Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo XIX
Q. E. D.
ANIMADO pela alta e dignificadora curiosidade de estudar o meca- nismo administrativo da
República da Bruzundanga, voltei, em certa ocasião, as minhas vistas para o exame das funções de
secretário de ministro, cujas responsabilidades sempre me disseram ser grandes e que, de longe, parece
ser de importância transcendente. Dou aqui o resultado parcial dos meus estudos, observando-lhe o
serviço sobre-humano, e por demais intelectual, nas passagens mais características do exercício do seu
cargo.
O secretário, como verão, é um funcionário indispensável ao complexo funcionamento do aparelho
governamental da Bruzundanga. Imaginem só o seguinte caso que prova a contento do mais exigente o
que afirmo.
Um dia, ao gabinete de um tal ministro da Bruzundanga, foi ter um industrial, pedindo-lhe que
fosse visitar a sua fábrica que estava inaugurando uma nova indústria no país.
Ficava longe, cinco léguas de Bosomsy; e, para se ir ter lá, era preciso tomar a barca muito cedo,
muito mesmo, às seis horas, ou antes, da manhã.
O ministro tinha já concordado em ir, quando, da sua mesa respeito- samente pequena, o secretário
ergueu-se e lembrou:
— Vossa Excelência não pode apanhar o orvalho da manhã.
— Homem, é verdade! fez o ministro.
Se não fosse a memória pronta do secretário e a sua dedicação à causa pública quantas ocorrências
graves não iriam perturbar a marcha das cousas governamentais, se o ministro, com a imprudência que
ia fazer, apanhasse um resfriado qualquer? Quantas? Um defluxo, papéis atrasados, terremotos, pestes,
inundações, etc.
Graças a Deus, porém, a gente da Bruzundanga inventou o ofício de secretário de ministro que é
capaz, a tempo, de evitar tantas desgraças...
Continuemos a demonstração. Creio que as aranhas, tanto as daqui como as da Bruzundanga, não
têm em grande conta o cargo de ministro de Estado. É de lastimar que insetos de tanto talento
desconheçam a importância de tão sublimado bímano; entretanto, não está nos poderes humanos
obrigá-las a respeitar o que respeitamos, senão devíamos fazê-lo, para que tais aracnídeos não
procedessem como um deles procedeu irreverentemente com um ministro da Bruzundanga.
Caso foi que uma aranha comum, totalmente despida de qualquer notoriedade entre as aranhas,
completamente sem destaque entre as suas iguais, teve o desaforo de pôr-se a tecer a sua teia no próprio
teto do gabinete de um ministro da Bruzundanga e bem por cima de sua majestosa cadeira.
Houve, quando o trabalho ia adiantado, não sei que espécie de cataclismo, próprio ao universo
das aranhas; e, tão forte foi ele, que um bom pedaço de labor do engenhoso articulado veio a cair em
cima da sobre- casaca da poderosa autoridade da República da Bruzundanga.
Apesar do seu imenso poder e da sua forte visão de seguro guia de povos, o grave ministro não
deu conta do desrespeito — involuntário, é verdade, mas desrespeito — de que acabava de ser objeto,
por parte de uma miserável aranha, hedionda e minúscula.
Mas, não dando pelo fato, tratou de tomar o coupé para ir ao despacho coletivo, levando tão
estranha condecoração (?) nas costas, quando o secretário, chapéu na mão, todo mesuroso, pedindo
licença, tirou a prova da indignidade do bichinho das vestes do seu amo. E ele já entrava no carro!...
Suponhamos que tal não se tivesse dado, isto é, que o ministro entrasse para o alto sínodo cuja
presidência competia ao mandachuva, com aquele evidente atestado de relaxamento.
Que pensaria o supremo da Bruzundanga? Naturalmente, penso eu, que os negócios da pasta que
lhe havia confiado, mereciam-lhe o mesmo cuidado que a sua sobrecasaca.
Ah!, Os secretários de ministro! Como são úteis!
Além desses préstimos tão relevantes de que eles não se poupam, ainda por cima são às vezes
mártires. Duvidam? Pois vou provar-lhes como é verdade.
O deputado Fur-hi-Bhundo tinha um pedido a outro ministro da Bruzundanga. Este por qualquer
motivo não lhe pôde servir e atendeu a outro “pistolão”. Sabedor da cousa, Fur-hi-Bhundo voou que
nem uma frecha para a respectiva Secretaria de Estado.
Arrebatadamente entra pelo gabinete ministerial adentro e, dando com o secretário, pois o ministro
não estava, desanda no dedicado serventuário uma feroz descompostura em que o chama de lacaio, de
capacho, de toma-larguras, de lavador de tinteiros, etc., etc.
Entretanto, o secretário não merecia tão feroz objurgatória, pois, em geral, esses abnegados
serventuários da Bruzundanga são pessoas ternas, meigas, de bom coração, especialmente com os
filhos dos ministros.
Em dias de festas, das festas familiares dos ministros, é de ver como tratam os pimpolhos
ministeriais; é de ver como suportam resignadamente o peso de um nas costas, o de um outro nos
joelhos, além do incômodo de um terceiro que lhe passou um barbante na boca e simula guiá-lo como
cavalo de tílburi.
Não vão para a copa; mas — coitados! — aturam cousas muito piores.
Disse, no começo desta “nota”, que o secretário de ministro era indispensável ao complexo
funcionamento do aparelho governamental da Bruzundanga.
Pelos fatos que expus, estou certo de que provei esta asserção; e posso concluir com orgulho,
com aquele orgulho de um jovem estudante, quando acaba de demonstrar com segurança um teorema
de geometria e dizer, como ele ou como o velho compêndio de Euclides, que demonstrei o que era
preciso demonstrar — quod erat demonstradum, Q. E. D. como abreviam os compêndios.
continua na página 60...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo XIX: Q. E. D.
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.
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