volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Na realidade, estava farta de ouvir Froberville, o qual não cessava de invejá-la por ir a Montfort-l'Amaury, quando ela sabia muito bem que era a primeira vez que ele ouvia falar daqueles vitrais, e que, por outro lado, não perderia por nada no mundo uma reunião na casa da Sra. de Saint-Euverte.
- Adeus, mal pude lhe falar assim mesmo na sociedade, a gente mal se vê, não diz as
coisas que gostaria de dizer. Aliás, dá-se o mesmo em toda parte na vida. Esperemos após a
morte que as coisas sejam mais bem arranjadas. Pelo menos, não haverá necessidade de estar
sempre a decotar-se. E mesmo assim, quem sabe? Talvez a gente exiba os ossos e os vermes
para as grandes recepções. Por que não? Olhem só a tia Rampillon; acham muita diferença entre
isso e um esqueleto de vestido de baile? É verdade que ela tem todos os direitos, pois já
completou no mínimo cem anos. Era já um dos monstros sagrados diante de quem eu me
recusava a inclinar-me quando estreei na sociedade. Julgava-a morta há muito tempo, o que,
aliás, seria a única explicação para o espetáculo que nos oferece. É impressionante e litúrgico.
Puro Campo-Santo!-
A duquesa deixara Froberville; ele se reaproximou:
- Queria dizer-lhe uma última palavra. -
Um tanto irritada:
- O que deseja ainda? - disse-lhe ela com altivez.
E ele, receando que no último instante ela desistisse de Montfort-l'Amaury:
- Não tive coragem de lhe falar por causa da Sra. de Saint-Euverte, para não magoá-la,
mas já que não tenciona ir até lá, posso lhe dizer que estou feliz pela senhora, pois há sarampo
na casa dela!
- Oh, meu Deus! - exclamou Oriane, que tinha medo de doenças.
- Mas quanto a mim não quer dizer nada, pois eu já tive sarampo. Não se tem sarampo
duas vezes. - São os médicos que dizem isto. Conheço pessoas que já tiveram até quatro vezes.
Enfim, está avisada. -
Quanto a ele, seria preciso que tivesse de fato esse sarampo fictício, e que ficasse preso
ao leito para se resignar a faltar à festa Saint-Euverte, esperada há tantos meses. Teria o prazer
de ali ver tantas elegâncias! O maior prazer de constatar certas coisas goradas e, principalmente,
o de poder durante muito tempo vangloriar-se de ter convivido com as primeiras e, exagerando-as
ou inventando-as, deplorar as segundas.
Aproveitei que a duquesa se afastara a fim de também sair dali; fui para o fumoir,
procurando informar-me acerca de Swann.
- Não creia numa só palavra do que falou Babal - disse-me a Sra. de Guermantes. - Jamais
a pequena Molé teria ido se enfiar lá. Dizem isso para nos atrair. Não recebem ninguém e não são
convidados a parte alguma. Ele mesmo o confessa: "Ficamos os dois sozinhos junto à lareira."
Como ele diz sempre nós, não como o rei, mas em nome da mulher, não insisto. Mas estou bem
informada - acrescentou a duquesa.
Cruzamos por dois jovens cuja grande e dissemelhante beleza se originava de uma
mesma mulher. Eram os dois filhos da Sra. de Surgis, a nova amante do duque de Guermantes.
Resplandeciam das perfeições da mãe, mas cada um de perfeição diversa. Para um havia
passado, ondulante num corpo viril, a régia imponência da Sra. de Surgis, e a mesma palidez
ardente, arruivada e sacra afluía às faces marmóreas da mãe e desse filho; mas seu irmão havia
recebido a fronte grega, o nariz perfeito, o pescoço de estátua, os olhos infinitos. Feita assim de
presentes diversos que a deusa havia repartido, essa dupla beleza oferecia o prazer abstrato de
pensar que sua causa estava fora deles; dir-se-ia os principais atributos da mãe se haviam
encarnado em dois corpos aparentes: que um dos jovens tinha a estatura e a tez de sua mãe, e o
seu olhar, como os seres divinos que eram apenas a força e a beleza de Júpiter ou de Minerva.
