O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
.
.
continuando...
Não houve nada a fazer. Quando por fim se convenceu de que estavam esgotadas
todas as instâncias, Ofélia voltou a Nova Orleans. A única coisa que conseguiu da
mãe foi que se despedisse dela, e Fermina Daza concordou depois de muitas
súplicas, mas sem lhe permitir que entrasse na casa: tinha jurado pelos ossos da
mãe, que para ela, naqueles dias de trevas, eram os únicos que continuavam limpos.
Numa de suas primeiras visitas, falando de seus navios, Florentino Ariza tinha
feito a Fermina Daza um convite formal para que embarcasse numa viagem de
descanso pelo rio. Com mais um dia de trem podia ir até a capital da república, que
eles, como a maioria dos caribenhos de sua geração, continuavam chamando pelo
nome que teve até o século anterior: Santa Fé. Mas ela conservava as prevenções do
mando e não queria conhecer uma cidade gelada e sombria onde as mulheres só
saíam de casa para a missa das cinco, e não podiam entrar nas sorveterias nem nas
repartições públicas, segundo lhe haviam dito, e onde havia a toda hora
engarrafamentos de enterros nas ruas e uma garoa miúda desde os tempos do
descobrimento: pior do que em Paris. Em compensação, sentia uma atração muito
forte pelo rio, queria ver os jacarés tomando sol nas pontas de areia, queria ser
acordada no meio da noite pelo choro de mulher dos peixes-boi, mas a ideia de uma
viagem tão difícil, na sua idade, e ainda por cima viúva e só, lhe parecia irreal.
Florentino Ariza reiterou o convite mais adiante, quando ela resolvera continuar
viva sem o marido, e então lhe pareceu mais viável. Mas depois da briga com a filha,
azedada pelas injúrias ao pai, pelo rancor ao marido morto, pela raiva de lembrar os
salamaleques hipócritas de Lucrécia dei Real, que teve por tantos anos como sua
melhor amiga, ela mesma se sentia de sobra na própria casa. Uma tarde, enquanto
tomava sua infusão de folhas universais, olhou para o pântano do quintal, onde não
tornaria a brotar a árvore da sua desventura.
— O que eu gostaria de fazer era me soltar desta casa, andando, em linha reta,
reta, reta, e não voltar nunca mais — disse.
— Vá num navio — disse Florentino Ariza.
Fermina Daza o olhou pensativa.
— Pois olhe que podia ser — disse.
Não tinha pensado nisso um momento antes de falar, mas bastou admitir a
possibilidade para dar a coisa como feita. O filho e a nora ouviram encantados.
Florentino Ariza se apressou a precisar que Fermina Daza seria hóspede de honra
em seus navios, haveria para ela um camarote arranjado como se fosse sua casa, um
serviço perfeito, e o comandante em pessoa se devotaria à sua segurança e seu bem
estar. Levou mapas da rota para entusiasmá-la, cartões postais de poentes
furibundos, poemas ao paraíso primitivo do Madalena escritos por viajantes
ilustres, ou que tinham chegado a tal pela excelência do poema. Ela lhes dava uma
olhadela quando estava no humor certo.
— Você não precisa me enganar como a uma criança — dizia. — Se vou, é porque
resolvi, não pelo interesse da paisagem.
Quando o filho sugeriu que sua esposa a acompanhasse, ela cortou a proposta
pela raiz: "Estou muito crescida para que alguém cuide de mim." Ela própria
acertou os pormenores da viagem. Sentiu um imenso descanso com a ideai de viver
oito dias de subida e cinco de descida sem nada além do indispensável: meia dúzia
de vestidos de algodão, suas coisas de toucador e asseio, um par de sapatos para
embarcar e desembarcar e as babuchas caseiras para a viagem, e nada mais: o sonho
de sua vida.
Em janeiro de 1824, o comodoro João Bernardo Elbers, fundador da navegação
fluvial, tinha içado a bandeira do primeiro navio a vapor que sulcou o rio Madalena,
um traste primitivo de quarenta cavalos de força chamado Fidelidade. Mais de um
século depois, num 7 de julho às seis da tarde, o doutor Urbino Daza e a mulher
acompanharam Fermina Daza a embarcar no navio que a levaria em sua primeira
viagem pelo rio. Era o primeiro construído nos estaleiros locais, que Florentino
Ariza batizara em memória de seu antecessor glorioso: Nova Fidelidade. Fermina
Daza jamais pôde acreditar que aquele nome tão significativo para eles fosse
deveras uma casualidade histórica, e não mais uma graça do romantismo crônico de
Florentino Ariza.
Em todo caso, ao contrário de outros navios fluviais, antigos e modernos, o Nova
Fidelidade tinha junto do camarote do comandante um camarote suplementar,
amplo e confortável: uma sala de visitas com móveis de bambu de cores festivas,
um quarto de dormir matrimonial decorado de alto a baixo com motivos chineses,
um banheiro com banheira e chuveiro, um mirante coberto, muito amplo, com
samambaias dependuradas e uma visão completa pela frente e pelos dois bordos do
navio, e um sistema de refrigeração silencioso que mantinha todo o recinto a salvo
do estrondo exterior num clima de primavera perpétua. Este aposento de luxo,
conhecido como Camarote Presidencial porque ali haviam viajado até então três
presidentes da república, não tinha um propósito comercial, reservado que era a
autoridades de categoria e convidados muito especiais. Florentino Ariza o fizera
construir com essa finalidade de imagem pública logo que foi nomeado presidente
da C.F.C., mas com a certeza íntima de que mais cedo ou mais tarde ia ser o refúgio
feliz de sua viagem de núpcias com Fermina Daza.
Chegado o dia, com efeito, ela tomou posse do Camarote Presidencial em sua
condição de dona e senhora. O comandante do navio fez as honras de bordo ao
doutor Urbino Daza e esposa, e a Florentino Ariza, com champanha e salmão
defumado. Chamava-se Diego Samaritano, vestia uniforme de linho branco, de uma
correção absoluta, do bico dos botins ao boné com o escudo da C.F.C. bordado em
fio de ouro, e tinha em comum com os demais capitães do rio uma corpulência de
paineira, uma voz peremptória e maneiras de cardeal florentino. Às sete da noite
deram o primeiro sinal de partida, e Fermina Daza sentiu-o ressoar com uma dor
aguda dentro do ouvido esquerdo. Na noite anterior tinha tido sonhos sulcados de
maus pressentimentos que não ousou decifrar. Muito cedo de manhã se fez levar ao
vizinho panteão do seminário, que então se chamava Cemitério da Mangueira, e se
reconciliou com o marido morto, de pé diante da sua cripta, num monólogo em que
soltou os justos reproches que trazia atravessados na garganta. Depois lhe contou
os pormenores da viagem e se despediu até muito breve. Não quis dizer a ninguém
mais que partia, como fizera quase sempre que viajava à Europa, para evitar os
adeuses exaustivos. Apesar de suas tantas viagens tinha a impressão de ser esta a
primeira, e à medida que o dia rodava lhe aumentava a aflição. Uma vez a bordo, se
sentiu abandonada e triste, e queria ficar só para chorar.
Quando soou o último aviso, o doutor Urbino Daza e a mulher se despediram
dela sem dramas, e Florentino Ariza os acompanhou à passarela de desembarque. O
doutor Urbino Daza se afastou para lhe ceder o lugar depois de passar sua esposa, e
só então percebeu que Florentino Ariza também partia em viagem. O doutor Urbino
Daza não conseguiu disfarçar seu desconcerto.
— Mas disto não havíamos falado — disse.
Florentino Ariza lhe mostrou a chave do seu camarote com uma intenção
demasiado evidente: um camarote ordinário na coberta comum. Mas isso não
pareceu ao doutor Urbino Daza prova suficiente de inocência. Dirigiu à mulher um
olhar de náufrago, em busca de um ponto de apoio para seu desconcerto, mas se
encontrou com uns olhos gelados. Ela lhe disse muito baixo, com voz severa: "Você
também?" Sim: ele também, como a irmã Ofélia, pensava que o amor tinha uma
idade em que começava a ser indecente. Mas soube reagir a tempo, e se despediu de
Florentino Ariza com um aperto de mão mais resignado que agradecido.
Florentino Ariza os viu desembarcar da amurada do salão. Tal como esperava e
desejava, o doutor Urbino Daza e a mulher se voltaram para olhá-lo antes de entrar
no automóvel, e ele fez um aceno de despedida. Os dois retribuíram. Continuou na
amurada até o automóvel desaparecer na poeirada do pátio de carga, e depois foi
para o seu camarote, para pôr um traje mais adequado ao primeiro jantar a bordo,
na sala de jantar privada do comandante.
continua na página 244...
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Não houve nada a fazer
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário