Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS
As Letras na Bruzundanga
“A solenidade que aqui nos reúne e para a qual foram convocados os poderes do Céu e da Terra,
e o mar, é de tanta magnitude que a não podemos avaliar senão rastreando, através das sombras do
Tempo, a sua projeção no Futuro.”
Coelho Neto. Discurso na inauguração da piscina do Fluminense F.C.
Nesse meio tempo, porém, tenho recebido notícias de lá que, sem implicar numa total modificação
dos costumes e hábitos daquele notável povo e daquela curiosa terra, observados já por mim, revelam,
entretanto, pequenas alterações interessantes que não devem ficar sem registro. Uma delas é a que se
está passando com os seus literatos e poetas.
Em todos os tempos os homens de letras, maus ou bons, geniais ou medíocres, ricos ou pobres,
gloriosos ou ratés, sempre se julgaram inspirados pelos deuses e confabulando intimamente com eles.
A vida dos escritores, poetas, comediógrafos, romancistas, etc., está cheia de episódios que denunciam
esse singular orgulho deles mesmos e da missão da arte de escrever a que se dedicam. Todos eles se
deixariam morrer à fome ou de mi- séria, antes de transformar a sua Musa em passatempo de poderosos
e ricaços. Entregaram essa função aos bufões, aos histriões, aos bobos da corte, etc.
Mesmo quando um duque ou um príncipe tinha um poeta a seu soldo, o estro dele só era empregado
para solenizar os grandes acontecimentos privados ou públicos em que o duque ou o príncipe estivesse
de qualquer forma metido. Se se tratasse de um batizado na família, de um casamento, do aniversário
da duquesa, de uma vitória ganha pelo príncipe, de sua nomeação para embaixador junto à corte de
Grão-Mongol, sim! O poeta palaciano tinha que puxar a mitologia do tempo, escrever uma ode, um
epinício, um ditirambo ou mesmo um simples soneto, conforme fosse a natureza da festa. Mesmo para
as mortes havia a elegia com todas as suas regras marcadas na retórica e poética daqueles tempos de
reis, marqueses e duques.
Esses fidalgos mesmo aceitavam de bom grado o orgulho profissional dos seus poetas attachés.
Alguns destes mereciam até homenagens excepcionais, como um tal Alain Chartier, poeta francês do
século XV. Conta-se que a delfina Margarida da Escócia, passando com o seu séquito de damas e
cavalheiros de honor, por uma sala em que estava cochilando o poeta, não trepidou em beijá-lo na boca
diante de todo o seu acompanhamento. A mulher do príncipe que foi mais tarde o sombrio e velhaco
Luís XI de França justificou o ato dizendo que apesar do desgracioso físico de Alain, a encerrar, contudo,
tão belo espírito, daquela boca tinham saído tantas palavras douradas, que ele merecia aquela sua
imprevista homenagem. As crônicas do tempo contam esse episódio que me parece não ter eu adulterado
e, além deste, muitos outros interessantes, em que se mostra até que ponto os homens de pena eram
prezados pelos poderosos de antanho, e como eles tinham em grande conta a sua missão de troveiros e
trovadores.
Na Bruzundanga, até bem pouco, era assim também. A sua nobreza territorial e agrícola estimava
muito, a seu jeito, os homens de inteligência, sobremodo os poetas, aos quais ela perdoava todos os
vícios e defeitos. Essa fidalguia à roceira daquele país era assim semelhante aos nossos “fazendeiros”,
antes da lei de 13 de Maio; e poeta, ou mesmo poetastro, que aportasse nas suas fazendas, que lá são
chamadas — “ampliúdas” — tinha casa, comida, roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda a
semana, podendo demorar-se no latifúndio o tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe parecesse,
desde que nada tentasse contra a decência e a honra da família. Por agradecimento, então, em dia
festivo da família ou da religião, ao jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia inédita,
alusiva ou não ao ato, e tomava uma grande e alegre carraspana.
