OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Últimos dias
V -
Antônio, o Beatinho
Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro, ereto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo do chefe da grei, arrimava-se a um bordão a que se esteava, andando. Veio com outro companheiro, entre algumas praças, seguido de um séquito de curiosos.
Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro, ereto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo do chefe da grei, arrimava-se a um bordão a que se esteava, andando. Veio com outro companheiro, entre algumas praças, seguido de um séquito de curiosos.
Ao chegar à presença do general, tirou tranqüilamente o gorro azul, de listras e bordas
brancas, de linho; e quedou, correto, esperando a primeira palavra do triunfador.
Não foi perdida uma sílaba única do diálogo prontamente travado.
— Quem é você?
— Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato e eu mesmo vim por meu pé me
entregar porque a gente não tem mais opinião e não aguenta mais.
E rodava lentamente o gorro nas mãos lançando sobre circunstantes um olhar sereno.
— Bem. E o Conselheiro?...
— O nosso bom Conselheiro está no céu...
Morte de Conselheiro
Explicou então que aquele, agravando-se antigo ferimento, que recebera de um estilhaço de
granada atingindo-o quando em certa ocasião passava da igreja para o Santuário, morrera a 22
de setembro, de uma disenteria,, uma "caminheira" — expressão horrendamente cômica que
pôs repentinamente um burburinho de risos irreprimidos naquele lance doloroso e grave.
O Beato não os percebeu. Fingiu, talvez, não os perceber. Quedou imóvel, face impenetrável e
tranquila, de frecha sobre o general, olhar a um tempo humilde e firme. O diálogo prosseguiu:
— E os homens não estão dispostos a se entregarem ?
— Batalhei com uma porção deles para virem e não vieram porque há um bando lá que não
querem. São de muita opinião. Mas não aguentam mais. Quase tudo mete a cabeça no chão de
necessidade. Quase tudo está seco de sede...
— E não podes trazê-los?
— Posso não. Eles estavam em tempo de me atirar quando saí...
— Já viu quanta gente aí está, toda bem armada e bem disposta?
— Eu fiquei espantado!
A resposta foi sincera, ou admiravelmente calculada. O rosto do altareiro desmanchou-se
numa expressão incisiva e rápida, de espanto.
— Pois bem. A sua gente não pode resistir, nem fugir. Volte para lá e diga aos homens que se
entreguem. Não morrerão. Garanto-lhes a vida. Serão entregues ao governo da República. E
diga-lhes que o governo da República é bom para todos os brasileiros. Que se entreguem. Mas
sem condições; não aceito a mais pequena condição...
O Beatinho, porém, recusava-se, obstinado, à missão. Temia os próprios companheiros.
Apresentava as melhores razões para não ir.
Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo.
Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos
sertanejos. Chamava-se Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha.
Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjetura, a ascendência de
holandeses que tão largos anos por aqueles territórios do Norte trataram com o indígena.
Brilhavam-lhe, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a
cabeça chata e enérgica.
Apresentou logo como credencial o mostrar-se duma linhagem superior. Não era um matuto
largado. Era casado com uma sobrinha do capitão Pedro Celeste, de Bom Conselho...
Depois contraveio, num desgarre desabusado, insistindo com o Beatinho recalcitrante:
— Vamos! Homem! Vamos embora. . . Eu falo uma fala com eles. . . deixe tudo comigo.
Vamos!
E foram.
Prisioneiros
O efeito da comissão, porém, foi de todo em todo inesperado. O Beatinho voltou, passada
uma hora, seguido de umas trezentas mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis.
Parecia que os jagunços realizavam com maestria sem par o seu último ardil. Com efeito,
viam-se libertos daquela multidão inútil, concorrente aos escassos recursos que acaso
possuíam, e podiam, agora, mais folgadamente delongar o combate.
O Beatinho dera — quem sabe ? — um golpe de mestre. Consumado diplomata, do mesmo
passo poupara às chamas e às balas tantos entes miserandos e aliviara o resto dos
companheiros daqueles trambolhos prejudiciais.
A crítica dos acontecimentos indica que aquilo foi, talvez, uma cilada.
Nem a exclui a circunstância de ter voltado o asceta ardiloso que a engenhara. Era uma
condição favorável, adrede e astuciosamente aventurada como prova iniludível da boa fé com
que agira. Mas, mesmo que assim não considerassem, alentava-o uma aspiração de todo
admissível: fazer o último sacrifício em prol da crença comum: devotar-se, volvendo ao
acampamento à sagração do martírio, que desejava, porventura, ardentemente, com o
misticismo doentio de um iluminado. Não há interpretar de outra maneira o fato, esclarecido,
ademais, pelo proceder do outro parlamentar que não voltara, permanecendo entre os
lutadores, instruindo-os sem dúvida da disposição das forças sitiantes.
A entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente o Beatinho, teso o torso
desfibrado, olhos presos no chão, o com o passo cadente e tardo exercitado desde muito nas
lentas procissões que compartira. O longo cajado oscilava-lhe à mão direita, isocronamente,
feito enorme batuta, compassando a marcha verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila
extensa, tracejando ondulada curva pelo pendor da colina, seguia na direção do acampamento,
passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros adiante, em
repugnante congérie de corpos repulsivos em andrajos.
Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial,
in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada,
mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das trincheiras em fogo.
Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos
casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os
arcabouços esmirrados e sujos, cujos mulambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e
escalavros — a vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo.
Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de
combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana — do
mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num
longo enxurro de carcaças e molambos...
Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante
de campeador domado: mulheres, sem número de mulheres, velhas espectrais, moças
envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos
escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos
peitos murchos, filhos afastados pelos braços, passando; crianças, sem número de crianças;
velhos, sem número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de
cera, bustos dobrados, andar cambaleante.
Pormenorizava-se. Um velho absolutamente alquebrado, soerguindo por alguns
companheiros, perturbava o cortejo. Vinha contrafeito. Forçava por se livrar e volver atrás os
passos. Voltava-se, braços trêmulos e agitados, para o arraial onde deixara certo os filhos
robustos, na última refrega. E chorava. Era o único que chorava. Os demais prosseguiam
impassíveis. Rígidos anciãos, aquele desfecho cruento, culminando-lhes a velhice, era um
episódio somenos entre os transes da vida nos sertões. Alguns respeitosamente se
desbarretavam ao passarem pelos grupos de curiosos. Destacou-se, por momentos, um.
Octogenário, não se lhe dobrava o tronco. Marchava devagar e de quando em quando parava.
Considerava por instantes a igreja e reatava a marcha; para estacar outra vez, dados alguns
passos, voltar-se lançando novo olhar ao templo em ruínas e prosseguir, intermitentemente, à
medida que se escoavam pelos seus dedos as contas de um rosário. Rezava. Era um crente.
Aguardava talvez ainda o grande milagre prometido...
Alguns enfermos graves vinham carregados. Caídos logo aos primeiros passos, passavam,
suspensos pelas pernas e pelos braços, entre quatro praças. Não gemiam, não estortegavam; lá
se iam imóveis e mudos, olhos muito abertos e muito fixos, feito mortos. Aos lados,
desorientadamente, procurando os pais que ali estavam entre os bandos ou lá embaixo mortos,
adolescentes franzinos, chorando, clamando, correndo. Os menores vinham às costas dos
soldados agarrados às grenhas despenteadas há três meses daqueles valentes que havia meia
hora ainda jogavam a vida nas trincheiras e ali estavam, agora, resolvendo desastradamente,
canhestras amas-secas, o problema difícil de carregar uma criança. Uma megera assustadora,
bruxa rebarbativa e magra — a velha mais hedionda talvez destes sertões — a única que
alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e
nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas,
emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra — rompia, em andar sacudido, pelos
grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta,
bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada,
havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam
alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era
apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se
repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.
Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha. Lá se foi com o seu andar
agitante, de atáxica, seguindo a extensa fila de infelizes...
Esta parara adiante, a um lado das tendas do esquadrão de cavalaria, represando entre as
quatro linhas de um quadrado. Via-se, então, pela primeira vez, em globo, a população de
Canudos; e, à parte as variantes impressas pelo sofrer diversamente suportado, sobressaía um
traço de uniformidade rara nas linhas fisionômicas mais características. Raro um branco ou
negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças.
Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia — faces bronzeadas, cabelos
corredios e duros ou anelados, troncos deselegantes; e aqui, e ali, um perfil corretíssimo
recordando o elemento superior da mestiçagem. Em roda, vitoriosos, díspares e desunidos, o
branco, o negro, o cafuz e o mulato proteiformes com todas as gradações da cor... Um
contraste: a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos e
pusilânimes. Quebrara-a de todo a luta. Humilhava-se. Do ajuntamento miserando partiam
pedidos flébeis e lamurientos, de esmola... Devoravam-na a fome e a sede de muitos dias."
O comandante geral concedera naquele mesmo dia aos últimos rebeldes um armistício de
poucas horas. Mas este só teve o efeito contraproducente de retirar do trecho combatido
aqueles prisioneiros inúteis.
Ao cair da tarde estavam desafogados os jagunços.
Deixaram que se esgotasse a trégua. E quando lhes anunciou o termo uma intimativa severa
de dois tiros de pólvora seca seguidos logo de outro, de bala rasa, estenderam sobre os
sitiantes uma descarga divergente e firme.
A noite de 2 entrou, ruidosamente, sulcada de tiroteios vivos.
continua na página 351...
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OS SERTÕES - Últimos dias: VI. O Fim
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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