sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Florentino Ariza previra que essa noite as coisas aconteceriam assim, e se retirou. Já à porta do camarote procurou se despedir com um beijo, mas ela lhe ofereceu a face esquerda. Ele insistiu, já com a respiração entrecortada, e ela ofereceu a outra face com uma coqueteria que ele não vira nela quando colegial. Então insistiu pela segunda vez, e ela o recebeu nos lábios, recebeu-o com um tremor profundo que procurou sufocar com um riso esquecido desde sua noite de núpcias.

— Deus meu — disse — que louca que eu fico nos navios! 

     Florentino Ariza estremeceu: com efeito, e ela própria dissera, tinha o cheiro azedo da idade. No entanto, enquanto andava para seu camarote, abrindo caminho entre o labirinto de redes adormecidas, consolava-se com a ideia de que ele devia ter o mesmo cheiro, só que quatro anos mais velho, e que ela sem dúvida o sentira com a mesma emoção. Era o cheiro dos fermentos humanos, que ele percebera nas amantes mais antigas, e que elas tinham sentido nele. A viúva de Nazaret, que não guardava nada para si, tinha dito a ele de modo mais cru: "Já temos cheiro de urubu." Cada um suportava o cheiro do outro, porque estavam à mão: meu cheiro contra o seu. Em compensação, muitas vezes pensara no caso de América Vicuña, cujo cheiro de fraldas despertava nele os instintos maternais, enquanto o inquietava a ideia de que ela não pudesse aguentar o seu: seu cheiro de velho verde. Mas tudo isso pertencia ao passado. O importante era que pela primeira vez desde aquela tarde em que tia Escolástica deixara o livro de missa no balcão do telégrafo, Florentino Ariza não tornara a sentir uma felicidade como a dessa noite: tão intensa que lhe causava medo.
      Começava a adormecer quando o contador do navio o despertou às cinco no porto de Zambrano para lhe entregar um telegrama urgente. Estava assinado por Leona Cassiani, com data do dia anterior, e todo seu horror cabia numa linha: América Vicuña morta ontem motivos inexplicáveis. Às onze da manhã soube dos pormenores através de uma conferência telegráfica com Leona Cassiani, na qual ele mesmo operou o equipamento transmissor como não voltara a fazer desde seus dias de telegrafista. América Vicuña, presa de uma depressão mortal por ter sido reprovada nos exames finais, tinha tomado um vidro de láudano roubado na enfermaria do colégio. Florentino Ariza sabia no fundo de sua alma que a notícia estava incompleta. Mas não: América Vicuña não deixara nenhuma nota explicativa que permitisse culpar quem quer que fosse de sua resolução. A família estava chegando de Porto Pai nesse momento, avisada por Leona Cassiani, e o enterro seria às cinco da tarde. Florentino Ariza respirou. A única coisa que podia fazer para continuar vivo era não permitir o suplício daquela lembrança. Apagou-o da memória, embora de vez em quando pelo restante de seus anos fosse senti-lo reviver de repente, sem qualquer razão, como a pontada súbita numa cicatriz antiga.
     Os dias seguintes foram calorentos e intermináveis. O rio ficou turvo e se foi estreitando cada vez mais, e em vez do emaranhado de árvores colossais que assombrara Florentino Ariza na primeira viagem, havia planícies calcinadas, destroços de selvas inteiras devoradas pelas caldeiras dos navios, escombros de povoados abandonados de Deus, cujas ruas permaneciam inundadas mesmo nas épocas mais cruéis da seca. Durante a noite não eram despertados pelos cantos de sereia dos peixes-boi nas pontas de areia, e sim pela baforada nauseabunda dos mortos que passavam boiando rumo ao mar. Pois já não havia guerras nem pestes mas os corpos inchados continuavam passando. O capitão foi sóbrio por uma vez: "Temos ordens de dizer aos passageiros que são afogados acidentais." Em lugar da algaravia dos louros e do escândalo dos micos invisíveis que em outros tempos aumentavam o bochorno do meio-dia, só restava o vasto silêncio da terra arrasada.
     Havia tão poucos lugares onde fazer lenha, e estavam tão separados entre si, que o Nova Fidelidade ficou sem combustível no quarto dia de viagem. Permaneceu atracado quase uma semana, enquanto membros da tripulação se internavam por pântanos de cinzas em busca das últimas árvores dispersas. Não havia outras: os lenhadores tinham abandonado suas veredas fugindo à ferocidade dos senhores da terra, fugindo ao cólera invisível, fugindo das guerras larvadas que os governos se empenhavam em ocultar com decretos de distração. Enquanto isso, os passageiros, enfadados, faziam torneios de natação, organizavam expedições de caça, voltavam com iguanas vivas que abriam ao meio e tornavam a costurar com agulhas de ensacamento depois de extrair delas as pencas de ovos, translúcidos e moles, que punham a secar enfileirados nos parapeitos do navio. As prostitutas pobres dos povoados próximos seguiram a trilha das expedições, improvisaram tendas de campanha na barranca da margem, trouxeram música e cantina, e plantaram a pândega diante do navio encalhado.
     Desde muito antes de ser presidente da C.F.C., Florentino Ariza recebia informes alarmantes da condição do rio, e mal os lia. Tranquilizava os sócios: "Não se preocupem, quando a lenha acabar já haverá navios de petróleo." Nunca se deu o trabalho de pensar no assunto, obnubilado pela paixão por Fermina Daza, e quando percebeu a verdade já não havia nada a fazer, a menos que se arranjasse um rio novo. À noite, mesmo nas épocas de melhores águas, era preciso atracar para dormir, e então se tornava insuportável o mero fato de estar vivo. A maioria dos passageiros, sobretudo os europeus, abandonavam o podredouro dos camarotes e passavam a noite andando pelas cobertas, espantando toda classe de insetos com a mesma toalha com que secavam o suor incessante, e amanheciam exaustos e inchados de picadas. Um viajante inglês de princípios do século XIX, referindo-se à viagem combinada em canoa e mula, que podia durar até cinquenta dias, tinha escrito: "Esta é uma das peregrinações piores e mais incômodas que um ser humano possa realizar." Isto deixara de ser verdade nos primeiros oitenta anos da navegação a vapor, e depois tinha voltado a ser para sempre, quando os jacarés comeram a última borboleta, e acabaram os peixes-boi maternais, acabaram os louros, os micos, as povoações: acabou tudo.