Houve um até — uma espécie do nosso Fagundes Varela — que é ainda lá muito célebre, recitador
nas salas, e cujas obras têm tido muitas edições, que viveu anos inteiros em peregrinações de “ampliúda”
para “ampliúda”, sem saber o que era uma moeda, por mais insignificante que fosse de valor, comendo,
bebendo, fumando, sem que nada lhe faltasse, a não ser dinheiro de que ele mesmo não sentia nenhuma
necessidade. Tinha tudo...
Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução social e, logo em seguida, uma política, deslocaram
essa boa gente da fortuna, e muitos deles, até, dos seus domínios, que vieram a cair nas mãos de
aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos nela, eram de primeira geração,
descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único pensamento era fazer fortuna do pé para a
mão, cheios de uma avidez monetária e inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos filhos, e logo
os lindos costumes de antiga nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à margem e não
tiveram mais nem consideração nem desprezo. Era como se não existissem, como se fosse possível
isso, seja em sociedade humana, fora de qualquer grau de civilização que ela esteja.
Aos poucos, porém, os parvenus viram bem que era preciso pôr um pouco de beleza e de sonho
nas suas existências de mascates broncos e ferozes saqueadores legais. Deram em pagar sonetos que
festejassem o nascimento dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por ocasião da morte dos pais.
Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as missas de sétimo dia aos sacerdotes que oficiam
nelas, ou em outras cerimônias menos tristes.
Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os nobres feudais, de espada e cavalo
de batalha encouraçado e intrépido, tinham os seus vates e trovadores, nos seus castelos e manoirs,
pensaram em tê-los também, pagando-os a bom preço, a fim de que contribuíssem com as suas “palavras
douradas” para o brilho de suas festas.
Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe ainda. Tendo construído
nos fundos de sua chácara, situada em um pitoresco arrabalde da capital da República da Bruzundanga,
um tanque imenso, para dar banho aos cavalos de raça das suas opulentas cavalariças, teimou que havia
de inaugurá-los soberbamente, com notícias nos jornais, bênçãos religiosas e um discurso feito pelo
maior literato de Bruzundanga, ou tido como tal, enfim, pelo mais famoso.
Não posso garantir que o Creso tivesse pago ao celebérrimo poeta ou que este lhe devesse algum
dinheiro; mas o certo é que, desprezando a dignidade de sua Arte e a Glória, a reputação literária mais
absorvente e mais tirânica da Bruzundanga, pescou latim, grego, a cabala judaica, o Ramâiana, os
Evangelhos e inaugurou com um discurso assim pomposo, e grandiloquente, no estilo hugoano, o
banheiro dos ginetes do multimilionário Har-al-Nhardo Ben Khénly.
O altitudo!
O Parafuso, São Paulo, 12-3-1919.
A Arte
O PAÍS DA Bruzundanga, hoje República dos Estados Unidos da Bruzundanga, antigamente
império, tem-se na conta de civilizado e, para isso, entre outras cousas, possui escolas para o ensino de
belas-artes.
Naturalmente dessas escolas saem competências em pintura, escultura, gravura e arquitetura que
devem ter mais ou menos talento; entretanto, ninguém lhes dá importância, seja qual for o seu mérito.
Se não conseguem lugares de professores, mesmo de desenho linear, nenhum favor público ou
particular recebem da sua nação e do seu povo.
Houve um até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas, para poder viver; os mais,
quando perdida a força de entusiasmo da mocidade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma
espécie da nossa cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de arte e glória dos seus primeiros
anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os pouco audazes, aos quais os jornais nem notícia
dão dos livros.
Conheci um dos maiores, de mais encanto, de mais vibração, de mais estranheza, que, apesar de
ter publicado mais de dez volumes, morreu abandonado num subúrbio da capital da Bruzundanga,
bebendo sodka com tristes e humildes pessoas que nada entendiam de poesia; mas o amavam.
A gente solene da Bruzundanga dizia dele o seguinte: “É um javanês (equivalente ao nosso “mulato”
aqui) e não sabe sânscrito.”
Essa gente sublime daquele país é quase sempre mais ou menos javanesa e, quase nunca, sabe
sânscrito.
Todo estímulo se vai e uma arte própria lá não se cria por falta de correspondência entre o herói
artístico e a sua sociedade.
