quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XXI: Pancôme, as suas Ideias e o Amanuense

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


Capítulo XXI
Pancôme, as suas Ideias e o Amanuense

     ESTE caso do amanuense e alguns outros que aqui vão ser contados na maioria, aconteceram na alta administração da Bruzundanga, quando foi Ministro de Estrangeiros o Visconde de Pancôme.
     Mas, dentre todos os seus atos, aquele que fez propriamente escola, foi a nomeação de um amanuense para a sua secretaria; e os demais, quer quando foi ministro, quer antes, se entrelaçam tanto com a célebre nomeação, esclarecem de tal modo o seu espírito de governo e a sua capacidade de estadista, que tendo de narrar aquele provimento de um modesto cargo, me vejo obrigado a relatar muitos outros casos de natureza quiçá diversa. Entro na matéria. 
     Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria.
     Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se um dos habilitados; mas Pancôme nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá-las bem fielmente e respeitá-las cegamente.
     A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o instante. Ninguém lhe tomava conta por isso e ele fazia do seu ministério cousa própria e sua.
     Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiro por todos os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam panegíricos hiperbólicos.
     Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzundanguenses de origem javanesa — cousa que equivale aqui aos nossos mulatos.
     Constituíam o seu pesadelo, o seu desgosto e não julgava os indivíduos dessas duas espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a vergonha da Bruzundanga, no seu secreto entender.
     Esta preocupação, nele, chegava às raias da obsessão, pois o seu espírito de herói da Bruzundanga não se orientava, no que toca à sua atividade governamental, pelos aspectos sociais e tradicionais do país, não se preocupava em descobrir-lhe o seu destino na civilização por este ou aquele tênue indício a fim de, com mais proveito, auxiliar a marcha de sua pátria pelos anos em fora. Ao contrário: secretamente revoltava-se contra o determinismo de sua história, condicionado pela sua situação geográfica, pelo seu povoamento, pelos seus climas, pelos seus rios, pelos seus acidentes físicos, pela constituição do seu solo, etc.; e desejava muito infantil- mente fabricar, no palácio do seu ministério, uma Bruzundanga peralvilha e casquilha, gênero boulevard, sem os javaneses, que incomodavam tanto os estrangeiros e provocavam os remoques dos caricaturistas da República das Planícies, limítrofe, e tida como rival da Bruzundanga.
     Enfim, ele não era ministro, para felicitar os seus concidadãos, para corrigir-lhe os defeitos em medidas adequadas para acentuar as suas qualidades, para aperfeiçoá-las, para encaminhar melhor a evolução do país, acelerando-a como pudesse; o visconde era ministro para evitar aos estranhos, aos touristes, contratempos e maus encontros com javaneses. Ele chegou até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabo destes últimos...
     Mas como ia dizendo, Pancôme, no seu ministério, fazia tudo o que entendia; mas, mesmo assim, não se atrevia a romper abertamente com aquela história de concursos, com os quais desde muito andava escarmentado, devido a razão que lhes hei de contar mais tarde.
     Era, afinal, uma pequena hesitação no espírito de um homem que tinha tido até ali tão audazes atrevimentos para desrespeitar todas as leis, todos os regulamentos e todas as praxes administrativas.
     É bastante dizer que, não contente em residir no próprio edifício do ministério sem autorização legal, Pancôme não trepidou em estabelecer na chácara do mesmo um redondel de touradas, um campo de football, um café-concerto, para obsequiar respectivamente os diplomatas espanhóis, ingleses e suecos.
     Como já tive ocasião de dizer, tal ministro só trabalhava para impressionar os estrangeiros, e, apesar de não ter feito obra alguma de alcance social para a Bruzundanga, o povo o adorava porque o julgava admirado pelos países estranhos e seus sábios.
     Se alguém se lembrava de censurar esse seu desavergonhado modo e governar, logo os jornalistas habituados a canonizações simoníacas e parlamentares que gostavam do pot-de-vin, gritavam: que tipo mesquinho! Criticar esse patrimônio nacional que é o Visconde de Pancôme, por causa de ninharias! Ingrato!
     Diante dessa desculpa de patrimônio nacional, toda a gente se calava e o país ia engolindo as afrontas que o seu ministro fazia às suas leis e aos seus regulamentos.
     De onde — hão de perguntar — lhe tinha vindo tal prestígio? É fácil de explicar.
     Ele veio, no fim, da tal história das condecorações que já lhes contei — fato que encheu de júbilo todo o povo daquela pátria, porque a República das Planícies que Pancôme trabalhava para sempre andar às turras com a Bruzundanga, não as tinha obtido, apesar de disputá-las. Antes disso, porém, ele já tinha um ascendente bem forte, devido a uma grande proeza. Pancôme tinha subido ao cume do Tiaya, o modesto Himalaia da corografia da República da Bruzundanga, dous mil e novecentos a três mil metros de altitude. Vou lhes contar como a cousa foi.
     Um dia, estando Pancôme nas proximidades dessa montanha, anunciou a todos os quadrantes que ia escalá-la.
     Os bruzundanguenses do lugar sorriram diante do projeto daquele homem gordo e pesado. Aquilo (o monte), diziam, era muito alto e ele não teria fôlego para chegar ao cume; havia fatalmente de rolar pelas encostas abaixo, antes de atingir o meio da jornada.
     O visconde, porém, não se temorizou, subiu e dizem que foi ao pico da montanha.
     A vista de semelhante proeza, os naturais do país, logo que a nova se espalhou, exultaram, pois andavam de há muito necessitados de um herói. Não contentes da notícia da façanha ter corrido toda a nação, telegrafaram para as cinco partes do mundo exaltando a ousadia ainda mais.
     É verdade que, antes de Pancôme, muitos outros, entre os quais o Kaetano Phulgêncio, um roceiro do local, tinham subido o Tiaya várias vezes, em aventuras de caça, e até esse Phulgêncio serviu-lhe de guia; mas isto não foi lembrado e Pancôme passou por ser o primeiro a fazê-lo.
     De tal proeza e das consequências que dela advieram, nasceu a fama do visconde, a sua consideração de herói nacional, tanto mais que os clubes alpinos da Europa tomaram nota do ilustre feito e, graças à diplomacia da Bruzundanga, o retrato e a biografia do portentoso varão foram estampados nas revistas especiais de sport. Durante um mês, os jornais da capital do interessante país que ora nos ocupa, não deixaram um só dia de publicar telegramas do seguinte teor ou parecidos: “La Vie au Grand Air, importante revista francesa, publica o retrato do Visconde de Pancôme, o destemido herói do Tiaya, e os seus traços biográficos.”
     Um outro quotidiano dizia: “Army, Navy and Sport, célebre magazine inglês, estampando o retrato do Visconde de Pancôme, essa legítima glória do nosso país, afirma que a sua ascensão ao cume do Tiaya é sem precedentes na história do alpinismo”; e assim transcreviam ou noticiavam referências de outras revistas alemãs, italianas, sírias, gregas, tcheques, etc.
     Recebendo esse impulso do estrangeiro, os jornais da Bruzundanga, os mais lidos e os mais obscuros, e as revistas de toda a natureza redobraram a sua habitual gritaria em casos tais. Enchiam-se de artigos louvando o herói que fizera a Bruzundanga conhecida na Europa, afirmação essa em que logo o povo do país acreditou piamente; mostraram também com períodos bem caídos, como o fato tinha um alcance excepcional e proclamaram o homem o primeiro de todos os bruzundanguenses.
     A seguir-se aos jornais, vieram os poetas louvaminheiros com as suas odes, poemas, sonetos, cantatas, erguendo às nuvens o visconde e a sua extraordinária proeza. Eles sacavam com atilamento sobre o futuro, por- quanto, quando Pancôme veio a ser ministro, os encheu de propinas e fartos jantares.
     É ocasião de notar aqui uma singular feição dos poetas da Bruzundanga.
     Todos os vates de lá, em geral, são incapazes de comparação, de crítica e impróprios para a menor reflexão mais detida, e, com a sua mentalidade de parvenus aperuados, estão sempre dispostos a bajular os titulares ou os apatacados burgueses, para terem o prazer de ver mais perto as suas mulheres e filhas, pois se persuadiram que são elas feitas de outra substância diferente daquela que forma as cozinheiras e os pequenos burgueses.
     Tão tolos são eles que não se lembram que tais marqueses e mais barões da sua terra são de origem tão humilde e tão vexatória em face do critério nobiliárquico que os próprios portadores de tais títulos fidalgos ocultam o mais que podem a sua ascendência. Mas é preciso voltar ao nosso Visconde de Pancôme.
     À custa de todas essas vociferações, o povo não permitia que ninguém lhe tocasse na reputação e ficou convencido de que o homem era mesmo um demiurgo e consubstanciou a sua admiração ingênua nesta fórmula simples: “é um bruzundanguense conhecido na Europa”.
