sexta-feira, 8 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Últimos dias: II. Depoimento do autor

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Últimos dias 


II -


Depoimento do autor

     Desvendemo-las rudemente.
     Deponhamos.
     O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante.
           Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de aguentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender.
     Dispensava-a o soldado atreito à tarefa.
          Esta era, como vimos, simples. Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador; impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até à primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo; e, ali chegados esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos carrascos, surgiam ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas consequências, porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma.
     Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros o faziam. Na maioria emudeciam, estóicos, inquebráveis — defrontando a perdição eterna. Exigiam-lhes vivas à República. Ou substituíam essa irrisão dolorosa pelo chasquear franco e insultuoso de alusões cruéis, num coro hilar e bruto de facécias pungentes. E degolavam-nos, ou cosiam-nos a pontaços. Pronto. Sobre a tragédia anônima, obscura, desenrolando-se no cenário pobre e tristonho das encostas eriçadas de cactos e pedras, cascalhavam rinchavelhadas lúgubres, e os matadores volviam para o acampamento. Nem lhes inquiriam pelos incidentes da empresa. O fato descambara lastimavelmente à vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia -se no arraial daquele processo sumariíssimo e isto, em grande parte, contribuía para a resistência doida que patentearam. Render-se-iam, certo, atenuando os estragos e o aspecto odioso da campanha, a outros adversários. Diante dos que lá estavam, porém, lutariam até à morte.
          E quando, afinal jugulados, eram conduzidos à presença dos chefes militares, iam conformados ao destino deplorável. Revestiam-se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre lutadores de tão variados matizes, e tão discordes caracteres, mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor.
          Alguns se aprumavam com altaneria incrível, no degrau inferior e último da nossa raça. Notemos alguns exemplos.
          Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em fins de setembro, foi conduzido à presença do comandante da 1.ª coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e do recontro em que fora colhido Era espigado e seco Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços desnudos, oscilando — davam-lhe a aparência rebarbativa de um orango valetudinário.
     Não transpôs a couceira da tenda.
     Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo.
          O general de brigada João da Silva Barbosa, da rede em que convalescia de ferimento recente, fez um gesto Um cabo de esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o intento Achegou-se com o braço. Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do condenado. Este, porém, auxiliou-o tranquilamente; desceu o nó embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se...
          Perto, um tenente do estado-maior de primeira classe e um quintanista de medicina contemplavam aquela cena.
          E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram, repentinamente, linhas admiráveis — terrivelmente esculturais — de uma plástica estupenda.
     Um primor de estatuária modelado em lama.
          Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível e firme; mudo, a face imóvel a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempenho impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa.
     E estas coisas não impressionavam...
          Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças. Fazia mister, porém, que se não revelassem perigosas. Foi o caso de uma mamaluca quarentona, que apareceu certa vez, presa, na barraca do comandante-em-chefe. O general estava doente. Interrogou-a no seu leito de campanha — rodeado de grande número de oficiais. O inquérito resumia-se às perguntas do costume — acerca do número de combatentes, estado em que se achavam, recursos que possuíam, e outras, de ordinário respondidas por um "sei não!" decisivo ou um "e eu sei?" vacilante e ambíguo. A mulher, porém, desenvolta, enérgica e irritadiça, espraiou-se em considerações imprudentes. "Nada valiam tantas perguntas. Os que as faziam sabiam bem que estavam perdidos. Não eram sitiantes, eram presos. Não seriam capazes de voltar, como os das outras expedições; e em breve teriam desdita maior ficariam, todos, cegos e tateando à toa por aquelas colunas. . ." E tinha a gesticulação incorreta, desabrida e livre.
          Irritou. Era um virago perigoso. Não merecia o bem-querer dos triunfadores. Ao sair da barraca, um alferes e algumas praças seguraram-na.
          Aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa agourentando a vitória próxima — foi degolada...
          Poupavam-se as tímidas, em geral consideradas trambolhos incômodos no acampamento, atravessando-o, como bruacas imprestáveis.
          Era o caso de uma velha que se aboletara com dois netos de cerca de dez anos junto à vertente em que acampava o piquete de cavalaria. Os pequenos, tolhiços, num definhamento absoluto, não andavam mais; tinham volvido a engatinhar. Choravam desapoderadamente, de fome. E a avó, desatinada, esmolando pelas tendas os restos das marmitas, e correndo logo a acalentá-los, aconchegando-lhes dos corpos os frangalhos das camisas; e deixando-os outra vez, agitante, infatigável no desvelo, andando aqui, ali, à cata de uma blusa velha, de uma bolacha caída do bolso dos soldados, ou de um pouco d'água; acurvada pelo sofrimento e pela idade, titubeando de um para outro lado, indo e vindo, cambeteante e sacudida sempre por uma tosse renitente, de tísica — constrangia os corações mais duros. Tinha o que quer que fosse de um castigo; passava e repassava como a sombra impertinente e recalcitrante de um remorso...
          A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia -se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava ainda, a poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois polos — o incêndio e a faca.
          Justificavam-se: o coronel Carlos Teles poupara certa vez um sertanejo prisioneiro. A ferocidade dos sicários retraíra-se diante da alma generosa de um herói...
          Mas este pagara o deslize imperdoável de ser bom. O jagunço, que salvara, conseguira fugir e dera-lhe o tiro que o removera do teatro da luta. Acreditava-se nestas coisas. Inventavam-nas. Eram antecipados recursos absolutórios. Exageravam-se, calculadamente, outras: os martírios dos amigos trucidados, caídos nas tocaias traiçoeiras, ludibriados depois de cadáveres e postos como espantalhos à orla dos caminhos...A selvageria impiedosa amparava-se à piedade pelos companheiros mortos Vestia o luto chinês da púrpura e, lavada em lágrimas, lavava-se em sangue.


Um grito de protesto

     Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali.
     Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele matadouro.
     O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.
     E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa Desse modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.
     Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntesis; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.
     Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo.
     Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme das raças — e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.
     A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro.
     Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa — esta página sem brilhos...

continua na página 329...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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