terça-feira, 5 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Não houve nada a fazer

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Não houve nada a fazer. Quando por fim se convenceu de que estavam esgotadas todas as instâncias, Ofélia voltou a Nova Orleans. A única coisa que conseguiu da mãe foi que se despedisse dela, e Fermina Daza concordou depois de muitas súplicas, mas sem lhe permitir que entrasse na casa: tinha jurado pelos ossos da mãe, que para ela, naqueles dias de trevas, eram os únicos que continuavam limpos.
     Numa de suas primeiras visitas, falando de seus navios, Florentino Ariza tinha feito a Fermina Daza um convite formal para que embarcasse numa viagem de descanso pelo rio. Com mais um dia de trem podia ir até a capital da república, que eles, como a maioria dos caribenhos de sua geração, continuavam chamando pelo nome que teve até o século anterior: Santa Fé. Mas ela conservava as prevenções do mando e não queria conhecer uma cidade gelada e sombria onde as mulheres só saíam de casa para a missa das cinco, e não podiam entrar nas sorveterias nem nas repartições públicas, segundo lhe haviam dito, e onde havia a toda hora engarrafamentos de enterros nas ruas e uma garoa miúda desde os tempos do descobrimento: pior do que em Paris. Em compensação, sentia uma atração muito forte pelo rio, queria ver os jacarés tomando sol nas pontas de areia, queria ser acordada no meio da noite pelo choro de mulher dos peixes-boi, mas a ideia de uma viagem tão difícil, na sua idade, e ainda por cima viúva e só, lhe parecia irreal.
     Florentino Ariza reiterou o convite mais adiante, quando ela resolvera continuar viva sem o marido, e então lhe pareceu mais viável. Mas depois da briga com a filha, azedada pelas injúrias ao pai, pelo rancor ao marido morto, pela raiva de lembrar os salamaleques hipócritas de Lucrécia dei Real, que teve por tantos anos como sua melhor amiga, ela mesma se sentia de sobra na própria casa. Uma tarde, enquanto tomava sua infusão de folhas universais, olhou para o pântano do quintal, onde não tornaria a brotar a árvore da sua desventura.

— O que eu gostaria de fazer era me soltar desta casa, andando, em linha reta, reta, reta, e não voltar nunca mais — disse.

— Vá num navio — disse Florentino Ariza.

     Fermina Daza o olhou pensativa. 

— Pois olhe que podia ser — disse. 

     Não tinha pensado nisso um momento antes de falar, mas bastou admitir a possibilidade para dar a coisa como feita. O filho e a nora ouviram encantados. Florentino Ariza se apressou a precisar que Fermina Daza seria hóspede de honra em seus navios, haveria para ela um camarote arranjado como se fosse sua casa, um serviço perfeito, e o comandante em pessoa se devotaria à sua segurança e seu bem estar. Levou mapas da rota para entusiasmá-la, cartões postais de poentes furibundos, poemas ao paraíso primitivo do Madalena escritos por viajantes ilustres, ou que tinham chegado a tal pela excelência do poema. Ela lhes dava uma olhadela quando estava no humor certo. 

— Você não precisa me enganar como a uma criança — dizia. — Se vou, é porque resolvi, não pelo interesse da paisagem.