     Porque a mania daquele povo é querer à força que o seu país e os seus homens sejam conhecidos no estrangeiro, embora ele não possua uma atividade, de qualquer natureza, nem mesmo um homem notável que possa atrair a curiosidade dos estranhos sobre a região e as suas cousas.
     De modo que, qualquer referência a ele ou a um natural dele, se ela é favorável e elogiosa, logo alvorota o povo da, Bruzundanga, que fica crente de que em todas as aldeias de países afastados não se fala em outra cousa senão na sua nação.
     Quando, porém, se diz lá fora que, na sua população, há milhões de javaneses e mestiços deles (o que é verdade), imediatamente todos se aborrecem, zangam-se, lançando tristemente o labéu de vergonha sobre os seus compatriotas de tal extração.
     É uma tolice deles (aí entram também muitos javaneses), pois tanto os de origem javanesa como os de outras raízes raciais têm dado inteligências e atividades que se equivalem. Não há este de tal procedência que sobrepuje aquele de outra procedência, nem mesmo na quantidade; os de uma origem não sobrelevam os de outra, isto dura há três séculos e poucos; e, pode-se dizer, que é uma prova perfeitamente experimental, obtida no laboratório da história. Tão bom como tão bom...
     Com tal mania, não é de admirar que, de uma hora para outra, Pancôme ficasse sendo o ídolo da Bruzundanga; e o governo, para premiá-lo e satisfazer a opinião pública, apressou-se em nomeá-lo embaixador junto ao governo de uma potência europeia, e foi (lembro-me agora) quando embaixador, que obteve as condecorações a que aludi em capítulo anterior.
     E de tal forma a população do país se convenceu da imensa inteligência, das geniais vistas do visconde, de que era admirado no mundo inteiro, e de que, também todos os sábios do Universo respeitavam-no religiosamente, que ao chegar ele da estranja para assumir a pasta do Exterior, toda ela correu em massa para a rua, quase lhe desatrelam, os mais entusiastas, os cavalos do carro, aclamando-o freneticamente pelas ruas em que passou, como se recebesse a cidade Júlio César vitorioso ou Descartes, caso a natureza da glória deste se compadecesse com admirações irrefletidas.
     Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logo no início do seu ministério, tomou o visconde estas primordiais; usar pape! de linho nos ofícios, estabelecer uma cozinha na sua secretaria e baixar uma portaria, determinando que os seus funcionários engraxassem as botas todos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas reformas, pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada.
     Em seguida, convenceu o mandachuva que o país devia ser conhecido na Europa por meio de uma imensa comissão de propaganda e de anúncios nos jornais, cartazes nas ruas, berreiros de camelots, letreiros luminosos, nas esquinas e em outros lugares públicos.
     A sua vontade foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezes apregoada nos boulevards como o último específico de farmácia ou como uma marca de automóveis. Contam-se até engraçadas anedotas.
     Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houve um que ficou célebre e assim rezava: “Bruzundanga, País rico — Café, cacau e borracha. Não há pretos.”
     Não ficou aí. Mostrou a necessidade de uma esquadra poderosa e o mandachuva encomendou uma custosíssima, para o serviço da qual o país não tinha marinheiros dignos, arsenais, e que pôs de alcateia a República das Planícies.
     Tudo isto e mais a transformação da capital, da noite para o dia, fato a que já aludi, endividaram sobremodo o país e, com a vinda de um inepto mandachuva, para cuja ascensão ele muito concorreu, a Bruzundanga veio a ficar na miséria.
     Por essas e outras, foi Pancôme proclamado o maior estadista da nação, embora a situação interna, durante o seu longo ministério (quase dez anos), piorasse sempre e cada vez mais, sem que ele apresentasse ou lembrasse medidas para remediar um tal estado de descalabro.
     Por essas e outras, foi Pancôme proclamado o maior estadista da nação, embora a situação interna, durante o seu longo ministério (quase dez anos), piorasse sempre e cada vez mais, sem que ele apresentasse ou lembrasse medidas para remediar um tal estado de descalabro.
     Basta dizer, para se avaliar a triste situação interna da extravagante nação de que lhes dou notícias, que, nos arredores da capital, se morria à míngua, à fome, as terras estavam abandonadas e invadidas pelas depredadoras saúvas, a população roceira não tinha direitos nem justiça e vivia à mercê de cúpidos e ferozes senhores de latifúndios, cuja sabedoria agronômica era igual à dos seus capatazes ou feitores.
