OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Últimos dias
VI -
O Fim
Não há relatar o que houve a 3 e a 4.
Não há relatar o que houve a 3 e a 4.
A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo,
inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações
de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos
toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num
exército sem distintivos e sem fardas.
Sabia -se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas
horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um
lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de
pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores,
esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio
formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um
túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos
dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o
quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas
concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas,
combatiam contra um exército.
E lutavam com relativa vantagem ainda.
Pelos menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram
lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e
sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos
jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante
do 39.°, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a
ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres
envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os,
esmagando-os...
Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que
os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um
quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de
sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada.
E salteava-os a atonia do assombro...
Canudos não se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao
esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do
termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos
fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e
trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma
perspectiva maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em
que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,
abraçadas aos filhos pequeninos...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato
singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos
colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara,
confiante — e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase
obscura da nossa História?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas,
5.200, cuidadosamente contadas.
O cadáver do Conselheiro
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o
cadáver de Antônio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de
um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de
um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores
murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do
"famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul
de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esquálido, olhos
fundos cheios de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam
tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único prêmio, únicos
despojos opimos de tal guerra! — , faziam-se mister os máximos resguardos
para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa
angulhenta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua
identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal,
extinto aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas
vezes maldita — e, como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma
faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face
horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles
triunfadores...
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele
crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de
circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...
Capítulo VII
Duas linhas
FIM
continua na página 351...
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Leia também:
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OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
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OS SERTÕES - Últimos dias: VI. O Fim
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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