Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo XVI
A Organização do Entusiasmo
A CURIOSA república de que me venho ocupando, é acusada pelos seus filósofos de não ter costumes
originais. É um erro de que participam quase todos os seus naturais — erro muito naturalmente explicável,
pois mergulhados na sua vida, não possuem pontos de referência para aquilatar da originalidade das
usanças especiais de sua terra.
Os estrangeiros, porém, logo as percebem e contam nos seus livros. Li muitos livros de viagem
na Bruzundanga; e, em nenhum deles vi referências a um costume curioso daquele país — “a
manifestação”.
Chama-se isto ao ato de fazer ressaltar uma dada personalidade com a aclamação, o vivório de
muitos outros. Esta é a grande manifestação; há também as pequenas que consistem em banquetes,
saraus, piqueniques, em honra de um dado sujeito.
Chama-se isto ao ato de fazer ressaltar uma dada personalidade com a aclamação, o vivório de
muitos outros. Esta é a grande manifestação; há também as pequenas que consistem em banquetes,
saraus, piqueniques, em honra de um dado sujeito.
Houve lá um rapaz que, graças aos banquetes que lhe eram oferecidos e cujas notícias saíam em
colunas pelos jornais afora, foi de segundo-tenente da Marinha a contra-almirante, em cinco anos, sem
nunca ter comandado uma falua.
Um senhor que conheci, fez-se uma celebridade em astronomia, com auxílio dos saraus que lhe
eram oferecidos pelos amigos. Ele tinha em casa um óculo de bordo, montado sobre uma tripeça, que,
por sua vez, se alcandorava em um mangrulho erguido na sua chácara; lia o Flammarion; e isto tudo
com mais uns amigos dedicados a lhe oferecer bailes, por ocasião das suas portentosas descobertas nos
céus ignotos, levaram o governo da Bruzundanga a nomeá-lo diretor de um dos observatórios
astronômicos da república.
Esses casos são de pequenas homenagens levadas ao cabo por amigos cuja amizade e vinhos
generosos são bastantes para incutir-lhes entusiasmo, por ocasião de tais manifestações.
Mas, para as grandes, para aquelas feitas a políticos, a capitalistas, a embaixadores; para aquelas
em que se exige multidão, o entusiasmo não era fácil de obter-se assim do pé pra mão e quando eram
realizadas, além desse “defeito” apresentavam alguns outros. Muitas vezes até os organizadores verificavam que os manifestantes não sabiam bem o nome do
grande homem a festejar. Era uma lástima! Uma vergonha!
Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava — Viva o doutor Clarindo! — o outro
exclamava: — Viva o doutor Carlindo—e um terceiro expectorava — Viva o doutor Arlindo! — quando
o verdadeiro nome do doutor era — Gracindo!
Para obviar tais inconvenientes, houve alguém que teve a ideia de “canalizar”, de “disciplinar” o
entusiasmo do povo bruzundanguense, entusiasmo tão necessário às manifestações que lá há
constantemente, e tão indispensáveis são ao fabrico de grandes homens que dirijam os destinos da
grande e formosa República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Esse alguém, esse homem de gênio, cujo nome infelizmente me escapa agora, delineou — a
“Guarda do Entusiasmo”.
Os fins a que a organização de semelhante corpo manifestante devia obedecer, foram expostos
pelo seu criador, mais ou menos, nas seguintes palavras que, se não são transcritas do seu manifesto,
podem ser tomadas como verdadeiras, pois me gabo de ter muito boa memória:
Ei-las:
“As sucessivas e continuadas festas que Bosomsy (capital da Bruzundanga) tem dado a vários
personagens nacionais e estrangeiros, nestes últimos tempos, sugerem a ideia de se organizar um corpo
de dez mil homens, convenientemente fardados, armados e disciplinados, encarregados das aclamações,
dos vivórios e todas as outras cousas que os jornais englobam sob o título — “Uma Entusiástica
Recepção”.
É conveniente que esse corpo tenha uma organização adequada e fique sujeito à suprema direção
de um dos nossos ministérios, por intermédio de uma Diretoria-Geral de Manifestações e Festejos, que
deve ser criada oportunamente.
O nosso catita Ministério de Estrangeiros está naturalmente indicado para superintender os destinos
superiores dessa “Guarda do Entusiasmo”, e da diretoria, que fará parte naturalmente da respectiva
Secretaria de Estado.
O aproveitamento da energia entusiástica desses dez mil homens obter-se-á com uma disciplina
inteligente e uma hierarquia conveniente.
Cada soldado, pelo menos, deverá dar dous “vivas” por minuto; os sargentos e demais inferiores,
nos intervalos dos “vivas”, baterão palmas, muitas palmas, seguidas e nervosas; os oficiais serão
encarregados de soltar foguetes e traques; o general fará, por intermédio do corneta, os sinais da
ordenança, de modo a graduar, a marcar a aclamação delirante.
Ter-se-á assim a canalização, a organização do entusiasmo, e a população de Bosomsy, mediante
um pequeno imposto, ficará desembaraçada do ônus manifestante.
O fardamento não custará lá grande cousa. Roupas usadas, velhos chapéus de funcionários
sobrecarregados de família, botas acalcanhadas de empregados de advogados emprestarão aos soldados
o aspecto mais popular possível. Os oficiais vestirão a sobrecasaca de sarja das grandes ocasiões; o
general e o seu estado-maior virão em carro descoberto.
A “Guarda do Entusiasmo” não formará, por completo, para toda e qualquer homenagem.
Um embaixador belíssimo terá direito à metade; um chefe de Estado feio, a toda ela.
O governo, como atualmente procede com as bandas de música militares, poderá alugar frações
da “Guarda”, ou mesmo ela completa, a particulares que pretendam realizar manifestações honestas e
republicanas; e, com isto, obterá uma segura fonte de renda para o erário nacional.
Tudo indica que nela haja algumas centenas de praças e uma ou duas dúzias de oficiais
conhecedores do entusiasmo inglês, francês, china e abexim para as manifestações a grandes personagens
abexins, chineses, franceses e ingleses.
Toda a corporação congênere deve ser proibida pelo governo, e na “Guarda” é bom que o
comandante admita algumas dezenas de homens robustos capazes de puxar carros de heróis ambulantes
ou atrizes fascinadoras. Às vezes, temos visto o entusiasmo exigir esse glorioso serviço...
Se no mercado comum de homens robustos não se encontrarem músculos capazes para tão nobre
atividade, é bom que sejam contratados alguns lutadores de luta romana, mesmo porque, procurando
dar às manifestações um cunho de novidade, pode haver quem proponha levantar-se a carruagem dos
“manifestados” de sobre o vulgar chão de asfalto”.
Estas palavras vinham eivadas de tanta lógica que logo convenceram os governantes da
Bruzundanga da verdade e da necessidade que encerravam; e não demorou um mês que a “Guarda”
fosse organizada, apesar de se terem apresentado como candidatos a lugares dela quase todos os habitantes
de Bosomsy.
continua na página 56...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo XVI: A Organização do Entusiasmo
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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