     Mas o povo, graças aos poetas e jornalistas simoníacos, não queria capacitar-se de que Pancôme era simplesmente decorativo e continuou a admirá-lo como um semideus.
     E ele fazia o que queria e se agora estava atrapalhado com a nomeação de um amanuense, não era porque fosse do seu natural respeitar as leis.
     Há um pequeno e passageiro temor da natureza daquele que sentem os heróis quando vão entrar em combate.
     Já nomeara pouco mais de meia dúzia por meio de concurso mas não estava satisfeito com essas nomeações.
     É verdade que os que nomeara, trajavam regularmente, engraxavam as botas e não tinham nunca o colarinho sujo. Eram já grandes qualidades, porque de tal forma viera a encontrar o pessoal da secretaria, esbodegado, relaxado, vestindo roupas baratas, morando nos subúrbios, que foi necessária toda a sua energia para que ele modificasse tão maus hábitos.
     As verbas do ministério pagaram a quase todos, desde o servente até um chefe de seção, ternos bem talhados, camisas finas, botinas de bom cabedal, etc. Assim, conseguira dar um ar de Foreign Office ou de Quai d’Orsay à modesta Secretaria de Estrangeiros do modesto país da Bruzundanga.
     A sua atrapalhação estava na tal história do concurso, pois até ali, devido a tão tola formalidade, não conseguira ter nos cargos de amanuenses moços bonitos e demais, para fazer concursos, sempre apareciam uns rebarbativos candidatos de raça javanesa, com os quais ele embirrava solenemente.
     Da última vez, até, quase que um atrevido javanês puro consegue o primeiro lugar, tal era o brilho de suas provas; Pancôme, porém, arranjou as cousas tão lealmente diplomáticas que o rapaz perdeu a última prova.
     Não queria que a cousa se repetisse e estudava o modo de, evitando o concurso, encontrar um candidato bonito, bem bonito, não sendo em nada javanês, que pudesse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou do Afganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga.
     Todos os candidatos que se haviam apresentado não preenchiam essa exigência do seu alto critério governamental.
     Alguns eram mesmo feios, outros tinham toques de javanês, e nenhum a beleza radiante que ele queria ver nos amanuenses.
     Essas suas sábias medidas, para recrutamento do seu pessoal, levaram para a sua secretaria moços bonitos e excelentes mediocridades, que ainda procuravam demonstrar a sua principal qualidade intelectual, publicando borracheiras idiotas ou compilações rendosas e pesadas ao Tesouro; entretanto, em certo e determinado sentido, foram profícuas, como teve ocasião de verificar o sucessor de Pancôme.
     Este, por ocasião de uma festa de sustância, encontrou nos amanuenses e oficiais da escola do visconde, soberbos estofadores, magníficos tapeceiros, exímios ornamentadores de salas; e, de tal forma um dado arrumou retratos nas paredes de seu salão, que o ministro da Inglaterra ofereceu-lhe um bem remunerado lugar na domesticidade do castelo de Windsor.
     O obstáculo do concurso fazia o visconde pensar a toda a hora e instante na vaga de amanuense, e ele já se resolvera a removê-lo por completo, sem dar nenhuma satisfação a quem quer que fosse, quando, ao despachar o expediente daquele dia, lhe veio ter às mãos um requerimento com fotografias apensas.
     Em geral, os ministros não leem o que despacham; limitam-se a rubricar o despacho do secretário ou oficial-de-gabinete. Pancôme não fazia exceção na regra, mas aquele papel, com fotografias, despertou-lhe a atenção. Leu-o. Tratava-se do bacharel Sune Wolfe, que requeria ser provido no lugar vago de amanuense; e, para que avaliar pudesse o senhor ministro da sua beleza física, juntava aqueles dous retratos, um de perfil e outro de frente.
     A secretaria tinha exigido selos de juntada em tais documentos e o despacho do secretário era nesse sentido. O visconde, como sempre, pouco disposto a obedecer às leis, não se incomodou; e, cheio de admiração pela boniteza do requerente, riscou o despacho e escreveu com a sua letra um outro, determinando que o candidato comparecesse à sua presença.
     No dia seguinte o rapaz foi ter com o ministro, que ficou embasbacado diante do lindo candidato.
     De fato, era bonito, bonitinho mesmo, desbotado de cútis, e parecia até fabricado em Saxe ou em Sèvres. Tinha uns lindos dentes, um belo cabelo cuidado, não era alto, mas era bem apessoado. Merecia muito bem um bom casamento rico; contudo, o visconde quis melhor examiná-lo e perguntou:

