quinta-feira, 7 de novembro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Últimos dias: I. O estrebuchar dos vencidos. Os prisioneiros. A degola.

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Últimos dias 


I. O estrebuchar dos vencidos. Os prisioneiros. A degola.
II. Depoimento de uma testemunha.
III. Titãs contra moribundos. Em torno das cacimbas. Sobre os muradais da igreja nova.
IV. Passeio dentro de Canudos.
V. O assalto. Notas de um Diário.
VI. O fim. Crânio do Conselheiro.
VII. Duas linhas 


I -


O estrebuchar dos vencidos

     Sucedeu, então, um fato extraordinário de todo em todo imprevisto.
     O inimigo desairado revivesceu com vigor incrível. Os combatentes, que o enfrentavam desde o começo, desconheceram-no. Haviam-no visto, até aquele dia, astucioso, negaceando na maranha das tocaias, indomável na repulsa às mais valentes cargas, sem par na fugacidade com que se subtraía aos mais improvisos ataques. Começaram a vê-lo heroico.
     A constrição de milhares de baionetas circulantes estimulara-o, enrijara-o; e dera-lhe, de novo, a iniciativa nos combates. Estes principiaram desde 23, insistentes como nunca, sulcando todos os pontos, num rumo gigante, estonteador, batendo, trincheira por trincheira, toda a cercadura do sítio.
     Era como uma vaga revolta, desencadeando-se num tumulto de voragem. Repelida pelas tranqueiras avançadas de leste, refluía numa esteira fulgurante de descargas na direção do Cambaio; arrebentava nas encostas que ali descem, clivosas, para o rio: recebia, em cima e em cheio, a réplica das guarnições que as encimavam, e rolava, envesgando para o norte, acachoando dentro do álveo do Vaza-Barris, até se despedaçar de encontro às paliçadas que naquele sentido o represavam; volvia vertiginosamente ao sul; viam-na ondular, célere e agitante, por dentro do arraial, atravessando-o, e logo depois marulhar, recortada de tiros, na base dos primeiros esporões da Favela; saltava de novo para o leste, torcida, embaralhada, estrepitosa — e batia a esquerda do 5.° da Bahia: era repelida; caía adiante sobre a barreira do 26.º: era repelida; retraía-se daquele ponto para o centro da praça, inflectindo, serpeante, rápida, e quebrava-se, um minuto depois, sobre a linha negra; passava indistinta, mal vista ao clarão fugaz das fuzilarias, e corria mais uma vez para o norte, chofrando os mesmos pontos, repulsada sempre e atacando sempre, num remoinhar irreprimível c rítmico de ciclone... Parava. Súbita quietude substituía o torvelinho furioso. Absoluto silêncio descia sobre os dois campos. Os sitiantes deixavam a formatura do combate.
     Mas repousavam alguns minutos breves.
     Um estampido atroava na igreja nova, e viam-se-lhe sobre as cimalhas fendidas, engrimponados nas pedras vacilantes, vultos erradios, cruzando-se, mal firmes sobre escombros, correndo numa ronda doida . Tombavam-lhes logo em cima, revessadas de todos os trechos artilhados, lanternetas desabrolhando em balas. Não as suportavam. Desciam ,em despenhos e resvalos de símios, daqueles muradais Perdiam-se nos pardieiros próximos ao santuário. E ressurgiam, inopinadamente, junto de um ponto qualquer da linha Batiam-no, eram repelidos; atacavam as outras trincheiras anexas, eram repelidos; caíam sobre as que se sucediam, e prosseguiam no giro, arrebatados na rotação enorme dos assaltos.
     Os que na véspera desdenhavam o adversário entaipado naqueles casebres assombravam-se. Como nos maus dias passados, mais intensamente ainda, jugulou-os o espanto.
     Cessaram os desafios imprudentes. Determinou-se, de novo, que não soassem as cornetas. Só havia um toque possível — o de alarma — e este o inimigo eloquentemente o dava.
     Despovoaram-se os cerros. Terminou o fanfarrear dos que por ali se estadeavam, desafiando tiros. Valentes de fama, premunidos de cautelas, fraldejavam-nos, às rebatinhas pelas passagens cobertas, curvando-se , e transpondo aos pinchos os pontos enfiados. Tornaram-se outra vez dificílimas as comunicações. Os comboios desde que apontavam ao sul na crista dos morros, pela estrada do Calumbi, começavam a ser alvejados; desciam-nos precípites e alguns comboieiros vinham cair feridos no último passo, à entrada do acampamento.
     A situação tornou-se, de repente, inaturável.
     Não se compreendia que os jagunços tivessem ainda, após tantos meses de luta, tanta munição de guerra. E não a poupavam. Em certas ocasiões, no mais agudo dos tiroteios, pairava sobre os abarracamentos um longo uivar de ventania forte.
     Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e sonoros de Comblain, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas ; sobre as tendas próximas aos quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da Favela, onde sesteavam cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto; despedaçando vidros na farmácia militar, anexa; varando, sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos; percutindo, como pedradas rijas. as paredes espessas dos casebres da comissão de engenharia e quartel-general da 1.ª coluna; zimbrando, em sibilos de vergastas, o pano das barracas; e fora das barracas, dos casebres, dos toldos, das tendas, estralando, ricochetando, ressaltando, desparzindo nos flancos das colinas, sobre as placas xistosas, quebrando-as e esfarelando-as em estilhas, numa profusão incomparável de metralha...
     A luta atingia febrilmente o desenlace da batalha decisiva que a remataria. Mas aquele paroxismo estupendo acobardava os vitoriosos.