Cheios de respeito pelo Sr. de Guermantes, diziam:
- É um grande amigo de nossos pais. -
O mais velho, no entanto, achou que era prudente não vir cumprimentar a duquesa, de
quem conhecia a inimizade por sua mãe, sem talvez compreender-lhe o motivo. Ao passar por
nós, desviou ligeiramente a cabeça. O mais novo, que imitava o irmão, porque, sendo estúpido e
além disso míope, não podia ter opinião pessoal, inclinou a cabeça no mesmo ângulo e ambos
foram para a sala de jogos, um atrás do outro, semelhantes a duas figuras alegóricas.
No momento de chegar àquela sala, fui detido pela marquesa Citri, ainda bonita, mas
quase soltando espuma pela boca, de raiva. De parentesco bastante nobre, procurara e
conseguira fazer um belo casamento ao desposar o Sr. de Citri, cuja bisavó era uma Aumale-Lorraine. Mas ao mesmo tempo que experimentara essa satisfação, seu temperamento
negativista lhe fizera criar horror às pessoas da alta sociedade, o que não excluía absolutamente
a vida mundana. Não só, numa recepção, ela zombava de todo mundo; como também semelhante
zombaria continha algo de tão violento que o progresso do seu riso não era bastante áspero e se
transformava num assovio gutural:
- Ah! - disse ela, apontando para a duquesa de Guermantes que acabara de a deixar e já
estava um pouco distante. - O que me transtorna é que eu possa levar essa vida. -
Seriam essas palavras de uma santa furibunda, que se espanta de que os gentios não
cheguem por si mesmos à verdade ou de uma anarquista sequiosa de carnificina? Em todo caso,
essa apóstrofe era tão pouco justificada quanto possível. Primeiro, a "vida que levava" a Sra. de
Guermantes diferia muito pouco (salvo a indignação) da da Sra. Citri. Esta se mostrava estupefata
de ver a duquesa capaz deste sacrifício mortal: assistir a uma recepção de Marie-Gilbert. É
necessário dizer que, no caso em apreço, a Sra. de Citri gostava muito da princesa, que na
verdade era muito bondosa, e sabia que lhe dava muita satisfação em comparecer à sua festa.
Assim, para estar presente, dispensara naquela noite uma bailarina que julgava ser genial e que
devia iniciá-la nos mistérios da coreografia russa. Um outro motivo que tirava todo valor à raiva
concentrada Sra. de Citri, ao ver Oriane cumprimentar este ou aquele convidado, é que a Sra. de
Guermantes, embora em estado bem menos avançado, apresentava os mesmos sintomas do mal
que assolava a Sra. de Citri. Viu-se que ela carregava os seus germes de nascença. Afinal, mais
inteligente que a Sra. de Citri, a duquesa teria tido mais direitos do que a outra a esse niilismo
(que era somente mundano), mas é verdade que certas qualidades antes ajudam a suportar os
defeitos do próximo do que contribuem para que se sofra com eles; e um homem de grande
talento habitualmente prestará menos atenção às asneiras de outrem do que o faria um tolo. Já
descrevemos longamente o tipo de espírito da duquesa para provar que, se nada tinha em comum
com uma alta inteligência, era ao menos dotada de espírito, um espírito apto a utilizar (como um
tradutor) diferentes formas de sintaxe. Ora, nada disso parecia autorizar a Sra. de Citri a
desprezar qualidades tão parecidas com as dela. Ela achava todo mundo idiota, mas, em sua
conversação e nas cartas, mostrava-se ainda inferior às pessoas que tratava com tanto desdém.
Além disso, sentia uma tal necessidade de destruir que, após ter mais ou menos renunciado à
sociedade, os prazeres que então buscou, sofreram sucessivamente o seu terrível poder
dissolvente. Depois de ter deixado as recepções para frequentar sessões musicais, pôs-se a
dizer:
- Gostam de ouvir música? Ah, meu Deus, isso depende dos momentos. Mas como pode
ser aborrecido! Ah, Beethoven, que barbeiro! - quanto a Wagner, e depois quanto a Franck,
Debussy, ela nem se dava ao trabalho de dizer "que barbeiro", contentando-se em passar a mão
pelo rosto como um barbeiro. Em breve, tudo se tornou aborrecido.
- São tão aborrecidas as coisas bonitas! Ah, os quadros, são de a gente ficar louco! Como
vocês tinham razão, é aborrecido escrever cartas! -
Finalmente, foi a própria vida que ela nos declarou ser uma coisa enfadonha, sem que se
soubesse com certeza de onde tirava o seu termo de comparação. Não sei se é por causa do que
a duquesa de Guermantes, no primeiro dia em que jantei em sua casa, disse acerca dessa peça,
mas a sala de jogos, ou fumoir, com seu pavimento ilustrado, suas trípodes, suas figuras de
deuses e de animais que nos olhavam, as esfinges ao comprido dos braços das cadeiras, e
sobretudo a imensa mesa de mármore ou mosaico esmaltado, coberta de signos simbólicos mais
ou menos imitados da arte etrusca e egípcia, aquela sala de jogos teve sobre mim o efeito de uma
verdadeira câmara mágica. Ora, numa cadeira próxima da mesa refulgente e augúrio, o Sr. de
Charlus, sem tocar em nenhuma carta, insensível ao que se passava a seu redor, incapaz de
perceber que eu acabara de entrar, parecia exatamente um mágico que aplicasse todo o poder de
sua vontade e de seu raciocínio em elaborar um horóscopo. Não apenas, como a uma Pítia sobre
uma trípode, os olhos lhe saíam das órbitas, mas, para que nada viesse distraí-lo dos trabalhos
que exigiam a cessação dos movimentos mais simples, ele (tal como um calculador que não quer
fazer outra coisa enquanto não tiver resolvido o seu problema) depusera à sua frente o charuto
ainda há pouco trazia na boca, não tendo agora liberdade de espírito para fumá-lo. Vendo as duas
divindades agachadas que tinha em seus braços da poltrona colocada à sua frente, poder-se-ia
acreditar que o barão buscava descobrir o enigma da Esfinge, não fosse antes o enigma de um
jovem vivo Édipo, assentado precisamente naquela poltrona, onde se instalara para jogar. Ora, a
figura à qual o Sr. de Charlus aplicava, e como tal contém todas as suas faculdades espirituais e
que na verdade não era daquela como de hábito se estudam conforme a geometria, era a que lhe
propunham as listras do rosto do jovem marquês de Surgis; parecia, tão profundamente o Sr. de
Charlus estava absorto diante dela, alguma palavra cifrada, alguma artimanha, algum problema de
álgebra de que procurava desvendar o enigma ou achar a fórmula. Diante dele, os signos sibilinos
e as figuras inscritas na tábua da Lei pareciam o engrimanço que ia permitir ao velho feitio saber
em que sentido se orientariam os destinos do jovem. De súbito percebeu que eu o observava.