— O senhor sabe sorrir bem?

     O candidato não se atrapalhou e acudiu com firmeza:

— Sei, Excelência.
— Vamos ver.

     E o lindo moço repuxou os lábios, entortou o pescoço de um lado, gracilmente, ajeitou os olhos e todo ele foi uma lindeza de impressionar o pacato secretário que, ao lado, assistia ao exame, completamente embrulhado em um fraque venerável e cheio de embevecimento.
     Contente com isto, o ministro tratou de ir mais longe na experiência das excepcionais qualidades que o candidato revelava e convidou-o com voz paternal:

— Aperte a mão, ali, do Major Marmeleiro (o secretário). Faça o favor.

     O examinando não se fez de rogado. Juntou os pés, curvou docemente o busto, levantou o braço e, sempre sorrindo, cumprimentou:

— Senhor Major Marmeleiro...

     Pancôme não cabia em si de contentamento com a sideral aquisição que estava ali. Que elegância! Que lindeza! Dessa feita é que ele ia fazer uma nomeação justa e sábia. Arre! Não era sem tempo...
     Era preciso, porém, ver se o donzel conhecia algumas outras cousas de sociedade.

— O senhor sabe dançar? perguntou.
— Sei, Excelentíssimo.
— Vamos ver.
— Mas só e sem música, senhor visconde?!

     Ordenou o ministro que o contínuo fosse chamar um certo empregado, exímio em dança; e, enquanto ele ia buscar o funcionário, disse Pancôme a Marmeleiro:

— Você sabe assoviar, major?

     O secretário estava sempre disposto a responder afirmativamente ao visconde e não se deteve um minuto:

— Sei, senhor visconde.
— Bem, disse Pancôme, assovie aí uma valsa.

     A “dama” já tinha chegado e Marmeleiro agora hesitava.

— Não sabe? indagou o ministro severamente.
— Só sei as “Laranjeiras”.
— De quem é isso? perguntou Pancôme.
— É do Hamélio.
— Não é lá muito elegante, considerou o visconde, mas... serve, serve!

     Marmeleiro começou a assoviar com todo o recato que o lugar exigia — fiu, fiu, fiu... — e os dous dançaram com todas as cerimônias e ademanes dignos de gabinete tão diplomático e do respeito que merecia a presença daquele alto herói ministerial. Pancôme verificou com um júbilo paternal que o tal Sune continuava a ser uma maravilha! Que soberbo amanuense ia ele ser! Bendita Bruzundanga que produzia daquilo!
     Acabaram de valsar ao som do melodioso assovio de Marmeleiro, e o visconde falou, então, com mansuetude, ao candidato:

— Descanse um pouco, meu filho; e, depois, escreva-me uma carta ao ministro de Interior sobre a necessidade da Bruzundanga se fazer representar no Congresso de Encaixotamento de Pianos em Seul.

     O lindo Wolfe esteve a pensar um pouco e retrucou titubeando:

— Vossa Excelência compreende que... Eu! De uma hora para outra... Compreende Vossa Excelência que não tenho prática... Com o tempo... Mais tarde...

     Era só redigir cartas o que ele não sabia; mas, sendo elegante, bonitinho, bom dançador, tinha todas as boas qualidades para um aperfeiçoado amanuense do extraordinário Pancôme.
     Tendo em vista as necessidades da representação da Bruzundanga, o visconde nomeou-o logo, sem detença alguma. Foi uma acertada nomeação, e sábia, que veio provar o quanto são tolos os regulamentos e as leis que exigem dos amanuenses a vetusta ciência de saber redigir cartas.
     Se não fosse um herói, uma notabilidade universal o ministro, talvez o galante Sune não tivesse sido aproveitado e os estrangeiros não teriam uma favorável ideia da boniteza dos homens da Bruzundanga; mas era, felizmente, e pôde, portanto, pôr de parte as tolas exigências legais, e o país, com tal aquisição para o seu funcionalismo, adiantou um século.
     É verdade que o Marechal Soult, duque da Dalmácia, e Guizot que em celebridade e notoriedade universal talvez não invejassem as de Pancôme, foram ministros de França, e, ao que consta, nunca desrespeitaram ostensivamente as leis do seu tempo. Isto aconteceu em França; mas na Bruzundanga as cousas se passam de outro modo e aquele país só tem ganho com tal proceder, como acabamos de ver.
     Feito amanuense, aprendeu logo a copiar minutas e, em menos de seis anos, Sune, o tal da carta, acabou eleito, por unanimidade, membro da Academia de Letras da Bruzundanga.
     Ficou sendo o que aqui se chama — um “expoente”.

Os Bruzundangas - Capítulo XXI: Pancôme, as suas Ideias e o Amanuense
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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