é demais, porque agora vejo o amigo que você é; seja ou não
importante a coisa que lhe peço, seja ou não desagradável, que eu a queira de verdade ou só
para o experimentar, pouco importa, você diz que a fará e assim mostra a finura de sua
inteligência e do seu coração. Um amigo estúpido teria discutido.
Era justamente o que ele acabara de fazer; mas talvez eu quisesse prendê-lo pelo amor-próprio; talvez também fosse sincero, parecendo-me que a única pedra de toque do mérito era a
utilidade que poderiam ter para mim os outros em relação à única coisa que eu julgava importante:
o meu amor. Depois acrescentei, ou por duplicidade, ou por um acréscimo verdadeiro de ternura
causado pela gratidão, pelo interesse e por tudo que a natureza pusera dos próprios traços da
Sra. de Guermantes em seu sobrinho Robert:
- Mas é tempo de nos reunirmos aos outros e só lhe pedi uma das duas coisas, a menos
importante; a outra é mais importante para mim, mas receio que você me recuse; não lhe
aborreceria que nos tratássemos por tu?
- Aborrecer-me? Ora, por Deus! Alegria! Lágrimas de alegria! Felicidade desconhecida!
- Como lhe agradeço... te agradeço. Bem, depois que você tiver começado! Isto me dá um
tal prazer que você até pode não fazer nada quanto à Sra. de Guermantes se não quiser; o
tratamento por tu já me basta.
- Faremos as duas coisas.
- Oh, Robert! Escuta. - disse ainda à Saint-Loup durante o jantar. - Oh, é tão cômica esta
conversa de frases interrompidas, e aliás não sei por quê. Mas você sabe, a dama de quem lhe
acabei de falar?
- Sim.
- Sabe bem a quem estou me referindo?
- Ora, você acha que sou algum cretino do Valais, um retardado?
- Será que você não desejaria me dar a fotografia dela?
Contava pedi-la apenas emprestada. Mas, no momento de falar, fui atacado de timidez,
achei o meu pedido indiscreto e, para não deixá-lo reparar naquilo, formulei-o mais brutalmente e
ainda o aumentei, como se fosse muito natural.
- Não, primeiro seria necessário que lhe pedisse licença. - respondeu ele.
Em seguida enrubesceu. Compreendi que tinha um pensamento oculto, que me atribuía
outro, que só serviria ao meu amor pela metade, sob a reserva de certos princípios de moral, e o
detestei. E, no entanto, estava comovido por ver como Saint-Loup se mostrava diferente a meu
respeito desde que não mais estava sozinho com ele e seus amigos faziam o papel de terceiros.
Sua maior gentileza me teria deixado indiferente se julgasse que era intencional; mas sentia-a
involuntária e feita de tudo aquilo que ele devia dizer de mim quando eu estivesse ausente e que
ele calava quando estávamos a sós. Nas nossas palestras, é certo que eu desconfiava do prazer
que ele tinha em conversar comigo, mas esse prazer ficava quase sempre inexpresso. Agora,
diante das mesmas frases minhas, que normalmente desfrutava sem o notar, ele espiava com o
rabo dos olhos para ver se produziam nos amigos o efeito que havia esperado e que devia
corresponder ao que lhes tinha anunciado. A mãe de uma estreante não põe sua atenção mais
suspensa das réplicas da filha e da atitude do público. Se eu dizia uma palavra de que ele,
sozinho comigo, tivesse sorrido, receando agora que a não compreendessem, me dizia:
- Como, como? para me fazer repeti-la, para forçar a prestar atenção, e, voltando-se logo
para os outros e, sem querer, pondo-se a olhá-los com um riso bonachão, provocador do riso
deles, apresentava-me pela primeira vez a ideia que fazia de mim e que já muitas vezes devia
lhes ter expressado. De modo que, repentinamente, eu me via a mim mesmo do exterior, como
alguém que lê o próprio nome no jornal ou se vê num espelho.
continua na página 45...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Ao sair do quartel... )
Volume 4
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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