terça-feira, 12 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XX: Uma Província

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


Capítulo XX
Uma Província

     AS PROVÍNCIAS da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte, gozam, de acordo com a carta constitucional daquele país, da mais ampla autonomia, até ao ponto de serem, sob certos aspectos, quase como países independentes.
     Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usufruem as províncias. Com isto, faria obra de estudioso de cousas legislativas e não de viajante curioso que quer transmitir aos seus concidadãos detalhes de costumes, que mais o feriram em terras estranhas. Faço traba- lho de touriste superficial e não de erudito que não sou.
     Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a província do Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a joia da Bruzundanga.
     A mim — é bem de ver-se — os magnatas de lá não me fizeram semelhante convite; mas à tal província fui por minha própria iniciativa e sem os tropeços de cicerones oficiais que me impedissem de ver e examinar tudo com a máxima liberdade.
     Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de aristocratas, de nobres e organizam a sua genealogia de modo que as suas casas tomem origem em certos antropófagos, como eram os primitivos habitantes da província, dos quais todos eles querem descender. Singular nobreza!
     Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando, observei que podia levar mais longe. O traço característico da população da província do Kaphet, da República da Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores instituições, etc., etc.
     E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que não há modesto mestre-escola que não se julgue um Diderot ou um Aristóteles, e mais do que isso, pois, deixando de parte a teoria, se julgam também capazes de exercer qualquer profissão deste mundo; e, se se fala em ser oficial de marinha, eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão, e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se prontos para serem astrônomos, pintores, químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, remadores de canoas, niveladores, o diabo!
     Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegíricos dela que o seu ensino é uma maravilha; as suas escolas normais, cousa nunca vista; e os seus professores sem segundos no mundo.
     Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província a opinião de que a arte, sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chic; que os humildes, os médios, os desgraçados, os feios, os infelizes não merecem atenção do artista e tratar deles degrada a arte. De algum modo, tais estetas obedecem àquela regra da poética clássica, quando exigia, para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e principais.
     Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem Ájax, nem Ismênia, nem Antígone, os Sófocles da província se contentam com algumas gordas fazendeiras ricas e saltitantes filhas de abastados negociantes ou com uns bacharéis enfadonhos, quando não tratam de solertes atravessadores de café.
     Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que acabo de contar. Há manifestações mais ingênuas.
     Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca locais. Já havia visto as da capital da Bruzundanga. Eram modestas, possuindo um ou outro quadro ou mármore de autor de grande celebridade. Eram modestas, mas probas e honestas.
     Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas da capital da província do Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a de Munich ou para o Louvre. Adquiri um catálogo e logo topei com esta indicação: “La Gioconda”, quadro de Leonardo da Vinci.
     Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria a França vendido a célebre criação do mestre florentino? Poderia tanto o dinheiro do café? Corri à sala indicada e dei — sabem com quê? Com a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de Mona Lisa del Gioconda, uma reprodução da Casa Braün!
     Não quis ir adiante para ver a “Ronda Noturna”, de Rembrandt, um Corot, um Watteau, nem tampouco na seção de escultura, a “Vitória de Samotrácia” e a “La Pietá”, de Miguel Ângelo.
     Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística daquele rincão da Bruzundanga; mas o certo é que não lhe vi nenhuma manifestação palpável. Vão ter uma prova.
     Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso aberto para a escolha das armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas hediondas! Quanta insuficiência artística! Não havia talvez dous desenhos, já não direi de acordo com as regras da heráldica, mas do gosto. Eram verdadeiros rótulos de cerveja marca “barbante”.
     Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no que toca à arquitetura, posso dizer, com convicção, que lá não há um arquiteto de talento. Devia citar-lhes o nome aqui; mas, ao se tratar de tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não preciso.
     Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga é afirmar que a sua casquilha capital é uma cidade européia. Há tantos tipos de cidades europeias que tenho vontade de perguntar se ela é do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone do tipo Madrid, do tipo Florença, do tipo Estocolmo — de que tipo será afinal? Certamente do de Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela mesma.
     O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
     Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
     A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o arbítrio; é a velha Rússia.
     E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas cousas de espírito. Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai daquele que o fizer!
     A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer votar uma lei colonial, uma verdadeira disposição de carta régia, para, diziam eles, aumentar o preço da “medida” (cerca de quinze quilos) do café. O seu aparelho governativo decretou, em certa ocasião, a proibição do plantio de mais um pé de café que fosse, da data daquela lei em diante. A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de esperar outra cousa...
     Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros julgarem o que é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

Os Bruzundangas - Capítulo XX: Uma Província
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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