terça-feira, 12 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Últimos dias: V. O assalto

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Últimos dias 


V -


O assalto 

     Foi o que fez o comando-em-chefe contravindo ao propósito de aguardar a rendição sem dispêndio inútil de vidas, pelo enfraquecimento contínuo dos rebeldes.
     Reunidos a 30 de setembro os principais chefes militares, concertaram nos dispositivos do recontro para o dia imediato. E, de acordo com os lineamentos do plano adotado, naquele mesmo dia à noite mobilizaram-se as unidades do combate, ocupando, assim, de véspera, as posições para a investida.
     O assalto seria iniciado por duas brigadas, a 3.ª e 6.ª, dos coronéis Dantas Barreto e João César Sampaio, a primeira endurada por três meses de contínuos recontros e a última, recém-vinda, de combatentes que ansiavam a medir-se com os jagunços. Aquela deixou, então, a sua antiga posição na linha negra, sendo substituída por três batalhões, 9.°, 22.° e 34.°, e, contramarchando para a direita, seguiu rumo à fazenda Velha, de onde juntamente com a outra, formada dos 29.°, 39.° e 4.° Batalhões, se moveu até estacionar à retaguarda e flancos da igreja nova, objetivo central do acometimento.
     Completariam este movimento primordial outros, secundários e supletivos: no momento da carga, o 26.° de Linha, o 5.° da Bahia e ala direita do Batalhão de S. Paulo, tomariam rapidamente posições junto à barranca esquerda do Vaza-Barris, à ourela da praça, onde se conservariam até nova ordem. À sua retaguarda se estenderiam em apoio os dois corpos do Pará, prontos a substituírem-nos, ou a reforçarem-nos, segundo as eventualidades do combate. De sorte que este, iniciado à retaguarda e aos flancos da igreja, iria a pouco e pouco, deslocando-se para a linha de baionetas que se cosia à barranca lateral do rio, na face sul da praça.
     Era, como se vê, um arrochar vigoroso — em que colaborariam os demais corpos guarnecendo as posições recém-conquistadas e o acampamento. Interviriam na ação à medida das circunstâncias, ou quando tombassem diante das trincheiras e das barrancas as chusmas de inimigos repulsados.
     Sobre tudo isto — preliminar preparatória e indispensável —um bombardeio firme, em que entrariam todos os canhões do sítio, batendo por espaço de uma hora a estreita área a expugnar-se. Somente depois que eles emudecessem, arremeteriam as brigadas assaltantes, de baionetas caladas, sem fazerem fogo, salvo se o exigissem as circunstâncias. Em tal caso, porém, devia ser feito na direção única da meridiana, a fim de não serem atingidos os batalhões jazentes nas posições próximas ao conflito. A 3.ª Brigada, ao toque geral partido do comando-em-chefe, de "infantaria avançar!", seguiria a marche-marche, procurando o flanco esquerdo da igreja, junto ao qual se estenderia distante cento e cinquenta metros; enquanto dois batalhões da 6.ª, o 29.° e o 39.°, investissem para a retaguarda daquela, e o 4.°, transpondo também o Vaza-Barris, a acometesse pelo flanco direito. Os demais combatentes seriam, a não ser que o imprevisto determinasse ulteriores combinações, simples espectadores da ação.


O canhoneio

     E no amanhecer do 1.° de outubro começou o canhoneio.
     Convergia sobre o núcleo reduzido dos últimos casebres, partindo de longo semicírculo de dois quilômetros, das baterias próximas ao acampamento até ao redente extremo, da outra banda, onde findava a estrada do Cambaio. Durou 48 minutos apenas, mas foi esmagador. As pontarias estavam feitas de véspera. Não havia errar o alvo imóvel.
     Dava-se, além disto, a última lição à rebeldia impenitente. Era preciso que, francamente desbravado o chão para o assalto, não sobreviessem mais surpresas dolorosas e ele se executasse, de pronto, fulminante e implacável, com os entraves únicos de um passo de cargas sobre ruínas. Fizeram-se as ruínas.
     Via-se a transmutação do trecho torturado: tetos em desabamentos, prensando, certo, os que se lhes acolhiam por baixo, nos cômodos estreitos; tabiques esboroando, voando em estilhas e terrões; e aqui e ali, em começo dispersos e logo depois ligando rapidamente, sarjando de flamas a poeira dos escombros, novos incêndios, de súbito deflagrando.
     Por cima — toldada a manhã luminosa dos sertões — uma rede vibrante de parábolas...
     Não havia perder-se uma granada única. Batiam nas cimalhas rotas das igrejas, explodindo em estilhas, ou saltando em ricochetes largos, para diante, sobre o santuário e a latada; arrebentavam nos ares; arrebentavam sobre a praça; arrebentavam sobre os colmos, esfarelando as coberturas de barro; entravam, arrebentando, pelos colmos dentro; basculhavam os becos enredados, revolvendo-lhes os ciscalhos; e revolviam, de ponta à ponta, inflexivelmente, batendo-o casa por casa, o último segmento de Canudos. Não havia anteparos ou pontos desenfiados, que o resguardassem. O abrigo de um ângulo morto formado pelos muros da igreja nova, antepostos aos disparos da Sete de Setembro, era inteiramente destruído pelas trajetórias das baterias de leste e oeste. Os últimos jagunços tinham, intacta, fulminando-os, sem perda de uma esquírola de ferro, toda a virulência daquele bombardeio impiedoso.
     Entretanto não se notou um grito irreprimível de dor, um vulto qualquer fugindo, ou a agitação mais breve. E quando se deu o último disparo, e cessou o fragor dos estampidos, a inexplicável quietude do casario fulminado fazia supor o arraial deserto, como se durante a noite a população houvesse, miraculosamente, fugido.
     Houve um breve silêncio. Vibrou um clarim no alto da fazenda Velha. Principiou o assalto.
     Consoante as disposições anteriores, os batalhões abalaram convergentes de três pontos, sobre a igreja nova. Seguiram, invisíveis, entre os casebres ou pelo talvegue do Vaza -Barris. Um único, pela direção que trilhava, se destacou à contemplação do resto dos combatentes, o 4.° de Infantaria. Viram-no atravessar a marche-marche, de armas suspensas, o rio; transpô-lo; galgar a barranca; aparecer, alinhado e firme, à entrada da praça.
     Era a primeira vez que ali chegavam lutadores numa atitude corretamente militar.


Réplica dos jagunços

     Feito este movimento, aquele corpo marchou heroicamente, avançando. Mas desarticulou-se, dados alguns passos, num desequilíbrio instantâneo. Baquearam alguns soldados, de bruços, como se preparassem para atirar melhor por trás dos blocos da fachada destruída; viam-se outros, recuando, fora da forma; distanciaram-se, arremetendo para a frente, outros; depois um enredado de baionetas entrebatendo-se, em grupos dispersos — erradios. E logo após, pelos ares ainda silenciosos, um estouro, lembrando arrebentamento de minas...
     O jagunço despertava, como sempre, de improviso, surpreendedoramente, teatralmente e gloriosamente, renteando o passo aos agressores.
     Estacou o 4.°, batido de chapa pelos adversários emboscados à ourela da praça; estacaram o 39.° e o 29.°, ante descargas à queima-roupa, através das paredes ao fundo do santuário; e, pela sua esquerda, imobilizou-se a carga da Brigada Dantas Barreto. Fortemente atacada por um dos flancos, esta teve que avançar naquele sentido, abandonando a direção inicial da investida, o que foi imperfeitamente conseguido por três companhias dispersas, destacadas do grosso dos batalhões.
     Modificavam-se todos os movimentos táticos preestabelecidos. Ao invés da convergência sobre a igreja, as brigadas paravam ou fracionavam-se embitesgando nas vielas.
     Durante cerca de uma hora os combatentes que contemplavam a refrega, no alto das colinas circunjacentes, nada mais distinguiram, fora da assonância crescente dos estampidos e brados longínquos — arruído confuso de onde expluíam, constantes, sucessivos, quase angustiosos, abafados clangores de cornetas. Desapareceram as duas brigadas, embebidas de todo na casaria indistinta. Mas contra o que era de esperar, os sertanejos permaneceram invisíveis e nem um só apareceu, correndo para a praça. Batidos entretanto, por três lados, deviam, recuando por ali e precipitando-se na fuga, ir de encontro às baionetas das forças estacionadas nas linhas centrais e nas beiradas do rio. Era este, como vimos, o objetivo primordial do assalto. Falhou completamente. E o malogro valia por um revés. Porque os assaltantes, deparando resistências com que não contavam, paravam, entrincheiravam-se; e assumiam atitude de todo contraposta à missão que levavam. Quedaram na defensiva franca. Caíam-lhes em cima, desbordando os casebres fumegantes e assaltando-os, os jagunços.
     Apenas a igreja nova fora tomada e dentro da sua nave revolvida os soldados do 4.°, trepados em montões de blocos e caliça, embaralhavam-se, em tumulto, com os das companhias pertencentes à 3.ª Brigada. Este sucesso, porém, verificara-se inútil. A um lado, estrepitava, feroz, contínua, ensurdecedora, a trabucada dos guerrilheiros, que enchiam o santuário.
     E a praça, onde devia aparecer o inimigo repelido, ferretoado à baioneta, permanecia deserta.
     Era urgente ampliar o plano primitivo do ataque, lançando no conflito novos lutadores. Do alto da Sete de Setembro partiu o sinal do comando-em-chefe, e logo depois o toque de avançar para o 5.° da Bahia. Lançava-se o jagunço contra o jagunço.
     O batalhão de sertanejos avançou. Não foi a investida militar, cadente, derivando a marche-marche, num ritmo seguro. Viu-se um como serpear rapidíssimo de baionetas ondulantes, desdobradas, de chofre, numa deflagração luminosa, traçando em segundos uma listra de lampejos desde o leito do rio até aos muros da igreja...
     O mesmo avançar dos jagunços, célere, estonteador, escapante à trajetória retilínea, num colear indescritível. Não foi uma carga, foi um bote. Em momentos uma linha flexível, de aço, enleou o baluarte sagrado do inimigo. Coruscou um relâmpago de duzentas baionetas: o 5.° desapareceu mergulhando nos escombros..
     Mas a situação não mudou. Aquele fragmento revolto do arraial, para cuja expugnação pareciam excessivas duas brigadas, absorvera-as; absorvera o reforço enviado; ia absolver batalhões inteiros. Seguiram, logo depois, o 34.º, o 40.º, o .30.° e o 31.° de Infantaria. Duplicavam as forças assaltantes. Aumentou, num crescendo, o estrépito da batalha invisível; ampliaram-se os incêndios; ardeu toda a latada. Mas na espessa afumadura dos ares embruscados branqueava, embaixo, a praça absolutamente vazia