Ergueu a cabeça como se saísse de um devaneio e me sorriu, enrubescendo. Neste instante, o
outro filho da Sra. Surgis reuniu-se ao que estava jogando, para olhar as suas cartas. Quando o
Sr. de Charlus soube por mim que eram irmãos, seu rosto não pode simular a admiração que lhe
inspirava uma família criadora de obras tão esplêndidas e diferentes. E o que ainda aumentaria o
entusiasmo do barão seria saber que os dois filhos da Sra. de Surgis-le-Duc não eram apenas da
mesma mãe, e sim do mesmo pai. Os filhos de Júpiter dissemelhantes, mas isto decorre de que
ele desposou primeiro Métis, o destino era dar à luz aos filhos com juízo, depois Têmis, e a seguir
Eurín Latona, e por último somente Juno. Mas de um só pai a Sra. de Surgis fizera nascer dois
filhos que haviam recebido as suas belezas, porém belezas diferentes. Por fim, tive o prazer de
que Swann entrasse naquela sala bem vasta, tanto que a princípio ele não me viu. Prazer
mesclado de uma tristeza que os demais convidados talvez não sentissem, mas entre eles
consistia naquela espécie de fascinação exercida pelas formas inesperadas e singulares de uma
morte próxima, de uma morte que, diz o povo, já se tem no rosto. E foi com uma estupefação
quase mal-educada onde entrava a curiosidade indiscreta, a crueldade, um regresso um pouco
inquieto e preocupado sobre si mesmo (a um tempo mistura de suave mari-magno ["É doce, no
vasto mar"] e de memento-guia pu/vis guia pu/vis es et in pu/verem reverteris ["Lembra-te,
homem, de que és pó e ao pó voltarás." (N, do T)] teria dito Robert), que todos os olhos se
fixaram naquele rosto cujas faces a doença cavara de tal modo, como uma lua minguante, que, a
não ser de um certo ângulo, sem dúvida aquele sob o qual Swann se observava, rodavam como
um cenário inconsistente ao qual uma ilusão de ótica pode somente conferir a aparência de
espessura. Seja por causa da ausência dessas faces, que não mais estavam ali para diminuí-lo,
seja que a arteriosclerose, que também é uma intoxicação, o avermelhasse como o teria feito a
embriaguez ou o deformasse como o faria a morfina, o nariz de polichinelo de Swann, durante
longo tempo incorporado a um rosto agradável, parecia agora enorme, intumescido, carmesim,
antes o nariz de um velho hebreu que o de um curioso Valois. Além disso, nele talvez, naqueles
últimos dias, a raça fazia reaparecer mais acentuadamente o tipo físico que a caracteriza, ao
mesmo tempo que o sentimento de uma solidariedade moral com os outros judeus, solidariedade
que Swann parecia haver esquecido a vida inteira, e que, enxertados uns sobre os outros, a
doença mortal, o Caso Dreyfus, a propaganda anti-semita haviam despertado. Existem alguns
judeus, muito finos no entanto e mundanos delicados, nos quais permanecem de reserva e nos
bastidores, a fim de fazer sua entrada numa determinada hora de suas vidas, como numa peça,
um grosseirão e um profeta. Swann chegara à idade do profeta. Certamente com sua figura de
onde, sob a ação da doença, segmentos inteiros haviam desaparecido como num bloco de gelo
que se derrete e do qual caem paredes inteiras, ele mudara muito. Mas eu não podia evitar de
ficar impressionado ao ver o quanto mais mudara ele em relação a mim. Aquele homem
excelente, culto, que eu estava bem longe de aborrecer-me ao encontrar, não conseguia eu
compreender como pudera antigamente impregná-lo de um mistério tal que seu aparecimento nos
Champs-Élysées me fazia bater o coração, a ponto de eu ter vergonha de me aproximar de sua
pelerine forrada de seda, e que, à porta do apartamento em que morava uma tal criatura, eu não
podia bater sem ser possuído de uma perturbação e de um tremor infinitos. Tudo isto havia
desaparecido não só de sua residência, mas também de sua pessoa, e a idéia de conversar com
ele podia me ser agradável ou não, mas não afetava em nada o meu sistema nervoso. E, além
disso, como havia mudado desde aquela mesma hora; em suma, poucas horas mais cedo em que
o encontrara no gabir duque de Guermantes! Teria tido realmente uma cena com o príncipe que o
deixara transtornado? A suposição não era necessária. Os menores traços exigidos a alguém que
está muito enfermo depressa se tornam parecidos a um esgotamento excessivo. Por pouco que
seja exposto, já fatigado, aonde for mesmo num sarau, sua fisionomia se decompõe e azulesce,
como se dá uma pera madura demais em menos de vinte e quatro horas, ou como prestes a
talhar. Ademais, a cabeleira de Swann apresentava falhas alguns pontos e, como dizia a Sra. de
Guermantes, precisava de um forno pois tinha o ar canforado, e mal canforado. Eu ia atravessar o
fumoir e falar com Swann quando, infelizmente, uma mão se abateu sobre meu ombro:
- Bom dia, meu caro, estou em Paris por quarenta e oito horas. Passei na tua casa e me
disseram que estavas aqui, de forma que é a ti que a minha tia da honra da minha presença em
sua festa. -
Era Robert Saint-Loup. Disse-lhe, quanto achava bonita aquela casa.
