OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Últimos dias
I. O estrebuchar dos vencidos. Os prisioneiros. A degola.II. Depoimento de uma testemunha.III. Titãs contra moribundos. Em torno das cacimbas. Sobre os muradais da igreja nova.IV. Passeio dentro de Canudos.V. O assalto. Notas de um Diário.VI. O fim. Crânio do Conselheiro.VII. Duas linhas
I -
O estrebuchar dos vencidos
Sucedeu, então, um fato extraordinário de todo em todo imprevisto.
Sucedeu, então, um fato extraordinário de todo em todo imprevisto.
O inimigo desairado revivesceu com vigor incrível. Os combatentes, que o enfrentavam
desde o começo, desconheceram-no. Haviam-no visto, até aquele dia, astucioso, negaceando
na maranha das tocaias, indomável na repulsa às mais valentes cargas, sem par na fugacidade
com que se subtraía aos mais improvisos ataques. Começaram a vê-lo heroico.
A constrição de milhares de baionetas circulantes estimulara-o, enrijara-o; e dera-lhe, de
novo, a iniciativa nos combates. Estes principiaram desde 23, insistentes como nunca,
sulcando todos os pontos, num rumo gigante, estonteador, batendo, trincheira por trincheira,
toda a cercadura do sítio.
Era como uma vaga revolta, desencadeando-se num tumulto de voragem. Repelida pelas
tranqueiras avançadas de leste, refluía numa esteira fulgurante de descargas na direção do
Cambaio; arrebentava nas encostas que ali descem, clivosas, para o rio: recebia, em cima e em
cheio, a réplica das guarnições que as encimavam, e rolava, envesgando para o norte,
acachoando dentro do álveo do Vaza-Barris, até se despedaçar de encontro às paliçadas que
naquele sentido o represavam; volvia vertiginosamente ao sul; viam-na ondular, célere e
agitante, por dentro do arraial, atravessando-o, e logo depois marulhar, recortada de tiros, na
base dos primeiros esporões da Favela; saltava de novo para o leste, torcida, embaralhada,
estrepitosa — e batia a esquerda do 5.° da Bahia: era repelida; caía adiante sobre a barreira do
26.º: era repelida; retraía-se daquele ponto para o centro da praça, inflectindo, serpeante,
rápida, e quebrava-se, um minuto depois, sobre a linha negra; passava indistinta, mal vista ao
clarão fugaz das fuzilarias, e corria mais uma vez para o norte, chofrando os mesmos pontos,
repulsada sempre e atacando sempre, num remoinhar irreprimível c rítmico de ciclone...
Parava. Súbita quietude substituía o torvelinho furioso. Absoluto silêncio descia sobre os dois
campos. Os sitiantes deixavam a formatura do combate.
Mas repousavam alguns minutos breves.
Um estampido atroava na igreja nova, e viam-se-lhe sobre as cimalhas fendidas,
engrimponados nas pedras vacilantes, vultos erradios, cruzando-se, mal firmes sobre
escombros, correndo numa ronda doida . Tombavam-lhes logo em cima, revessadas de todos
os trechos artilhados, lanternetas desabrolhando em balas. Não as suportavam. Desciam ,em
despenhos e resvalos de símios, daqueles muradais Perdiam-se nos pardieiros próximos ao
santuário. E ressurgiam, inopinadamente, junto de um ponto qualquer da linha Batiam-no,
eram repelidos; atacavam as outras trincheiras anexas, eram repelidos; caíam sobre as que se
sucediam, e prosseguiam no giro, arrebatados na rotação enorme dos assaltos.
Os que na véspera desdenhavam o adversário entaipado naqueles casebres
assombravam-se. Como nos maus dias passados, mais intensamente ainda, jugulou-os o
espanto.
Cessaram os desafios imprudentes. Determinou-se, de novo, que não soassem as cornetas. Só
havia um toque possível — o de alarma — e este o inimigo eloquentemente o dava.
Despovoaram-se os cerros. Terminou o fanfarrear dos que por ali se estadeavam, desafiando
tiros. Valentes de fama, premunidos de cautelas, fraldejavam-nos, às rebatinhas pelas
passagens cobertas, curvando-se , e transpondo aos pinchos os pontos enfiados. Tornaram-se
outra vez dificílimas as comunicações. Os comboios desde que apontavam ao sul na crista dos
morros, pela estrada do Calumbi, começavam a ser alvejados; desciam-nos precípites e alguns
comboieiros vinham cair feridos no último passo, à entrada do acampamento.
