O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Florentino Ariza recebeu o golpe no centro do coração. Teria gostado de
encontrar uma réplica com a rapidez e o instinto de uma seta, mas o peso da idade o
venceu: nunca se sentira tão esgotado numa conversação tão breve, o coração lhe
doía, e cada golpe repercutia com ressonância metálica em suas artérias. Sentiu-se
velho, triste, inútil, e com umas ânsias tão prementes de chorar que não pôde mais
falar. Terminaram a segunda xícara num silêncio sulcado de presságios, e quando
ela tornou a falar foi para pedir a uma criada a pasta das cartas. Ele esteve a ponto
de pedir que ela guardasse as cartas, pois tinha cópias de papel carbono, mas achou
que tal precaução ia parecer ignóbil. Não havia mais nada que falar. Antes de se
despedir, ele sugeriu voltar na outra terça-feira à mesma hora. Ela perguntou a si
mesma se devia ser tão condescendente.
— Não vejo que sentido teriam tantas visitas — disse.
— Eu não pensei que tivessem nenhum — disse ele.
De maneira que voltou na terça às cinco, e em todas as terças seguintes, sem a
convenção do aviso, porque as visitas semanais se haviam incorporado à rotina de
ambos no final do segundo mês. Florentino Ariza levava biscoitinhos ingleses para
o chá, castanhas confeitadas, azeitonas gregas, pequenas delícias de mesa que
encontrava nos transatlânticos. Numa das terças-feiras levou a cópia do retrato dela
e Hildebranda, tirado pelo fotógrafo belga há mais de meio século, que ele comprara
por quinze cêntimos num saldo de cartões-postais do Portal dos Escrivães. Fermina
Daza não pôde entender como o retrato chegara lá, nem ele pôde a não ser como um
milagre do amor. Certa manhã, enquanto cortava rosas do seu jardim, Florentino
Ariza não pôde resistir à tentação de lhe levar uma na próxima visita. Foi um,
problema difícil na linguagem das flores por tratar-se de viúva recente. Uma rosa
vermelha, símbolo da paixão em chamas, podia ser ofensiva a seu luto. As rosas
amarelas, que em outra linguagem eram as flores da boa sorte, exprimiam ciúmes
no vocabulário comum. Certa vez lhe haviam falado nas rosas negras da Turquia,
que talvez fossem as mais indicadas, mas não tinha podido obtê-las para aclimatá-las em seu pátio. Depois de muito pensar se arriscou com uma rosa das brancas,
que lhe agradavam menos que as outras, por insípidas e mudas: não diziam nada. À
última hora, prevenindo o caso de Fermina Daza emprestar-lhes algum sentido,
tirou os espinhos.
Foi bem recebida, como um presente sem intenções ocultas, e assim se
enriqueceu o ritual das terças. Tanto que quando ele chegava com a rosa branca já
estava preparado o jarro de flor com água no centro da mesinha do chá. Numa
dessas terças, ao colocar a rosa, ele disse de um jeito que parecesse casual:
— Em nossos tempos não se usavam rosas e sim camélias.
— É verdade — disse ela — mas a intenção era outra, como o senhor sabe.
Assim foi sempre: ele tentava avançar e ela lhe fechava o caminho. Mas nesta
ocasião, apesar de sua resposta na hora, Florentino Ariza percebeu que acertara no
alvo, porque ela teve que virar o rosto para não se ver que enrubescera. Um rubor
ardente, juvenil, com vida própria, cuja impertinência lhe deu um sentimento de
irritação consigo mesma. Florentino Ariza tomou o maior cuidado em suscitar
temas menos ásperos, mas sua gentileza foi tão evidente que ela se soube
descoberta, o que aumentou sua raiva. Foi uma terça ruim. Ela esteve a ponto de
pedir que não voltasse mais, mas a ideia de uma briga de noivos pareceu tão ridícula
na idade e situação de ambos que lhe deu um acesso de riso. Na terça-feira seguinte,
quando Florentino Ariza punha a rosa no jarro, ela esquadrinhou a consciência e
comprovou com alegria que não restava da semana anterior um só traço de
ressentimento.
As visitas começaram a adquirir em tempo muito breve uma incômoda
amplitude familiar, pois o doutor Urbino Daza e a mulher apareciam às vezes como
por acaso, e se deixavam ficar, jogando cartas. Florentino Ariza não sabia jogar, mas
Fermina lhe ensinou numa única visita, e os dois mandaram aos esposos Urbino
Daza um desafio escrito para a terça-feira seguinte. Eram encontros tão agradáveis
para todos que se oficializaram com tanta rapidez quanto as visitas, e se
estabeleceram normas para as contribuições de cada um. O doutor Urbino Daza e a
mulher, que era uma doceira excelente, contribuíam com tortas originais, sempre
diferentes. Florentino Ariza continuou levando as curiosidades que encontrava nos
navios da Europa, e Fermina Daza dava tratos à bola para inventar cada semana
uma surpresa nova. Os torneios se jogavam na terceira terça-feira de cada mês, e
não se faziam apostas em dinheiro, mas impunha-se ao perdedor uma contribuição
especial para a partida seguinte.
