sexta-feira, 1 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Nova fase da luta: II - Canudos

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Nova fase da luta 


II - 

Canudos

     Canudos tinha naquela ocasião — foram uma a uma contadas depois — 5.200 vivendas; e como estas, cobertos de tetos de argila vermelha, mesmo nos pontos em que se erigiam isoladas, mal se destacavam, em relevo, no solo, acontecia que as vistas, acomodadas em princípio ao acervo de pardieiros compactos em torno da praça, se iludiam, avolumando-a desproporcionadamente. A perspectiva era empolgante. Agarrava-a o tom misterioso do lugar. Repugnava admitir-se que houvesse ali embaixo tantas vidas. A observação mais afincada, quando transitório armistício a permitia, não lograva distinguir um vulto único, a sombra fugitiva de um homem; e não se ouvia o rumor mais fugaz. Lembrava uma necrópole antiga ou então, confundidos todos aqueles tetos e paredes no mesmo esboroamento — uma cata enterroada e enorme, roída de erosões, abrindo-se em voçorocas e pregueando-se em algares.
     Que o observador, porém, não avultasse demais sobre o parapeito: as balas ressaltando a súbitas, de baixo, revelavam-lhe, de pronto, a população entocada. Bastava que um disparo qualquer, a qualquer hora, atroasse o alto do morro para que dali refluísse, inevitável, o revide imediato. Porque os jagunços, se não tinham mais a iniciativa dos ataques, replicavam com o vigor antigo. Exauriam-se sem perder o aprumo, timbrando no disfarçar quaisquer sintomas de enfraquecimento. Compreendia-se, no entanto, que este era completo. Objetivavam-no os próprios escombros em que se entaliscavam, ocultos. Além disso, lá não estava apenas uma guarnição de valentes incorrigíveis. Havia mulheres e crianças sobre que rolavam durante três meses massas de ferros e de chamas, e elas punham muitas vezes no fragor das refregas a nota comovedora do pranto.
     Dias antes um schrapnel arrojado da Favela, e que passara beirando as cimalhas da igreja nova, arrebentara dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel perturbando os artilheiros do coronel Olímpio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante...
     Assim, duplamente bloqueados, entre milhares de soldados e milhares de mulheres — entre lamentações e bramidos, entre lágrimas e balas — os rebeldes se renderiam de um momento para outro. Era fatal. A segurança do pleito já dera mesmo ensanchas a grandes temeridades. Um sargento do 5.° de Artilharia por duas vezes se aventurou, à noite, a atravessar todo o largo, penetrando no templo em ruínas, atirando lá dentro duas bombas de dinamite, que não explodiram. Um alferes do 25.°, dias depois, copiando-lhe o arrojo, lançara fogo aos restos da igreja velha, que ardera toda.
     De sorte que os lutadores vindo noviciar na pendência desigual, cientes destas coisas, recaíam na preocupação primitiva: que o inimigo in extremis tivesse ainda fôlego para lhes facultar desdobrassem o destemor e a força. A musculatura de ferro das brigadas novas ansiava a medir-se com o espernear da insurreição. Os que ali estavam havia tantos meses tinham glórias demais. Fartos, impando de triunfos e agora, mercê dos comboios diários, com a subsistência garantida, julgavam inútil despender mais vidas para que se apressasse a rendição inevitável. Quedavam numa mornidão irritante.
     O acampamento, afora os intervalos, que se tornavam maiores, dos assaltos, tinha a placabilidade de uma pequena povoação bem policiada. Nada que recordasse a campanha feroz. Na sede da comissão de engenharia o general Artur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas palestras. Discorria-se sobre assuntos vários de todo opostos à guerra; casos felizes d'antanho, anedotas hilares, ou então alentadas discussões sobre política geral. Enquanto observadores tenazes, num invejável apego à ciência, registravam, hora por hora, pressões e temperaturas; inscreviam, invariável, um zero na nebulosidade do céu; e consultavam muito graves o higrômetro. Na farmácia militar, estudantes em férias forçadas riam ruidosamente e recitavam versos; e pelas paredes ralas de todas as choupanas ridentes, de folhagens pintalgadas de flores murchas de juazeiros, transudavam vezes e risos dos que lá dentro não tinham temores, que lhes agourentassem as horas ligeiras e tranquilas. As balas que passavam, raras, repelidas pelas cristas dos cerros em trajetórias altas, eram inofensivas. Ninguém as percebia mais. Eram, indicava-o a precisão rítmica com que estalavam ou esfuziavam nos ares, lançadas por atiradores certos , que em Canudos parecia estarem apostados a lembrar os sitiantes que o sertanejo velava. Mas não impressionavam, embora algumas, em trajetórias baixas, batessem no pano das barracas, em vergastadas rijas; como não impressionavam mais os tiroteios fortes, que ainda surgiam, às vezes, inopinadamente, à noite.
     A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltado para a praça, fazia ao acaso um reclamo qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a coisas escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final — a bala...
     Os soldados do 5.° de Polícia, malgrado o ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo em descantes mitigando saudades dos rincões do S. Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios, terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam, alguns, cantando; e aplacada a refrega volviam ao folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos "rasgados" nos machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando.


O charlatanismo da coragem

     Toda a gente se adaptara à situação. O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida. Os antigos lutadores andavam por fim pelo acampamento inteiro, da extrema direita à extrema esquerda, sem as primitivas cautelas. Ao chegarem aos altos expostos mal estugavam o passo ante os projetis, que lhes caíam logo à roda, batendo, ríspidos, no chão. Riam-se dos recém-vindos inexpertos, que transpunham os pontos enfiados, retransidos de sustos, correndo encolhidos, quase de cócoras, num agachamento medonhamente cômico; ou que não refreavam sobressaltos ante a bala que esfuziava perto, riscando um assovio suavíssimo nos ares, como um psiu insidiosamente acariciador da morte; ou que não tolhiam interjeições vivas ante incidentes triviais — dois, três ou quatro moribundos, diariamente removidos dos pontos avançados.
     Alguns estadeavam o charlatanismo da coragem. Um esnobismo lúgubre. Fardados — vivos dos galões irradiantes ao sol, botões das fardas rebrilhando — quedavam numa aberta qualquer livremente devassada ou aprumavam-se, longe, no cabeço desabrigado de um cerro distante dois quilômetros do arraial, para avaliarem o rigor da mira dos jagunços em alcance máximo. Calejara-os a luta. Narravam aos novos companheiros, insistindo muito nos pormenores dramáticos, as provações sofridas. Os episódios sombrios da Favela com o seu cortejo temeroso de combates e agruras. Os longos dias de privações que vitimaram os próprios oficiais, um alferes, por exemplo, morrendo embuchado, ao desjejuar com punhados de farinha após três dias de fome. As lides afanosas das caçadas aos cabritos ariscos ou das colheitas de frutos avelados nos arbustos mortos. Todos os incidentes. Todas as minúcias. E concluíam que o que restava fazer era pouco — um magro respigar no rebotalho da seara guerreira inteiramente ceifada — porque o antagonista desairado e frágil estertorava agonizando. Aquilo era agora um passatempo ruidoso, e nada mais.
     A divisão auxiliar, porém, não podia ater-se a papel tão secundário: fazer trinta léguas de sertão, apenas para contemplar — espectadora inofensiva e armada dos pés à cabeça — o perdimento do arraial cedendo a pouco e pouco àquele estrangulamento vagaroso, sem a movimentação febril e convulsiva de uma batalha...

continua na página 316...
______________________

Leia também:

OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: V  Uma missão abortada 
OS SERTÕES - Nova fase da luta: II - Canudos
______________________

Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário