quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Dias antes, eu encontrara esse ascensorista aviador)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado


continuando...

     Dias antes, eu encontrara esse ascensorista aviador. Falara-me de Balam curioso por saber o que me diria acerca de Saint-Loup, desviei a conversa a fim de saber se era verdade, como me haviam dito, que o Sr. de Charlus tinha relações com os rapazes etc. O ascensorista pareceu assombrado; não sabia de nada. Em compensação, acusou o rapaz rico, o que vivia com a amante e três amigos. Como impressão de colocar tudo num mesmo saco e eu soubesse pelo Sr. de Charlus que me dissera, como estão lembrados, diante de Brichot, que ele não o era em absoluto, afirmei ao ascensorista que ele deveria estar enganado. Opôs às minhas dúvidas as mais seguras afirmativas. A amiga do rapaz rico é quem estava enganada de levar-lhe moços, e todos desfrutavam juntos os prazeres. Assim, o Sr. Charlus, o mais competente dos homens nessa matéria, enganara-se completamente, de tal modo a verdade é parcial, secreta e imprevisível. De medo de raciocinar como um burguês, de ver o charlismo onde ele não existia, não obter aquele fato, a "condução" operada pela mulher.

- Ela vem se encontrar comigo várias vezes - disse o ascensorista.- Mas percebeu logo com quem estava lidando e recusei categoricamente. Não me meto em tal assunto; disse-lhe que isso positivamente me desagradava. Basta que uma pessoa seja indiscreta e isso se divulgam; não se consegue mais colocação em parte alguma. -

     Estas últimas declarações enfraqueciam as virtuosas afirmações do princípio, pois pareciam implicar que o ascensorista teria cedido se estivesse seguro da discrição. Tal fora, sem dúvida no caso de Saint-Loup. É provável que até mesmo o rapaz rico, sua amante e os amigos não fossem menos favorecidos, pois o ascensorista citava muitas conversas que tivera com eles em épocas bem variadas, o que raramente acontece quando nos recusamos categoricamente. Por exemplo, a amante do rico - encontrar-se com ele para conhecer um lacaio de quem o ascensorista era muito amigo. 

- Não creio que o conheça; não estava no hotel naquela ocasião; chamavam de Victor. Naturalmente - acrescentou o ascensorista com o ar de quem se refere as leis invioláveis e um tanto secretas-, não se pode recusar a um camarada que é rico. - 

     Lembrei-me do convite que o amigo nobre do rapaz rico me havia dirigido alguns dias antes de minha partida de Balbec. Mas certamente aquilo nada tinha a ver e era ditado apenas pela amabilidade. 

- Muito bem, e a pobre Françoise, conseguiu obter a reforma do sobrinho?

     Mas Françoise, que há muito fazia todos os esforços possíveis para que o sobrinho fosse reformado, e que, quando lhe propuseram uma recomendação, por meio dos Guermantes, ao general de Saint-Joseph, respondera num tom desesperado: 

"Oh, não, não serviria de nada, não se pode esperar nada desse velhote, é o que há de pior, é patriota" 

     Françoise, desde o começo da guerra, e apesar da dor que aquilo lhe causava, achava que não se devia abandonar os "pobres russos", visto serem "aliançados". O mordomo, persuadido aliás de que a guerra não duraria mais que dez dias e acabaria com a vitória brilhante da França, não ousaria, com receio de ser desmentido pelos fatos, e até mesmo não teria bastante imaginação para prever uma guerra longa e indecisa. Mas, dessa vitória completa e imediata, procurava ele ao menos extrair de antemão tudo o que poderia fazer Françoise infeliz.

- As coisas vão indo mal, pois parece que muitos não querem marchar, e há rapazes de dezesseis anos que choram.-

     E, dizendo-lhe assim coisas desagradáveis, para aborrecê-la, era o que chamava "atirar-lhe um pepino, lançar-lhe uma apóstrofe, enviar-lhe um trocadilho". 

- De dezesseis anos, Virgem Maria! - exclamava Françoise e, num momento de desconfiança: - No entanto, diziam que só os recrutavam depois de completarem vinte anos, ainda são crianças. 
- Naturalmente os jornais têm ordem para não falar isso. Aliás, toda a juventude será convocada, muitos serão dizimados. Por um lado, isto será útil, uma boa sangria é proveitosa de vez em quando, põe em andamento o comércio. Ah, diabos! se alguns desses rapazinhos mimados vacilarem, serão imediatamente fuzilados, doze balas no couro, e pronto! Em parte, é necessário. E depois, que têm os oficiais com isso? Ganham suas pesetas, é tudo o que desejam.-

     Françoise empalidecia de tal modo durante essas conversas que receávamos que o mordomo causasse a sua morte de ataque cardíaco. Mas nem por isso ela perdia seus defeitos. Quando uma moça vinha me visitar, por mais que a velha criada se sentisse mal das pernas, se me ocorria sair por um instante do quarto, eu a via no alto de uma escada, na rouparia, no ato, dizia ela, de procurar um paletó meu para ver se não estava comido de traças, mas na realidade para nos escutar. Apesar de todas as minhas críticas, conservava o seu jeito insidioso de fazer perguntas de modo indireto, para o que utilizava desde algum tempo um certo "porque, sem dúvida". Não ousando dizer-me:

- Aquela senhora tem casa própria? - comentava, os olhos timidamente erguidos como os de um cão mansinho: - Porque, sem dúvida, aquela senhora tem uma casa própria evitando a interrogação direta menos por polidez do que para não parecer curiosa. 

     Enfim, como os criados que mais estimamos e sobretudo se já quase não nos prestam os serviços e o respeito que lhes impõe sua condição-infelizmente continuam sendo criados e marcam mais nitidamente os limites (que desejaríamos apagar) de sua casta, à medida que julgam penetrar mais na nossa. Françoise tinha frequentemente a meu respeito ("para me irritar", diria o mordomo) observações estranhas que uma pessoa da sociedade não faria: com uma alegria controlada, mas tão profunda como se se tratasse de uma moléstia grave, se eu sentisse calor, e o suor, que não me incomodava, gotejasse-me na testa, "Mas o senhor está ensopado" dizia, espantada como diante de um fenômeno estranho; ou, de leve, com o desprezo que provoca algo de indecente ("vai sair mas esqueceu de pôr a gravata"), mas com voz preocupada, própria para inquietar alguém em seu estado. Dir-se-ia que somente eu, em todo o universo, nunca estivera ensopado. Enfim, já não me falava bem como antigamente. Pois, em sua humildade; sua carinhosa admiração pelas criaturas que lhe eram infinitamente inferiores imitava seus modos feios de falar. Sua filha, queixando-se dela para mim, (não sei de quem o soubera) disse-me: 

- Ela sempre tem algo a reclamar, que eu não fecha bem as portas, e patati-patatá-, Françoise sem dúvida pensou que só uma ação incompleta a privara até então desse belo hábito. E nos lábios em que ia florescer outrora o francês mais puro, ouvi diversas vezes por dia: - E patati-patatá. 

     De resto, é curioso verificar como, não só as expressões mas os pensamentos variam pouco numa dada pessoa. O mordomo, tendo adquirido o hábito de falar que o Sr. Poincaré *[Raymond Poincaré (1860-1934): presidente da França (1913-1920) (N. do T)] estava com más intenções, não pelo dinheiro, mas desejara absolutamente a guerra, repetia isto sete a oito vezes por dia para o mesmo auditório habitual e sempre igualmente interessado. E sem modificar uma palavra, um gesto, uma entonação. Embora isso não durasse mais que dois minutos, invariável como uma representação. Seus erros de francês corrompiam a linguagem de Françoise, tanto quanto os erros da filha desta. Achava que aquilo que o Sr. de Rambuteau ficara tão melindrado um dia ao ouvir o Sr. de Guermantes afirmar de "urinóis Rambuteau" se denominava pistieres. É claro que desde a informação não ouvia outra coisa e aquilo lhe ficara. Portanto, pronunciava essa palavra de modo incorreto, mas permanentemente. Françoise, constrangida a princípio, acabou falar do mesmo modo, queixando-se de que não existisse esse tipo de coisas as mulheres, como existia para os homens. Porém a sua humildade e sua admiração pelo mordomo faziam com que jamais dissesse pissotieres, e sim com leve concessão ao costume pissetieres. [Pissotiere: mictório. Este episódio já vem narrado, com outras palavras e em contexto diversa, em A Prisioneira. (N. do T)]  
     Ela já não dormia nem comia, vivia ouvindo os comunicados, de que não entendia, lidos pelo mordomo, que, igualmente nada entendendo, e cujo desejo de atormentar Françoise era frequentemente sobrepujado por uma alegria patriótica dizia, com um riso simpático, falando dos alemães:

- Isto está esquentando; o velho Joffre vai lhes cortar a cauda do cometa. -

     Françoise não compreendia de que cometa se tratava, mas nem por isso deixava de perceber que essa frase fazia parte das amáveis e originais extravagâncias às quais uma pessoa bem educada deve responder de bom humor, por urbanidade, e dando de ombros alegremente, como a dizer: "Qual, é sempre o mesmo" e temperava as lágrimas com um sorriso. Ao menos, mostrava-se feliz porque seu novo açougueiro, que, apesar da profissão, era bastante medroso (todavia começara pelos abatedouros), ainda não estava em idade de ser convocado. Não fosse isto, ela teria sido capaz de ir ao ministro da Guerra para solicitar sua reforma.
     O mordomo não poderia admitir que os comunicados não fossem excelentes, e que o exército não se aproximasse de Berlim, visto que lia: "Repelimos, com pesadas perdas para o inimigo etc.", ações que ele celebrava como novas vitórias. Entretanto, eu me sentia assustado com a rapidez com que o teatro dessas vitórias se aproximava de Paris, e até fiquei assombrado que o mordomo, tendo visto num comunicado que uma das ações ocorrera perto de Lens, não se inquietasse ao ver no jornal, na manhã seguinte, que as consequências de tais encontros se voltaram a nosso favor em Jouy-le-Vicomte, onde eram sólidas as nossas posições. No entanto, o mordomo conhecia perfeitamente o nome de Jouy-le-Vicomte, que não distava muito de Combray. Mas a gente lê os jornais da mesma forma que ama, com uma venda nos olhos. Não procuramos compreender os fatos. Ouvimos as doces palavras do redator-chefe como se fossem palavras de nossa amante. Somos vencidos e ficamos satisfeitos, pois não nos consideramos vencidos, mas vencedores.
     Aliás, não me demorei muito em Paris e voltei depressa para a minha casa de saúde. Embora, em princípio, o médico me tratasse pelo isolamento, entregaram-me em épocas diferentes uma carta de Gilberte e outra de Robert. Gilberte me escrevia (mais ou menos em setembro de 1914) dizendo que, apesar do seu desejo de permanecer em Paris, onde mais facilmente obteria notícias de Robert, as perpétuas incursões dos taubes sobre Paris lhe infundiram tamanho pavor, principalmente por causa da filhinha, que ela fugira da cidade pelo último trem que ainda saía para Combray, que o trem nem mesmo chegara a Combray e que somente graças à charrete de um camponês, na qual fizera dez horas de um caminho atroz, é que alcançara Tansonville!
*[Taubes: Pombo, em alemão. Nome dado aos monoplanos alemães da Primeira Guerra Mundial. (N. do T)]* 

- E lá, quem imaginava que esperava a sua velha amiga - escrevia Gilberte, ao terminar. - Eu saíra de Paris para fugir aos aviões alemães, pensando que em Tansonville estaria a salvo de tudo. Não fazia nem dois dias que ali me encontrava, quando imagine quem chegou: os alemães, que invadiam a região depois de terem abatido nossas tropas em La Fere, e um estado-maior alemão, seguido de um regimento que se apresentava à porta de Tansonville, e para lá que fui.

     Poemas que durante a convalescença, colocavam-se, para descrever a guerra, nível dos acontecimentos, que em si mesmos nada significam, mas no vulgar, de que haviam seguido as regras até então, falando, como o teriam feito anos antes, da "sangrenta aurora", do "voo fremente da vitória" etc. Sai muito mais inteligente e artista, continuava sendo inteligente e artista, e fixava finura, para mim, as paisagens que via enquanto estava imobilizado à beira da floresta pantanosa, mas como se participasse de uma caçada a patos selecionados. Para me fazer compreender certas oposições de sombra e luz que tinham encantamento de sua manhã, recordava alguns quadros que nós dois vimos, sem recear aludir a uma página de Romain Rolland, ou até de Nietzsche com aquela independência dos que estão no front, que não têm o mesmo rancor dos inativos de pronunciarem um nome alemão, e até, com uma ponta de quietismo, de citar um inimigo, que fizera, por exemplo, o coronel Du Paty depor na sala das testemunhas do processo Zola, a recitar de passagem, diante de juízes - Quillard, poeta dreyfusista de extrema violência, a quem aliás não conhecia, do seu drama simbolista, A Menina de Mãos Cortadas.  
     Saint-Loup me falava uma melodia de Schumann, só lhe dava o título em alemão e não entrava circunlóquios para dizer que, quando ao amanhecer ouvira um primeiro gorjeio da orla daquela floresta, sentira-se inebriado como se lhe falasse o pássaro daquele "sublime Siegfried" que esperava escutar depois da guerra.

O Tempo Recuperado (Dias antes, eu encontrara esse ascensorista aviador)

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