O doutor Urbino Daza correspondia à sua imagem pública: era fraco de
iniciativa, tardo de maneiras, e sofria de sobressaltos súbitos, tanto de alegria como
de desgosto, e de rubores inoportunos que faziam temer pelo seu vigor mental. Mas
era sem a menor dúvida, o que se notava até demais mesmo à primeira vista, aquilo
que Florentino Ariza mais temia que se dissesse dele: um homem bom. Sua mulher,
em compensação, tinha vivacidade com uma chispa plebeia, oportuna e certeira,
que dava um toque mais humano à sua elegância. Não se podia desejar casal melhor
como parceiro de cartas, e a insaciável necessidade de amor de Florentino Ariza
chegou ao auge com a ilusão de se sentir em família.
Uma noite, quando saíam juntos da casa, o doutor Urbino Daza convidou-o a
almoçar: "Amanhã, às doze e meia em ponto, no Clube Social." Era um manjar
delicioso com um vinho envenenado: o Clube Social se reservava o direito de vetar
convidados por motivos diversos, e um dos mais importantes era a condição de filho
natural. Tio Leão XII tinha tido experiências irritantes nesse terreno, e o próprio
Florentino Ariza sofrerá a vergonha de o fazerem sair quando já estava sentado à
mesa, a convite de um sócio fundador. Este, a quem Florentino Ariza fazia favores
difíceis no comércio fluvial, só teve o recurso de levá-lo a almoçar em outro lugar.
— Nós que fazemos os regulamentos somos os mais obrigados a cumpri-los —
disse.
Não obstante, Florentino Ariza correu o risco com o doutor Urbino Daza, e foi
recebido com um tratamento especial, embora não lhe pedissem para assinar o livro
de ouro dos convidados notáveis. O almoço foi breve, dos dois sozinhos, e
transcorreu em tom menor. Os temores que inquietavam Florentino Ariza desde a
tarde anterior em relação àquele encontro se desfizeram com o cálice de vinho do
porto do aperitivo. O doutor Urbino Daza queria falar de sua mãe. Pelo muito que
disse, Florentino Ariza percebeu que ela falara nele ao filho. E havia algo ainda mais
surpreendente: mentira a seu favor. Contou-lhe que eram amigos desde crianças,
que brincavam juntos desde a chegada dela de São João da Ciénaga, que ele a
iniciara nas primeiras leituras, e por isso lhe guardava uma antiga gratidão. Tinha
dito ademais que amiúde, quando ela saía da escola, passava muitas horas com
Trânsito Ariza fazendo prodígios de bordados no armarinho, pois era uma
professora notável, e que se não tinha continuado a ver Florentino Ariza com a
mesma frequência não tinha sido por gosto mas pela divergência de suas vidas.
Antes de chegar ao fundo de seus propósitos, o doutor Urbino Daza fez algumas
divagações sobre a velhice. Achava que o mundo andaria mais rápido sem o estorvo
dos anciãos. Disse: "A humanidade, como os exércitos em campanha, avança na
velocidade do mais lento." Previa um futuro mais humanitário, e por isso mesmo
mais civilizado, de seres humanos isolados em cidades marginais a partir do
momento em que não pudessem mais cuidar de si mesmos, para lhes poupar a
vergonha, os sofrimentos, a solidão espantosa da velhice. Do ponto de vista médico,
segundo ele, o limite podia ser o dos sessenta anos. Mas enquanto se chegava a esse
grau de caridade, a única solução eram os asilos, onde os anciãos se consolavam uns
aos outros, se identificavam em seus gostos e suas aversões, em suas mágoas e
tristezas, a salvo das discórdias naturais com as gerações seguintes. Disse: "Os
velhos, entre velhos, são menos velhos." Pois bem: o doutor Urbino Daza queria
agradecer a Florentino Ariza a boa companhia que fazia a sua mãe na solidão da
viuvez, instava com ele para que continuasse a fazê-lo para bem de ambos e
comodidade de todos, e para que tivesse paciência com seus humores senis.
Florentino Ariza se sentiu aliviado com a solução da entrevista. "Fique tranquilo",
disse. "Sou quatro anos mais velho que ela. e não só agora mas desde antes, muito
antes do seu nascimento." Depois cedeu à tentação de desabafar com um toque de
ironia.
— Na sociedade do futuro — concluiu — o senhor teria que ir agora ao campo-
santo, para nos levar, a ela e a mim, um ramo de antúrio para o almoço.
continua na página 234...
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Leia também:
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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