     Quando o filho sugeriu que sua esposa a acompanhasse, ela cortou a proposta pela raiz: "Estou muito crescida para que alguém cuide de mim." Ela própria acertou os pormenores da viagem. Sentiu um imenso descanso com a ideai de viver oito dias de subida e cinco de descida sem nada além do indispensável: meia dúzia de vestidos de algodão, suas coisas de toucador e asseio, um par de sapatos para embarcar e desembarcar e as babuchas caseiras para a viagem, e nada mais: o sonho de sua vida.
     Em janeiro de 1824, o comodoro João Bernardo Elbers, fundador da navegação fluvial, tinha içado a bandeira do primeiro navio a vapor que sulcou o rio Madalena, um traste primitivo de quarenta cavalos de força chamado Fidelidade. Mais de um século depois, num 7 de julho às seis da tarde, o doutor Urbino Daza e a mulher acompanharam Fermina Daza a embarcar no navio que a levaria em sua primeira viagem pelo rio. Era o primeiro construído nos estaleiros locais, que Florentino Ariza batizara em memória de seu antecessor glorioso: Nova Fidelidade. Fermina Daza jamais pôde acreditar que aquele nome tão significativo para eles fosse deveras uma casualidade histórica, e não mais uma graça do romantismo crônico de Florentino Ariza.
     Em todo caso, ao contrário de outros navios fluviais, antigos e modernos, o Nova Fidelidade tinha junto do camarote do comandante um camarote suplementar, amplo e confortável: uma sala de visitas com móveis de bambu de cores festivas, um quarto de dormir matrimonial decorado de alto a baixo com motivos chineses, um banheiro com banheira e chuveiro, um mirante coberto, muito amplo, com samambaias dependuradas e uma visão completa pela frente e pelos dois bordos do navio, e um sistema de refrigeração silencioso que mantinha todo o recinto a salvo do estrondo exterior num clima de primavera perpétua. Este aposento de luxo, conhecido como Camarote Presidencial porque ali haviam viajado até então três presidentes da república, não tinha um propósito comercial, reservado que era a autoridades de categoria e convidados muito especiais. Florentino Ariza o fizera construir com essa finalidade de imagem pública logo que foi nomeado presidente da C.F.C., mas com a certeza íntima de que mais cedo ou mais tarde ia ser o refúgio feliz de sua viagem de núpcias com Fermina Daza.
     Chegado o dia, com efeito, ela tomou posse do Camarote Presidencial em sua condição de dona e senhora. O comandante do navio fez as honras de bordo ao doutor Urbino Daza e esposa, e a Florentino Ariza, com champanha e salmão defumado. Chamava-se Diego Samaritano, vestia uniforme de linho branco, de uma correção absoluta, do bico dos botins ao boné com o escudo da C.F.C. bordado em fio de ouro, e tinha em comum com os demais capitães do rio uma corpulência de paineira, uma voz peremptória e maneiras de cardeal florentino. Às sete da noite deram o primeiro sinal de partida, e Fermina Daza sentiu-o ressoar com uma dor aguda dentro do ouvido esquerdo. Na noite anterior tinha tido sonhos sulcados de maus pressentimentos que não ousou decifrar. Muito cedo de manhã se fez levar ao vizinho panteão do seminário, que então se chamava Cemitério da Mangueira, e se reconciliou com o marido morto, de pé diante da sua cripta, num monólogo em que soltou os justos reproches que trazia atravessados na garganta. Depois lhe contou os pormenores da viagem e se despediu até muito breve. Não quis dizer a ninguém mais que partia, como fizera quase sempre que viajava à Europa, para evitar os adeuses exaustivos. Apesar de suas tantas viagens tinha a impressão de ser esta a primeira, e à medida que o dia rodava lhe aumentava a aflição. Uma vez a bordo, se sentiu abandonada e triste, e queria ficar só para chorar.
     Quando soou o último aviso, o doutor Urbino Daza e a mulher se despediram dela sem dramas, e Florentino Ariza os acompanhou à passarela de desembarque. O doutor Urbino Daza se afastou para lhe ceder o lugar depois de passar sua esposa, e só então percebeu que Florentino Ariza também partia em viagem. O doutor Urbino Daza não conseguiu disfarçar seu desconcerto.

— Mas disto não havíamos falado — disse.

     Florentino Ariza lhe mostrou a chave do seu camarote com uma intenção demasiado evidente: um camarote ordinário na coberta comum. Mas isso não pareceu ao doutor Urbino Daza prova suficiente de inocência. Dirigiu à mulher um olhar de náufrago, em busca de um ponto de apoio para seu desconcerto, mas se encontrou com uns olhos gelados. Ela lhe disse muito baixo, com voz severa: "Você também?" Sim: ele também, como a irmã Ofélia, pensava que o amor tinha uma idade em que começava a ser indecente. Mas soube reagir a tempo, e se despediu de Florentino Ariza com um aperto de mão mais resignado que agradecido.
     Florentino Ariza os viu desembarcar da amurada do salão. Tal como esperava e desejava, o doutor Urbino Daza e a mulher se voltaram para olhá-lo antes de entrar no automóvel, e ele fez um aceno de despedida. Os dois retribuíram. Continuou na amurada até o automóvel desaparecer na poeirada do pátio de carga, e depois foi para o seu camarote, para pôr um traje mais adequado ao primeiro jantar a bordo, na sala de jantar privada do comandante.

continua na página 244...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Não houve nada a fazer
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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