domingo, 3 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Nova fase da luta: III: Embaixada ao céu

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Nova fase da luta 


III - 

Embaixada ao céu

     Mas o bloqueio, incompleto e com extenso claro ao norte, não reduzira o inimigo aos últimos recursos. Os caminhos para a Várzea da Ema e o Uauá estavam francos, subdividindo-se multívios pelas chapadas em fora, para a extensa faixa do S. Francisco, atravessando rincões de todo desconhecidos, até atingirem os insignificantes lugarejos marginais àquele rio, entre Chorrochó e Santo Antônio da Glória. Por ali chegavam pequenos fornecimentos e poderiam entrar, à vontade, novos reforços de lutadores. Porque se dirigiam precisamente nos rumos mais favoráveis, atravessando vasto trato de um território que é o núcleo onde se ligam e se confundem os fundos dos sertões de seis Estados, da Bahia ao Piauí.
     Desse modo formavam aos sertanejos a melhor saída, levando-os à matriz em que se haviam gerado todos os elementos da revolta. Em último caso eram um escape à salvação. A população, trilhando-os, mal seria perseguida nas primeiras léguas, na pior alternativa. Abrigá-la-ia — impérvio e indefinido — o deserto.
     Não o fez, porém, embora sentisse acrescida, em torno, a força dos adversários, coincidindo-lhe com o próprio deperecimento. Haviam desaparecido os principais guerrilheiros: Pajeú, nos últimos combates de julho; o sinistro João Abade, em agosto; o ardiloso Macambira, recentemente; José Venâncio e outros. Restavam como figuras principais Pedrão, terrível defensor de Cocorobó, e Joaquim Norberto, guindado ao comando pela carência de outros melhores. Por outro lado, escasseavam os mantimentos e acentuava-se cada vez mais o desequilíbrio entre o número de combatentes válidos, continuamente diminuído e o de mulheres, crianças, velhos, aleijados e enfermos, continuamente crescente. Esta maioria imprestável tolhia o movimento dos primeiros e reduzia os recursos. Podia fugir, escoar-se a pouco e pouco em bandos diminutos pelas veredas que restavam, deixando aqueles desafogados e forrando-se ao último sacrifício. Não o quis. De modo próprio todos os seres frágeis e abatidos, certos da própria desvalia, se devotavam a quase completo jejum, em prol dos que os defendiam. Não os deixaram.
     A vida no arraial tornou-se então atroz. Revelaram-na depois a miséria, o abatimento completo e a espantosa magreza de seiscentas prisioneiras. Dias de angústias indescritíveis foram suportados diante das derradeiras portas abertas para a liberdade e para a vida. E permaneceriam para todo o sempre inexplicáveis, se, mais tarde, os mesmos que os atravessaram não revelassem a origem daquele estoicismo admirável. É simples.

     Falecera a 22 de agosto Antônio Conselheiro.

     Ao ver tombarem as igrejas, arrombado o santuário, santos feitos estilhas, altares caídos, relíquias sacudidas no encaliçamento das paredes e — alucinadora visão ! — o Bom Jesus repentinamente a apear-se do altar- mor, baqueando sinistramente em terra, despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se ferido de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E imobilizou-se certo dia, de bruços, a fronte colada à terra, dentro do templo em ruínas.
     Ali o encontrou numa manhã Antônio Beatinho.
     Estava rígido e frio, tendo aconchegado do peito um crucifixo de prata.
     Ora, este acontecimento — capital na história da campanha — e de que parecia dever decorrer o seu termo imediato, contra o que era de esperar aviventou a insurreição. É que, gizada talvez pelo espírito astucioso de algum cabecilha, que prefigurara as consequências desastrosas do fato, ou, o que se pode também acreditar, nascida espontaneamente da hipnose coletiva, logo que a beataria impressionada notou a falta do apóstolo, embora este nos últimos tempos aparecesse raras vezes — se divulgou extraordinária notícia.
     Relataram-na depois, ingenuamente, os vencidos:

Antônio Conselheiro seguira em viagem para o céu. Ao ver mortos os seus principais ajudantes e maior o número de soldados, resolvera dirigir-se diretamente à Providência. O fantástico embaixador estava àquela hora junto de Deus. Deixara tudo prevenido. Assim é que os soldados, ainda quando caíssem nas maiores aperturas, não podiam sair do lugar em que se achavam. Nem mesmo para se irem embora, como das outras vezes. Estavam chumbados às trincheiras. Fazia-se mister que ali permanecessem para a expiação suprema, no próprio local dos seus crimes. Porque o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos, descendo — gládios flamívomos coruscando na altura — numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo.

     Desoprimiram-se todas as almas; dispuseram-se os crentes para os maiores tratos daquela penitência, que os salvava; e nenhum deles notou que logo depois, sob pretextos vários, alguns incrédulos, e entre eles Vila-Nova, abandonavam a povoação, tomando por ignoradas trilhas.
     Saíam ainda em tempo. Eram os últimos que escapavam, porque no dia 24 a situação mudou.


continua na página 317...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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