Não é que ela não tenha necessidade dessa atividade do espírito humano, tanto assim que os
jornais da Bruzundanga vêm pejados de notícias, encômios, ditirambos às mediocridades mais ou menos
louras do que as de lá.
Tenho aqui adiante dos olhos um jornal da Bruzundanga que trata de um poeta da Austrália, cujos
melhores versos são como estes:
Fui lá em cima ver meu Deus;Voltei triste, por nada encontrar.Mas se tiver forças hei de voltarPara vê-lo de novo outra vez.
A notícia está assinada com o nome do autor e justifica os elogios que lhe faz, com estas palavras,
cuja aplicação devia caber aos seus camaradas e contemporâneos, para animá-los a fazer grandes cousas.
Ei-las:
“Nada mais agradável e, sobretudo, nada mais útil que aplaudir aos espíritos que apenas
desabotoam, ainda cheios do calor dos primeiros sonhos, ainda ressoantes da vibração dos primeiros
vôos. Para eles não deve ser a crítica um instrumento frio, insensível, com as asperezas de uma medida
certa, senão uma voz de estímulo, uma alentadora voz que embale o coração e penetre, carinhosamente,
a inteligência que reponta. O comentário, sem ser exagerado, para não se tornar prejudicial, sem ser
frívolo, para não se transformar em elemento nocivo, em fonte de erros e vícios, deve procurar os
aspectos mais significativos do temperamento que surge, apontando, com amoroso intuito, as
insuficiências, as indecisões da primeira hora, as dúvidas e as hesitações peculiares aos que começam.
Geralmente, porém, não costumam os críticos profissionais usar de tais cautelas antes preferem exercer
o seu mister, com rudeza e impassibilidade, confundindo autores novos, sem responsabilidades literárias
ainda firmadas, para os quais o maior rigor é brandura.”
É engraçado que seja só maior rigor a brandura quando se trata de poetas da Austrália; mas
quando se trata de vates da Bruzundanga a maior brandura é o rigor
Não é só assim em poesia. Nas artes plásticas, na música, tudo é assim.
Chega à capital da Bruzundanga um pintor que se diz pintor e espanhol, a quem ninguém nunca
viu ou conheceu, e logo os críticos dos jornais, viajados e lidos, finos e limpos de colarinhos, logo
dizem: “Este Dom Tuas y Trias é Velázquez, é Zurbarán, é o Greco, é Goya, etc., etc.”
Os quadros que ele traz, talvez, não sejam dele; são de uma banalidade de concepção e de uma
infantilidade de execução lamentáveis; mas os tais homens lidos, viajados, que desprezam os javaneses
(os mulatos de lá), afirmam que o homem é extraordinário.
Dito isto, logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do ópio e outras coisas maléficas,
a fim de imitarem os príncipes da Renascença — já se viu! — correm à exposição e compram os
quadros a preço de ouro, enquanto os pobres-diabos naturais ou vivendo na Bruzundanga, que são
conscienciosos do seu mister, morrem em ofícios humildes ou de sodka.
É assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de doutores e aventureiros, ambas
dadas à chatinagem e à veniaga, desde os primeiros caçando casamentos ricos e os segundos na cavação
comercial e industrial, sem ter tido tempo para se deter nessas cousas de pensamento e arte.
Quando ficam ricos, estão completamente embotados, para não dizer mais...
Houve um pintor viriático que veio com uns quadros dramáticos, cenográficos para a Bruzundanga,
precedido de uma fama de todos os diabos, a ponto de um guarda-livros, Filinto, não hesitar em dizer
que era Leonardo Da Vinci.
Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em edição de Jacinto Ribeiro dos
Santos, meu bom amigo e camarada, hei de juntar uma reprodução do retrato equestre de um rei dele, o
pintor, que é o modelo mais perfeito do maneirismo, do apelo aos uniformes, aos chamalotes, às plumas
que conheço, em pintura.
Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei desenvolvê-las se os
interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.
ABC, Rio, 7-9-1919.
continua na página 82...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
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Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: As Letras na Bruzundanga
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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