Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís
.
OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS
Outras Noticias
DA MINHA VIAGEM à República dos Estados Unidos da Bruzundanga, tenho publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volume que deve sair dentro em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos Santos.
Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em quando, recebo cartas de amigos
que lá deixei, dando-me notícias de tão interessante terra.
De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa pela vida desses povos
exóticos e paradoxais.
Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga declarou guerra ao império dos
Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los ao lado dos outros países que já o faziam. Tratou
unicamente de vender uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais aliados, com o que o intermediário
ganhou uma fabulosa comissão.
Outra carta que de lá recebi, mais tarde, conta-me que os governantes da Bruzundanga resolveram
afinal mandar uma esquadra para auxiliar os países amigos que combatiam os Ogres.
Logo toda a Bruzundanga se entusiasmou e batizou a sua divisão naval de “Invencível Armada”.
Como lá não houvesse um Duque de Medina Sidonia, como na Espanha de Felipe II, foi escolhido
um simples almirante para comandá-la.
A esquadra levou longos meses a preparar-se e com ela, mas em paquete, partiu também uma
missão médica, para tratar dos feridos da guerra contra os Ogres.
Tanto a esquadra como a missão chegaram a um porto intermediário, onde, em ambas, se declarou
uma peste pouco conhecida. Chamado o chefe da comissão médica, este respondeu:
— Não entendo disto... Não é comigo... Sou parteiro.
Um outro doutor da missão dizia:
— Sou psiquiatra.
E não saiu daí.
— Não sei — acudiu um terceiro, ao se lhe pedir os seus serviços profissionais — não curo
defluxos. Sou ortopedista.
Não houve meio de vencer-lhes a vaidade de suas especialidades, de anúncio de jornal.
Assim, sem socorros médicos, a “Invencível Armada” demorou-se longo tempo no tal porto, de
modo que chegou aos mares da batalha, quando a guerra tinha acabado.
Melhor assim...
Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes da Bruzundanga.
Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém, é a que me narra a nomeação de um
papagaio para um cargo público, feita pelo poder executivo, sem que houvesse lei regular que a permitisse.
Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele mesmo, as peças de sua
estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação... tinha já em bronze o baixo-relevo do monumento
futuro à sua glória.
Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação delas em Bugâncio, sabia
a casuística jesuítica, além de conhecer as sutilezas da Escolástica, a ponto de ser capaz de provar com
a mesma solidez a tese e a antítese, desde que os interessados em uma e na outra o retribuíssem bem.
Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:
“Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses, mediante as provas de capacidade
que a lei exigir”.
O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nascido na Bruzundanga, e era,
portanto, bruzundanguense, concluiu, muito logicamente, que ele podia e lhe assistia todo o direito de
ser provido em um cargo público de seu país.
Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humanidade certos animais; com o
“artemismo”, crença de determinados povos primitivos que se julgam descendentes ou parentes de tal
ou qual animal, para mostrar que o anelo íntimo dos homens é elevar esses seus semelhantes e
companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los.
A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias, egípcias, gregas, góticas que,
embora idealizados ou estilizados, denunciavam um culto pelos animais que, injustamente, chamamos
inferiores.
Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asseverando, lembrava La Fontaine,
com as suas fábulas, e modernamente, Jules Renard, com as suas interessantes Histoires Naturelles.
Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A representação artística de animais,
por meio delas, já constituía uma especialidade.
Foi por aí...
E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio de Robinson Crusoé?
Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que fala, rematou afinal.
O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei ao corpo legislativo que, na
Bruzundanga, é composto de duas câmaras: a dos vulgares e a dos doutores; não julgou também
necessário avisar os outros papagaios da sua resolução, para que concorressem e nomeou o do seu
amigo Fagundes...
E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um “louro” bem falante foi nomeado
arauto d’armas da Secretaria de Estado de Mesuras e Salamaleques da República dos Estados Unidos
da Bruzundanga.
A.B.C., Rio, 23-11-18.
NOTA INFORMATIVA
Os Bruzundangas
Autor: Lima Barreto
Editora Brasiliense, S.Paulo, 1956
Organizado sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antonio Houaiss e M.
Cavalcante Proença.
Prefácio de Osmar Pimentel.
O carioca Afonso Henriques de Lima Barreto viveu um período de transição da literatura brasileira,
ou seja, entre o que a crítica literária registra como pré-modernismo e modernismo. Fim do século XIX
e começo do século XX, quando as correntes estéticas como o Parnasianismo, Realismo e Simbolismo
estavam em franca decadência pela repetição de fórmulas e de conceitos.
O escritor Lima Barreto, um arguto observador da vida de sua cidade, não apenas registra o tipo
de literatura decadentista, como critica a sociedade de seu tempo, a mudança dos costumes, inovações
e modismos, a transformação arquitetônica do Rio de Janeiro. Como autor combativo trabalha,
principalmente, em prol dos humildes e injustiçados, pois se sentia como eles, um pária social.
Embora aceite o progresso, a mudança às vezes rápida e contundente dos costumes, Lima Barreto
é um nostálgico do passado, e no fundo, é um moralista. Ele era uma mistura de jornalista, burocrata,
mestiço, homem de caráter e romancista.
Lima Barreto foi um dos mais legítimos cronistas do Rio de Janeiro. Tudo quanto acontecia à sua
volta, o escritor atento registrava nas suas crônicas, pois colaborava em quase todos os jornais. Sob este
aspecto foi um “ marginalizado” ou “ perseguido” pelos escritores estabelecidos, como muitos pensam.
Lima Barreto nunca teve dificuldade em publicas os seus às vezes contundentes artigos planfetários,
ou as suas sátiras cortantes, que muitas vezes atingiam homens de prestígio do seu tempo.
A coletânea de crônicas, sob o título Os Bruzundangas, nasceu desta sua militância ininterrupta
na imprensa, mais precisamente publicadas no semanário A.B.C. a partir de janeiro de 1917, quando
Lima Barreto já tinha editado os seus dous grandes romances, Recordações do Escrivão Isaías Caminha
(1909) e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915). As crônicas em volume, no entanto, só sairiam
após a morte do escritor, em 1923.
Fim
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Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: Outras Noticias
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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