Baixas

     Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado 2 mil homens sem efeito algum. As nossas baixas avultavam. Além de grande número de praças e oficiais de menor patente, baquearam mortos, logo pela manhã, o comandante do 29.°, major Queirós, e o da 5.ª Brigada, tenente-coronel Tupi Ferreira Caldas.


Tupi Caldas 

     A deste originara raro lance de bravura. Os soldados do 30.° idolatravam-no. Era uma rara vocação militar. Irrequieto, nervoso e impulsivo, o seu temperamento casava-se bem à vertigem das cargas e à rudeza das casernas. Nesta campanha mesmo jogara várias vezes a vida. Fora o comandante da vanguarda a 18 de julho; e depois daquele dia saíra indene dos mais mortíferos tiroteios. As balas tinham-no até então poupado, arranhando-o, rendando-lhe o chapéu, amolgando-lhe a chapa do talim. A última fulminou-o. Entrou por um dos braços, soerguido para sustentar o binóculo com que contemplava o assalto, e traspassou-lhe o peito. Atirou-o em terra, instantaneamente, morto. O 30.° procurou vingá-lo. Correu-lhe pelas fileiras um frêmito de pavor e de cólera, e depois transmontou de um pulo a tranqueira em que se abrigava. Embateu contra os casebres entrincheirados, de onde partira o projétil e arrojou-se a marche-marche, envesgando por uma viela em torcicolos. Não se ouviu um tiro. Soldados alvejados à queima-roupa caíam por terra rugindo enquanto os companheiros lhes passavam por cima esbarrando contra as portas, arrombando-as a coronhadas, penetrando os cômodos escuros, travando-se, lá dentro, em pugilatos corpo a corpo.
     Esta arremetida, porém, das mais temerárias que se fizeram em todo o decorrer da luta, como as demais, reduziu-se ao primeiro ímpeto. Sopeou-a a tenacidade incoercível dos jagunços. O 30.º, consideravelmente desfalcado, refluiu em desordem à posição primitiva.
     Por toda a banda realizavam-se idênticos arremessos e idênticos recuos. O último estortegar dos vencidos quebrava a musculatura de ferro das brigadas.
     Entretanto, pouco antes de nove horas, alentou-as a ilusão arrebatadora da vitória. Ao avançar um dos batalhões de reforço, um cadete do 7.° cravara nas junturas das paredes estaladas da igreja a bandeira nacional. Ressoaram dezenas de cornetas e um viva à República saltou, retumbando, de milhares de peitos. Surpreendidos com o inopinado da manifestação, os sertanejos amorteceram e cessaram o tiroteio. E a praça, pela primeira vez, desbordou de combatentes. Muitos espectadores desceram, rápidos, as encostas. Desceram os três generais. Ao passarem pela baixada da linha negra, viram às encontroadas entre quatro praças, dois jagunços presos. Adiante e aos lados — agitando os chapéus, agitando as espadas e as espingardas, cruzando-se, correndo, esbarrando-se, abraçando-se, torvelinhando pelo largo — combatentes de todos os postos em delírios de brados e ovações estrepitosas.
     Terminara afinal a luta crudelíssima...
     Mas os generais seguiam com dificuldades, rompendo pela massa tumultuária e ruidosa, na direção da latada, quando, ao atingirem grande depósito de cal que a defrontava, perceberam surpreendidos, sobre as cabeças, zimbrando rijamente os ares, as balas...
     O combate continuava. Esvaziou-se, de repente, a praça.
     Foi uma vassourada.
 
continua na página 343...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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