OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Últimos dias
V -
A dinamite
E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos — os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela História, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços — sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros — a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte...
E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos — os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela História, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços — sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros — a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte...
Impunham-se outras medidas. Ao adversário irresignável as forças máximas da natureza,
engenhadas à destruição e aos estragos. Tinham-nas, previdentes. Havia-se previsto aquele
epílogo assombroso do drama. Um tenente, ajudante de ordens do comandante geral, fez
conduzir do acampamento dezenas de bombas de dinamite. Era justo; era absolutamente
imprescindível. Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: enrijavam-nos os reveses,
robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota.
Ademais entalhava-se o cerne de uma nacionalidade
Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite. Era uma
consagração.
Cessaram as fuzilarias; e desceu sobre todas as linhas um grande silencio de expectativa
ansiosa... Logo depois correu um frêmito pela cercadura do sítio; espraiou-se pela periferia
dilatada; passou, vibrátil, pelo acampamento; passou, num súbito estremeção, pelas baterias
dos morros; e avassalou a redondeza, num trêmulo vibrante de curvas sismais cruzando-se
pelo solo. Tombaram os dentilhões despegados das igrejas; desaprumaram-se paredes, caindo;
voaram tetos e tetos; tufou um cumulus de poeira espessando a afumadura dos ares; e, dentre
centenares de exclamações irreprimidas, de espanto, retumbou a atroada de explosões
fortíssimas. Parecia tudo acabado. O último trecho de Canudos arrebentava todo.
Os batalhões, embolados pelos becos, fora da zona mortífera das traves e cumeeiras que
zuniam, em estilhas, sulcando para toda a banda o espaço, aguardavam que se diluísse aquele vulcão de chamas e pó, para o derradeiro acontecimento.
Mas não o executaram. Houve ao contrário um recuo repentino. Batidos de descargas que não
se compreendia como e eram feitas daqueles braseiros e entulhos, os assaltantes
acobertaram-se em todas as esquinas, esgueiraram-se pelas abas dos casebres e pularam, na
maioria, para trás dos entrincheiramentos.
Adiante atordoava-os assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações,
refletindo do mesmo passo o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão turturada que
rugia e chorava. Via-se indistinto entre lumaréus um convulsivo pervagar de sombras:
mulheres fugindo dos habitáculos em fogo, carregando ou arrastando crianças e
entranhando-se, às carreiras, no mais fundo do casario; vultos desorientados, fugindo ao acaso
para toda a banda; vultos escabujando por terra, vestes presas das chamas, ardendo; corpos
esturrados, estorcidos, sob fumarentos... E, dominantes, sobre este cenário estupendo,
esparsos, sem cuidarem de ocultar-se, saltando sobre os braseiros e aprumando-se sobre os
colmos ainda erguidos, os últimos defensores do arraial. Ouviam-se as suas apóstrofes rudes,
distinguiam-se vagamente os seus perfis revoluteando por dentro da fumarada; e por toda a
parte, salteadamente, a dois passos das linhas de fogo, aparecendo improvisas fisionomias
sinistras, laivadas de mascarras, bustos desnudos chamuscados, escoriados, embatendo-as, em
assaltos temerários e doidos...
Continua a réplica
Vinham matar os adversários sobre as próprias trincheiras. Estes esmoreciam. Verificaram a
inanidade do bombardeio, das cargas repetidas e do recurso extremo da dinamite.
Desanimavam. Perderam a unidade de ação e do comando. Os toques das cornetas
contrabatiam-se, discordes, interferentes nos ares, sem que ninguém os entendesse. Não havia
obedecê-los, variando as condições táticas a cada minuto e a cada passo. As seções de uma
mesma companhia avançavam, recuavam ou imobilizavam-se; subdividiam-se em todas as
esquinas; misturavam-se com as de outros corpos; embatiam com as casas ou
contornavam-nas, ou dispersavam-se aliando-se a outros grupos e reeditando, dados alguns
passos, as mesmas avançadas e os mesmos recuos, e a mesma dispersão. De sorte que, por
fim, se agitavam em bandos desorientados, em que se amalgamavam praças de todos os
batalhões.
Baixas
Aproveitando este tumulto, os jagunços fuzilaram-nos a salvo e sem piedade. A breve trecho
os combatentes, que não tinham o anteparo dos espaldões, acumularam-se às abas das
vivendas ainda intactas, ou alongaram-se, distanciados, pelos becos da parte conquistada —
evitando a zona perigosa. Esta, porém, alastrava-se. Baqueavam combatentes para além das
trincheiras; caíam inteiramente fora da órbita flamejante do combate e, como nos maus dias
da primeira semana do assédio, a mínima imprevidência e o mais rápido afastamento daqueles
abrigos frágeis eram uma temeridade.
O capitão-secretário do comando da 2.ª coluna, Aguiar e Silva, quando lhe passava por perto
um pelotão em marcha, retirou-se por um instante do cunhal que o acobertava e, para animar
o ataque, tirou entusiasticamente o chapéu, levantando um viva à República. Mas não
pronunciou as últimas sílabas. Varou-o uma bala, em pleno peito, derrubando-o.
O comandante do 25.°, major Henrique Severino, teve idêntico destino. Era uma alma
belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas.
Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do peito — criando com um
belo gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz — e
salvou-a.
Mas expusera-se. Baqueou, malferido, falecendo poucas horas depois.
E assim por diante. O combate transformara-se em tortura inaturável para os dois
antagonistas.
No hospital de sangue
As nossas baixas avultavam. Os espectadores, atestando os mirantes acasamatados da coluna
extrema do acampamento, avaliavam-nas pela lúgubre procissão de andores, padiolas e redes
que lhes passava de permeio, subindo. Saía da sanga, embaixo; derivava vagarosa na ascensão
contorneando em desvios as casas por ali espalhadas; galgava o alto e prosseguia, descendo
para o hospital de sangue, onde, à uma hora da tarde, já haviam chegado cerca de trezentos
feridos.
Mas aquela alpendrada de couro, cobrindo a reentrância que se abrigava entre colinas, não os
continha. Os feridos entulhavam-na; desbordavam para as abas das encostas envolventes, ao
sol, sobre as pedras; e arrastavam-se, disputando a sombra das barrancas, até à farmácia anexa
e pavilhão dos médicos, por onde se cruzavam, correndo, enfermeiros e médicos diminutos
demais para os satisfazer a todos. Ao fundo do barracão, arrimados aos cotovelos, de bruços,
os antigos doentes, e feridos dos dias anteriores, olhavam inquietos para os novos sócios de
infortúnio. A um lado, sobre o chão duro, corpos rígidos francamente batidos pelo sol, jaziam
os cadáveres de alguns oficiais, o tenente-coronel Tupi, o major Queirós, os alferes Raposo,
Neville, Carvalho e outros.
Soldados ofegantes e suarentos entravam e saíam intermitentemente, arcados sob padiolas.
Despejavam-nas, volvendo, prestes, naquela azáfama fúnebre que ameaçava prolongar-se pelo
dia todo. Porque até aquela hora a situação não melhorara. Persistia indecisa. Mantinha-se a
réplica feroz dos adversários. Insistentes, imprimindo no tumulto a nota de uma monotonia
cruel, reproduziam-se em todas as linhas os toques das cornetas, determinando as cargas; e
estas realizavam-se, sucessivas, rápidas, impetuosas — pelotões, batalhões, brigadas, vagas de
metal e flamas, fulgurando, rolando, arrebentando e detonando de encontro a represas
intransponíveis.
As bombas de dinamite (foram arrojadas noventa nesse dia) estouravam de momento em
momento, mas com absoluto insucesso. Adicionaram-se-lhes outros expedientes: latas de
querosene derramadas por toda a orla da casaria, avivando os incêndios.
Este recurso bárbaro, porém, por sua vez, resultara inútil.
Por fim, às duas horas da tarde, se paralisou inteiramente o assalto; cessaram de todo as
cargas; e no ânimo dos sitiantes, em franca defensiva nas posições primitivas, doíam
desapontamentos de derrota. Defluindo da baixada, a leste da praça, continuou largo tempo a
romaria penosa dos feridos, em busca do hospital de sangue. Em padiolas, em redes, ou
suspensos pelos braços entre os companheiros, ascendiam exaustos, titubeantes, arrimando-se
e cosendo-se às casas. E sobre eles, sobre as colinas, varrendo-as, sobre os morros artilhados,
varejando-os, sobre o acampamento todo, ao cair da tarde, ao anoitecer e durante a noite
inteira, visando todos os pontos da periferia do assédio, sibilando em todos os tons pelos ares,
da zona reduzidíssima onde se acantonavam os jagunços, irrompiam as balas...
O combate fora cruento e estéril. Desfalcara-nos de quinhentos e sessenta e sete lutadores,
sem resultado apreciável.
Como sempre, a vibração forte da batalha amortecera a pouco e pouco, atenuando-se em
tiroteios escassos; e toda a noite passou, velando-a, a tropa combalida na expectativa cruel de
novos recontros, novos sacrifícios inúteis e novos esforços malogrados.
Entretanto a situação dos sertanejos pioram. Tinham, com a perda da igreja nova, perdido as
últimas cacimbas. Cercavam-nos braseiros enormes, progredindo-lhes em roda e avançando
de três pontos — do norte, leste e oeste —obstringindo-os no último reduto.
Mas à madrugada de 2 os triunfadores fatigados despertaram com uma descarga desafiadora e
firme.
Notas de um diário
Nesse dia...
Translademos, sem Ihes alterar uma linha, as últimas notas de um "Diário", escritas à medida
que se desenrolavam os acontecimentos.
"... Chegam à uma hora em grande número novos prisioneiros — sintoma claro de
enfraquecimento entre os rebeldes. Eram esperados. Agitara-se pouco depois do meio-dia uma
bandeira branca no cento dos últimos casebres e os ataques cessaram imediatamente do nosso
lado. Rendiam-se, afinal. Entretanto não soaram os clarins. Um grande silencio avassalou as
linhas e o acampamento.
A bandeira, um trapo nervosamente agitado, desapareceu; e, logo depois, dois sertanejos,
saindo de um atravancamento impenetrável, se apresentaram ao comandante de um dos
batalhões. Foram para logo conduzidos à presença do comandante-em-chefe, na comissão de
engenharia.
continua na página 346...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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