A situação tornou-se, de repente, inaturável.
Não se compreendia que os jagunços tivessem ainda, após tantos meses de luta, tanta munição
de guerra. E não a poupavam. Em certas ocasiões, no mais agudo dos tiroteios, pairava sobre
os abarracamentos um longo uivar de ventania forte.
Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e
sonoros de Comblain, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres,
transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas ; sobre as tendas próximas aos
quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da Favela, onde sesteavam
cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre as
depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do
hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto; despedaçando vidros na
farmácia militar, anexa; varando, sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as
choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes
exaustos; percutindo, como pedradas rijas. as paredes espessas dos casebres da comissão de
engenharia e quartel-general da 1.ª coluna; zimbrando, em sibilos de vergastas, o pano das
barracas; e fora das barracas, dos casebres, dos toldos, das tendas, estralando, ricochetando,
ressaltando, desparzindo nos flancos das colinas, sobre as placas xistosas, quebrando-as e
esfarelando-as em estilhas, numa profusão incomparável de metralha...
A luta atingia febrilmente o desenlace da batalha decisiva que a remataria. Mas aquele
paroxismo estupendo acobardava os vitoriosos.
Os prisioneiros
Chegaram no dia 24 os primeiros prisioneiros.
Voltando triunfante, a tropa, que a princípio colhera em caminho meia dúzia de crianças, de
quatro a oito anos, por ali dispersas e tolhidas de susto, ao esquadrinhar melhor os casebres
conquistados encontrara algumas mulheres e alguns lutadores, feridos.
Estes últimos eram poucos e vinham em estado deplorável: trôpegos, arrastados, exaustos.
Um suspenso pelas axilas entre duas praças, meio desmaiado, tinha, diagonalmente, sobre
o peito nu, a desenhar-se num recalque forte, a lâmina do sabre que o abatera. Outro, o velho
curiboca desfalecido que não vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um
desenterrado claudicante. Ferido, havia meses, por estilhaços de granada, no ventre, ali tinha
dois furos, de bordos vermelhos e cicatrizados, por onde extravasavam os intestinos. A voz
morria-lhe na garganta, num regougo opresso. Não o interrogaram. Posto à sombra de uma
barranca continuou na agonia, que o devorava, talvez havia três meses.
Algumas mulheres fizeram revelações: Vila Nova seguira, na véspera, para a Várzea da
Ema. Sentia-se, já há tempos, fome no arraial, sendo quase todos os mantimentos destinados
aos que combatiam; e, revelação mais grave, o Conselheiro não aparecia desde muito.
Ainda mais, trancadas todas as saídas, começara para todos, lá dentro, o suplício crescente
da sede.
Não iam além as informações. Os que as faziam, inteiramente sucumbidos, mal
respondiam às perguntas. Um único não refletia na postura abatida as provações que
vitimavam os demais. Forte, de estatura meã e entroncada — espécimen sem falhas desses
hércules das feiras sertanejas, de ossatura de ferro articulando em juntas nodosas e apontando
em apófises rígidas — era, tudo o revelava, um lutador de primeira linha, talvez um dos
guerrilheiros acrobatas que se dependuravam ágeis nos dentilhões abalados da igreja nova.
Primitivamente branco, requeimara-se-lhe inteiramente o rosto, mosqueado de sardas.
Pendia-lhe à cintura, oscilante, batendo abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de
arrasto. Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num arremessão valente, três ou
quatro praças; lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por uma bala na órbita
esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do comandante da 1.ª coluna. Ali o
largaram. O resfolego precípite arguia o cansaço da luta. Alevantou a cabeça e o olhar
singular que lhe saía dos olhos — um cheio de brilhos, outro cheio de sangue — assustava.
Tartamudeou, desajeitadamente, algumas frases mal percebidas. Tirou o largo chapéu de
couro e, ingenuamente, fez menção de sentar-se.
Era a suprema petulância do bandido!
Brutalmente repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes.
Fora, passaram-lhe, sem que protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado
aos repelões para o flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros
companheiros que o ladeavam no seio misterioso da caatinga.
A degola
Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados
impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era
o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça,
esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a
sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais
expedito: varavam-na, prestes, a facão.
Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...
Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente
sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes
levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.
continua na página 325...
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Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
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OS SERTÕES - Últimos dias: I. O estrebuchar dos vencidos. Os prisioneiros. A degola.
OS SERTÕES - Últimos dias: II. Depoimento do autor
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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