- Sim, faz o gênero do monumento histórico. Quanto a mim, acho-a aborrecida. Não
fiquemos perto do Palamede, senão ele nos pega. Como a Sra. Molé (pois é ela quem dá saída
atualmente) acaba de sair, ele se encontra inteiramente desamparado. Parece que era um
verdadeiro espetáculo, ele não arredou um só instante, só a deixou quando a pôs no carro. Não
lhe quero mal por isso; apenas acho engraçado que o meu conselho de família, que sempre se
mostrou tão severo comigo, seja composto precisamente dos parentes que mais fizeram das
suas, a começar pelo mais pandego de todos, o meu tio Charlus, que é meu suplente de tutor,
que teve tantas mulheres como Dom Juan e que em sua idade não entrega os pontos. Cogitou-se
por um momento de me nomearem um conselho judiciário. Acho que, quando todos esses velhos
peraltas se reuniam para examinar o assunto, fazendo-me vir para me passar lição de moral e
dizer que eu dava desgostos à minha mãe, não deviam poder olhar uns para os outros sem rir.
Examinarás a composição do conselho: parece que escolheram precisamente aqueles que mais
andaram levantando saias. -
Pondo de lado o Sr. de Charlus, a cujo respeito o esperto do meu amigo já não me parecia
justificado, mas por outros motivos, aliás deviam modificar-se mais tarde em meu espírito; Robert
não tinha razão em julgar extraordinário que lições de sensatez fossem dadas a um jovem por
parentes que haviam feito loucuras, ou as faziam ainda. Mesmo que o atavismo e as parecenças
de família fossem as únicas causas em jogo, é inevitável que o tio que prega o sermão tenha mais
ou menos os mesmos defeitos que o sobrinho a quem foi encarregado repreender. O tio, aliás,
não põe nisso nenhuma hipocrisia, enganado está pela faculdade que têm os homens de
acreditar, em cada nova circunstância, que se trata de "outra coisa", faculdade que lhes permite
adotar erros artísticos, políticos, etc.; sem se aperceberem de que são os mesmos que tomaram
por verdades, dez anos antes, a propósito de uma outra escola de pintura, que condenavam, de
um outro caso político, que juravam merecer o seu ódio, de que se afastaram, e que esposam
sem os reconhecer sob um novo disfarce. Além disso, mesmo que as faltas do tio sejam
diferentes das do sobrinho, ainda assim a hereditariedade pode não menos constituir em certa
medida a lei causal, pois o efeito nem sempre se parece à causa, como a cópia ao original, e até
mesmo se as faltas do tio são piores, ele pode perfeitamente achá-las menos graves. Quando o
Sr. de Charlus acabava de fazer advertências indignadas a Robert, que, aliás, naquela época, não
conhecia os verdadeiros gostos do tio, e mesmo que fosse ainda naquela em que o barão
afrontava os próprios gostos, poderia ele ter sido perfeitamente sincero ao considerar, do ponto de
vista do homem mundano, que Robert era infinitamente mais culpável que ele. Pois Robert não
chegara quase a ser banido de seu mundo, quando seu tio fora encarregado de fazê-lo recobrar a
razão? Pois não faltara pouco para que fosse recusado no Jockey? Não era ele objeto de
escárnio pelas loucas despesas que fazia por uma mulher da pior categoria, por suas amizades
com pessoas, escritores, atores, judeus, dos quais nenhum pertencia a seu mundo, por suas
opiniões que não se diferençavam das de um traidor, pela mágoa que causava a todos os seus?
