Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo XX
Uma Província
AS PROVÍNCIAS da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte, gozam, de acordo com a
carta constitucional daquele país, da mais ampla autonomia, até ao ponto de serem, sob certos aspectos,
quase como países independentes.
Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usufruem as províncias. Com
isto, faria obra de estudioso de cousas legislativas e não de viajante curioso que quer transmitir aos seus
concidadãos detalhes de costumes, que mais o feriram em terras estranhas. Faço traba- lho de touriste
superficial e não de erudito que não sou.
Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a província do
Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a
joia da Bruzundanga.
A mim — é bem de ver-se — os magnatas de lá não me fizeram semelhante convite; mas à tal
província fui por minha própria iniciativa e sem os tropeços de cicerones oficiais que me impedissem
de ver e examinar tudo com a máxima liberdade.
Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de aristocratas, de nobres e
organizam a sua genealogia de modo que as suas casas tomem origem em certos antropófagos, como
eram os primitivos habitantes da província, dos quais todos eles querem descender. Singular nobreza!
Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando, observei que
podia levar mais longe. O traço característico da população da província do Kaphet, da República da
Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles são os mais
inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores instituições, etc., etc.
E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que não há modesto mestre-escola
que não se julgue um Diderot ou um Aristóteles, e mais do que isso, pois, deixando de parte a teoria,
se julgam também capazes de exercer qualquer profissão deste mundo; e, se se fala em ser oficial de
marinha, eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão, e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se
prontos para serem astrônomos, pintores, químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, remadores
de canoas, niveladores, o diabo!
Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegíricos dela que o seu ensino é
uma maravilha; as suas escolas normais, cousa nunca vista; e os seus professores sem segundos no
mundo.
Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província a opinião de que a arte, sobretudo a
de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chic; que os humildes, os médios, os desgraçados, os
feios, os infelizes não merecem atenção do artista e tratar deles degrada a arte. De algum modo, tais
estetas obedecem àquela regra da poética clássica, quando exigia, para personagens da tragédia, a
condição de pessoas reais e principais.
Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem Ájax, nem Ismênia, nem
Antígone, os Sófocles da província se contentam com algumas gordas fazendeiras ricas e saltitantes
filhas de abastados negociantes ou com uns bacharéis enfadonhos, quando não tratam de solertes
atravessadores de café.
Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que acabo de contar. Há
manifestações mais ingênuas.
Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca locais. Já havia visto as da
capital da Bruzundanga. Eram modestas, possuindo um ou outro quadro ou mármore de autor de grande
celebridade. Eram modestas, mas probas e honestas.
Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas da capital da província do
Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a de Munich ou para o Louvre. Adquiri um catálogo e logo
topei com esta indicação: “La Gioconda”, quadro de Leonardo da Vinci.
Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria a França vendido a célebre
criação do mestre florentino? Poderia tanto o dinheiro do café? Corri à sala indicada e dei — sabem
com quê? Com a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de Mona Lisa del Gioconda, uma
reprodução da Casa Braün!
Não quis ir adiante para ver a “Ronda Noturna”, de Rembrandt, um Corot, um Watteau, nem
tampouco na seção de escultura, a “Vitória de Samotrácia” e a “La Pietá”, de Miguel Ângelo.
Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística daquele rincão da Bruzundanga;
mas o certo é que não lhe vi nenhuma manifestação palpável. Vão ter uma prova.
Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso aberto para a escolha das
armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas hediondas! Quanta insuficiência artística! Não havia
talvez dous desenhos, já não direi de acordo com as regras da heráldica, mas do gosto. Eram verdadeiros
rótulos de cerveja marca “barbante”.
Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no que toca à arquitetura, posso
dizer, com convicção, que lá não há um arquiteto de talento. Devia citar-lhes o nome aqui; mas, ao se
tratar de tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não preciso.
Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga é afirmar que a sua casquilha
capital é uma cidade européia. Há tantos tipos de cidades europeias que tenho vontade de perguntar se
ela é do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone do tipo Madrid, do tipo Florença, do tipo
Estocolmo — de que tipo será afinal? Certamente do de Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela
mesma.
O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal provém de
um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar
com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem que se
curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade,
para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos dominantes. Espanca,
encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o
arbítrio; é a velha Rússia.
E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de Veneza, com
a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas cousas de espírito. Ninguém
pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo proveito, de quando em
quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai daquele que o fizer!
A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer votar uma lei colonial, uma
verdadeira disposição de carta régia, para, diziam eles, aumentar o preço da “medida” (cerca de quinze
quilos) do café. O seu aparelho governativo decretou, em certa ocasião, a proibição do plantio de mais
um pé de café que fosse, da data daquela lei em diante. A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de
esperar outra cousa...
Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros julgarem o que
é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
continua na página 62...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo XX: Uma Província
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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