— Não há problema — ria o comandante. — Dentro de uns anos viremos pelo leito seco em automóveis de luxo.

     Fermina Daza e Florentino Ariza estiveram protegidos durante os três primeiros dias pela suave primavera do mirante fechado, mas quando racionaram a lenha e começou a falhar o sistema de refrigeração, o camarote presidencial se converteu numa cafeteira a vapor. Ela sobrevivia às noites com o vento fluvial que entrava pelas janelas abertas, e espantava os mosquitos com uma toalha, pois a bomba de inseticida era inútil com o navio encalhado. A dor de ouvido tinha ficado insuportável, e certa manhã quando ela acordou cessou de repente e por completo, feito o canto de uma cigarra arrebentada. Mas até a noite não percebeu que tinha perdido a audição do ouvido esquerdo, quando Florentino Ariza lhe falou por esse lado, e ela precisou virar a cabeça para ouvir o que dizia. Não disse nada a ninguém, resignada diante de mais um dos tantos defeitos sem remédio da idade.
     No entanto, a demora do navio tinha sido para eles um percalço providencial. Florentino Ariza tinha lido certa vez: "O amor se torna maior e mais nobre na calamidade." A umidade do Camarote Presidencial afogou-os num letargo irreal em que era mais fácil amar sem perguntas. Viviam horas inimagináveis de mãos dadas nas poltronas da amurada, beijavam-se devagar, gozavam a embriaguez das cadeias sem o estorvo da exasperação. Na terceira noite de torpor ela o esperou com uma garrafa de aguardente de anis, daquela que tomava às escondidas com a malta da prima Hildebranda, e mais tarde, já casada e mãe dos filhos, trancada com as amigas do seu mundo de empréstimo. Precisava de um certo aturdimento para não pensar na própria sorte com demasiada lucidez, mas Florentino Ariza acreditou que era para se dar coragem no passo final. Animado por essa ilusão, atreveu-se a explorar com a ponta dos dedos seu pescoço flácido, o peito encouraçado de varetas metálicas, as cadeiras de ossos carcomidos, as coxas de corça velha. Ela o aceitou com agrado e de olhos fechados, mas sem arrepios, fumando e bebendo aos goles espaçados. No final, quando as carícias deslizaram para seu ventre, já tinha bastante anis no coração.

— Se temos de fazer safadezas, vamos a elas — disse — mas que seja como gente grande.


continua na página 253...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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