E em que podia se comparar essa vida escandalosa à do Sr. de Charlus, que soubera, até agora,
não só conservar mais ainda engrandecer a sua posição de Guermantes, sendo na sociedade
uma criatura absolutamente privilegiada, solicitada, adulada pelos grupos mais seletos, e que,
casado com uma princesa de Bourbon, mulher eminente, soubera fazê-la feliz, e votara à sua
memória um culto mais fervoroso, mais exato do que o que se tem de hábito entre os mundanos,
e também fora tão bom marido como filho extremoso?
- Mas estás bem certo de que o Sr. de Charlus possui tantas amantes? - indaguei, não
evidentemente com a diabólica intenção de revelar a Robert o segredo que havia surpreendido,
mas todavia irritado por vê-lo sustentar um engano com tanta certeza e suficiência. Ele se
contentou em dar de ombros, como resposta, ao que julgava ingenuidade de minha parte.
- Aliás, não o censuro; acho que tem toda a razão. -
E principiou a esboçar para mim uma teoria que lhe teria dado horror em Balbec (onde não
se limitava a invectivar os sedutores, parecendo-lhe a morte a única pena proporcional ao crime).
É que então ainda era apaixonado e ciumento. Chegou ao ponto de me fazer o elogio dos bordéis.
- Só lá é que se encontra chinelo para o pé, o que chamamos no regimento o seu gabarito.
- mostrava por esse tipo de locais o desagrado que manifestara em quando eu fizera alusão a
eles, e, ouvindo-o agora, disse-lhe que fora quem me levara a um deles; mas Robert me
respondeu que esse do Bloch devia ser "extremamente vulgar, o paraíso dos pobres".
- Isso depende, afinal de contas; onde é que fica? -
Mostrei-me confuso, lembrava-me que, de fato, era lá que se entregava por um luís aquela
que Robert tanto amara.
- Em todo caso, vou te fazer conhecer outros, melhores, aonde vão mulheres incríveis. -
Ao ouvir-me expressar de que me levasse o mais cedo possível aos bordéis que conhecia
e que de fato deviam ser bem superiores ao que me indicara Bloch, Robert relatou com
sinceridade não poder fazê-lo dessa vez, visto que regressava no dia seguinte.
- Ficará para a minha próxima temporada - disse. - Até há moças - acrescentou com ar
misterioso. - Há uma senhorita creio que d'Orgeville, ainda vou te dizer com exatidão, que é filha
de uma família das melhores; a mãe é mais ou menos La Croix-l'Évêque, são gente fina, e até um
pouco parentes, salvo engano, da tia Oriane. Aliás, só de ver a garota sente-se que é filha de
pessoas distintas (senti estender-se por momento, sobre a voz de Robert, a sombra do gênio de
Guermantes, passou como uma nuvem, mas a grande altura e sem se deter). Parece mesmo um
caso sensacional. Os pais estão sempre doentes e não podem ocupar-se dela. Que diabo! A
menina procura não se aborrecer e eu conto contigo para distrair essa criança!
- Ah, e quando votarás?
- Não sei, não fazes questão absoluta de duquesas (o título de duquesa é, na aristocracia,
o único a designar uma posição especialmente brilhante, como para o povo, o de princesa), há,
em outro gênero, a principal camareira da Sra. Putbus.
continua na página 43...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Na realidade, estava farta)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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