sábado, 16 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XXII: Notas Soltas (b)

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


Capítulo XXII
Notas Soltas

Erudição

“COSTUMAVA o Imperador Tito Lívio dizer que tinha ganho o seu dia sempre que lhe era dado realizar um benefício.” (Correio Matutino, de 2-11-13).

     Tito Lívio foi imperador?

“E é o motivo dessa antecipação que está sendo explicado, agora, nos jornais da Fortaleza, pelos entendidos na matéria, um dos quais acusa como razão desse desequilíbrio a abertura do canal de Panamá, que pôs em contato duas grandes massas d’água de nível diferente” (O Imparcial, de 12-11-15).

     A que fica reduzida a tal história do equilíbrio dos líquidos em vasos comunicantes? Pobre Ganot, quer o grande, quer o pequeno!


Sobre a Administração

“A EXTRAÇÃO DESTE combustível na América do Sul se eleva, contudo, a mais de 1.500.000 toneladas, produzindo o México 500.000 toneladas e o Chile o restante” (Relatório oficial sobre — A Indústria Siderúrgica no Mundo, pelo general F. M. de S. A., pág. 198)

     O México na América do Sul? Que terremoto!


***

     Cousas maravilhosas de um tradutor burocrático:

1º) arbustos de serra (arbrisseaux de serre)
2º) bilhetes de bilhar (billes de billard)
3º) Tecidos de... cânhamo ou de ramia (ramie)
4º)  fetos de serra (fougères de serre)
5°) berloques, colorados... (breloques, coloriées).

     Todas estas e muitas outras lindezas semelhantes vieram publicadas no D.O. da Bruzundanga, em 23 de março de 1917: e o ato era assinado pelo grande ministro — Kallokeras.


***

“A seleção nas repartições é feita inversamente de forma que os em- pregados mais graduados são os mais néscios e inscientes. Houve quem propusesse para corrigir tal defeito que se mudasse a hierarquia burocrática: o cargo de diretor passava a ser o primeiro da escala e o de praticante, o último.”

No Gabinete do Ministro

— O senhor quer ser diretor do Serviço Geológico da Bruzundanga? pergunta o ministro.
— Quero, Excelência.
— Onde estudou geologia?
— Nunca estudei, mas sei o que é vulcão.
— Que é?
— Chama-se vulcão a montanha que, de uma abertura, em geral no cimo, jorra turbilhões de fogo e substâncias em fusão.
— Bem. O senhor será nomeado.


***

     Pancôme, quando se deu uma vaga de amanuense na sua secretaria de Estado, de acordo com o seu critério não abriu concurso, como era de lei, e esperou o acaso para preenchê-la convenientemente.
     Houve um rapaz que, julgando que o poderoso visconde queria um amanuense chic e lindo, supondo-se ser tudo isso, requereu o lugar, juntando os seus retratos, tanto de perfil como de frente. Pancôme fê-lo vir à sua presença. Olhou o rapaz e disse:

— Sabe sorrir?
— Sei, Excelentíssimo Senhor Ministro.
— Então mostre.

     Pancôme ficou contente e indagou ainda:

— Sabe cumprimentar?
— Sei, Senhor Visconde. 
— Então, cumprimente ali o Major Marmeleiro.

     Este major era o seu secretário e estava sentado, em outra mesa, ao lado da do ministro, todo ele embrulhado em uma vasta sobrecasaca.
     O rapaz não se fez de rogado e cumprimentou o major com todos os “ff” e “rr” diplomáticos.
     O visconde ficou contente e perguntou ainda:

— Sabe dançar?
— Sei. Excelentíssimo Senhor Visconde.
— Dance.
— Sem música?

     O visconde não se atrapalhou. Determinou ao secretário:

— Marmeleiro, ensaia aí uma valsa.
— Só sei “Morrer sonhando” (exemplo).
— Serve.

     O candidato dançou às mil maravilhas e o visconde não escondia o grande contentamento de que sua alma exuberava.
     Indagou afinal.

— Sabe escrever com desembaraço?
— Ainda não, doutor.
— Não faz mal. O essencial, o senhor sabe. O resto o senhor aprenderá com os outros.

     E foi nomeado, para bem documentar, aos olhos dos estranhos, a beleza dos homens da Bruzundanga.


Sobre os Sábios
(a desenvolver)

     OS engenheiros, tanto os civis como os militares, mais estes que aqueles, julgam-se geômetras. Não o são absolutamente; os melhores são simples professores.


***

     Os médicos da Bruzundanga imaginam-se sábios e literatos.
     Pode-se afirmar que não são nem uma coisa nem outra.


***

     É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber anterior e concorre para aumentá-lo com os seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito de sábio que se tem em tal pais.
     Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros.
     Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca, pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas para pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa maçante de os copiar.


***

     Há mais de século que se estudam nas suas escolas superiores, as altas ciências; entretanto os sábios da Bruzundanga não têm contribuído com cousa alguma para o avanço delas.
     Em toda a parte, os sábios, de qualquer natureza, são homens de recursos medianos, modestos, retraídos, pouco mundanos, mesmo quando ricos. Na Bruzundanga, não; os sábios são nababos, têm carros e automóveis de luxo, palácios; frequentam teatros caros, durante temporadas completas; dão festas suntuosas nos seus hotéis, etc., etc.


***

     Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela gente da Bruzundanga, e, para firmar tal reputação, não fabrique uma compilação escrita em sânscrito. O médico sábio não pode escrever em outra língua que o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe a clínica.
     Com a vida dos sábios da Bruzundanga ninguém poderia escrever Os Mártires da Ciência. Têm eles a precaução preliminar de inaugurarem a sua sabedoria com um casamento rico.


Sobre a Música

     A MÚSICA, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres.
     É raro aparecer no país uma obra musical.


Sobre a Indústria

     A INDÚSTRIA nacional da Bruzundanga tem por fim espoliar o povo com os altos preços dos seus produtos. É nacional, mas recebe a matéria-prima, já em meia manufatura, do estrangeiro.


A Última Nota Solta

     A HABILIDADE dos governantes da Bruzundanga é tal, e com tanto e acendrado carinho velam pelos interesses da população, que lhes foram confiados, que os produtos mais normais à Bruzundanga, mais de acordo com a sua natureza, são comprados pelos estrangeiros por menos da metade do preço pelo qual os seus nacionais os adquirem.

Os Bruzundangas - Capítulo XXII: Notas Soltas (b)
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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