Os prisioneiros

     Chegaram no dia 24 os primeiros prisioneiros.
     Voltando triunfante, a tropa, que a princípio colhera em caminho meia dúzia de crianças, de quatro a oito anos, por ali dispersas e tolhidas de susto, ao esquadrinhar melhor os casebres conquistados encontrara algumas mulheres e alguns lutadores, feridos.
     Estes últimos eram poucos e vinham em estado deplorável: trôpegos, arrastados, exaustos.
     Um suspenso pelas axilas entre duas praças, meio desmaiado, tinha, diagonalmente, sobre o peito nu, a desenhar-se num recalque forte, a lâmina do sabre que o abatera. Outro, o velho curiboca desfalecido que não vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um desenterrado claudicante. Ferido, havia meses, por estilhaços de granada, no ventre, ali tinha dois furos, de bordos vermelhos e cicatrizados, por onde extravasavam os intestinos. A voz morria-lhe na garganta, num regougo opresso. Não o interrogaram. Posto à sombra de uma barranca continuou na agonia, que o devorava, talvez havia três meses.
     Algumas mulheres fizeram revelações: Vila Nova seguira, na véspera, para a Várzea da Ema. Sentia-se, já há tempos, fome no arraial, sendo quase todos os mantimentos destinados aos que combatiam; e, revelação mais grave, o Conselheiro não aparecia desde muito.
     Ainda mais, trancadas todas as saídas, começara para todos, lá dentro, o suplício crescente da sede.
     Não iam além as informações. Os que as faziam, inteiramente sucumbidos, mal respondiam às perguntas. Um único não refletia na postura abatida as provações que vitimavam os demais. Forte, de estatura meã e entroncada — espécimen sem falhas desses hércules das feiras sertanejas, de ossatura de ferro articulando em juntas nodosas e apontando em apófises rígidas — era, tudo o revelava, um lutador de primeira linha, talvez um dos guerrilheiros acrobatas que se dependuravam ágeis nos dentilhões abalados da igreja nova. Primitivamente branco, requeimara-se-lhe inteiramente o rosto, mosqueado de sardas. Pendia-lhe à cintura, oscilante, batendo abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de arrasto. Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num arremessão valente, três ou quatro praças; lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por uma bala na órbita esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do comandante da 1.ª coluna. Ali o largaram. O resfolego precípite arguia o cansaço da luta. Alevantou a cabeça e o olhar singular que lhe saía dos olhos — um cheio de brilhos, outro cheio de sangue — assustava. Tartamudeou, desajeitadamente, algumas frases mal percebidas. Tirou o largo chapéu de couro e, ingenuamente, fez menção de sentar-se.
     Era a suprema petulância do bandido!
     Brutalmente repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes.
     Fora, passaram-lhe, sem que protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado aos repelões para o flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros companheiros que o ladeavam no seio misterioso da caatinga.


A degola

     Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.
     Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...
     Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.

continua na página 325...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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