O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Soube. Fermina Daza deu instruções ao camareiro para que a deixasse dormir a
seu gosto, e quando acordou havia na mesa da cabeceira um jarro com uma rosa
branca, fresca, ainda suada de orvalho, e com ela uma carta de Florentino Ariza com
tantas folhas quantas conseguira escrever depois de se despedir dela. Era uma carta
tranquila, que procurava apenas exprimir o estado de ânimo que o embargava desde
a noite anterior: tão lírica quanto as outras, tão retórica como todas, mas apoiada na
realidade. Fermina Daza leu-a um tanto envergonhada de si mesma com os
descarados galopes do seu coração. Acabava com o pedido de que avisasse ao
camareiro quando estivesse pronta, pois o capitão os esperava no posto de comando
para mostrar o funcionamento do navio.
Estava pronta às onze, banhada e recendente a sabonete de flores, com um
vestido de viúva muito singelo de étamine cinzenta, e inteiramente refeita da
tempestade da noite. Pediu um café sóbrio ao camareiro de branco impecável, que
estava no serviço pessoal do comandante, mas não mandou o recado de que
viessem buscá-la. Subiu só, deslumbrada pelo céu sem nuvens, e encontrou
Florentino Ariza conversando com o comandante no posto de comando. Pareceu-lhe
diferente, não só porque ela o via agora com outros olhos, como porque havia de
fato mudado. Em lugar da fúnebre indumentária da vida inteira usava sapatos
brancos muito cômodos, calça e camisa de linho de colarinho aberto e manga curta
e seu monograma bordado no bolso do peito. Usava além disso um gorro escocês,
também branco, e um dispositivo de vidros escuros superposto a seus eternos
óculos de míope. Via-se logo que era tudo de primeiro uso e acabado de comprar
com o propósito da viagem, salvo o cinto de couro marrom, muito gasto, que
Fermina Daza notou ao primeiro golpe de vista como uma mosca na sopa. Ao vê-lo
assim, vestido para ela de um modo tão ostensivo, não pôde impedir o rubor de fogo
que lhe subiu ao rosto. Perturbou-se ao cumprimentá-lo, e ele se perturbou mais
ainda com a perturbação dela. A consciência de que se comportavam como noivos
perturbou-os ainda mais, e a consciência de estarem ambos perturbados acabou de
perturbá-los a tal ponto que o comandante Samaritano notou tudo com um trêmulo
de compaixão. Tirou-os do apuro explicando o manejo dos comandos e o
mecanismo geral do navio durante duas horas. Navegavam muito devagar por um
rio sem margens que se dispersava entre praias áridas até o horizonte. Mas ao
contrário das águas turvas da desembocadura, aquelas eram lentas e diáfanas, e
tinham um resplendor de metal debaixo do sol impiedoso. Fermina Daza teve a
impressão de um delta povoado de ilhas de areia.
— É o pouco que nos vai restando do rio — disse o comandante.
Florentino Ariza, com efeito, estava surpreendido com o que havia de mudado, e
mais ainda estaria no dia seguinte, quando a navegação ficou mais difícil, e
percebeu que o rio pai, o Madalena, um dos maiores do mundo, não passava de uma
ilusão da memória. O capitão Samaritano explicou como o desmatamento irracional
tinha acabado com o rio em cinquenta anos: as caldeiras dos navios tinham
devorado a selva emaranhada de árvores colossais que Florentino Ariza sentia como
uma opressão na primeira viagem. Fermina Daza não veria os bichos de seus
sonhos: os caçadores de peles dos curtumes de Nova Orleans haviam exterminado
os jacarés que fingiam de mortos com as fauces abertas durante horas e horas nos
barrancos da margem para surpreender as borboletas, os louros com suas algaravias
e os micos com seus gritos de doidos tinham ido morrendo à medida que acabavam
as frondes, os peixes-boi de grandes tetas de mãe que amamentavam as crias e
choravam com vozes de mulher desolada nas pontas de areia eram uma espécie
extinta pelas balas blindadas dos caçadores de prazer.
O capitão Samaritano tinha um afeto quase maternal pelos peixes-boi, porque
lhe davam a impressão de senhoras condenadas por algum extravio de amor, e tinha
como certa a lenda de que eram as únicas fêmeas sem machos no reino animal.
Sempre se opunha a que disparassem de bordo como era costume, apesar de
existirem leis que o proibiam. Um caçador da Carolina do Norte, com sua
documentação em regra, tinha desobedecido as suas ordens e destroçado a cabeça
de uma mãe de peixe-boi com um disparo certeiro de sua Springfield, e a cria tinha
ficado enlouquecida de dor chorando aos gritos sobre o corpo estendido. O
comandante tinha feito subir para bordo o órfão, para cuidar dele, e deixou o
caçador abandonado na praia deserta junto do cadáver da mãe assassinada. Passou
seis meses no cárcere, devido a protestos diplomáticos, e quase perdeu sua licença
de navegante, mas saiu disposto a repetir o feito sempre que houvesse ocasião.
Contudo, aquele passou a ser um episódio histórico: o peixe-boi órfão, que cresceu
e viveu muitos anos no parque de animais raros de São Nicolau das Barrancas, foi o
último que se viu no rio.
— Cada vez que passo por essa praia — disse — rogo a Deus que aquele gringo
volte a embarcar no meu navio, para que eu volte a deixá-lo.
Fermina Daza e Florentino Ariza permaneceram nos postos de comando até a
hora do almoço, e pouco depois passaram diante do povoado de Calamar, que uns
poucos anos antes vivia em festa perpétua, e agora era um porto em ruínas de ruas
desoladas. O único ser que se avistou do navio foi uma mulher vestida de branco
que fazia sinais com um lenço. Fermina Daza não entendeu por que não a
recolhiam, se parecia tão aflita, mas o comandante explicou que era a aparição de
uma afogada que fazia sinais de engano com o intuito de desviar os navios para os
perigosos remoinhos da outra margem. Passaram tão perto dela que Fermina Daza
a viu em todos os detalhes, e não duvidou de que na realidade não existisse, mas
seu rosto lhe pareceu conhecido.
Foi um dia longo e calorento. Fermina Daza voltou ao camarote depois do
almoço, para sua sesta inevitável, mas não dormiu bem com a dor de ouvido, que
ficou mais intensa quando o navio trocou as saudações de rigor com outro da C.F.C.
com o qual cruzou algumas léguas acima de Barranca Velha. Florentino Ariza
cochilou um sonho instantâneo sentado no salão principal, onde a maioria dos
passageiros sem camarote dormia como à meia-noite, e sonhou com Rosalba muito
perto do lugar em que a vira embarcar. Viajava só, com suas modas da Mompox do
século anterior, e era ele e não a criança que dormia a sesta na gaiola de vime
pendente da viga. Foi um sonho ao mesmo tempo tão enigmático e divertido que ele
guardou seu sabor durante toda a tarde, enquanto jogava dominó com o
comandante e dois passageiros amigos.
O calor cessava ao pôr-do-sol, e o navio revivia. Os passageiros emergiam como
de um letargo, recém-banhados e de roupa limpa, e ocupavam as poltronas de vime
do salão à espera do jantar, anunciado às cinco em ponto por um copeiro que
percorria o convés de um extremo ao outro fazendo soar entre aplausos de
brincadeira uma sineta de sacristão. Durante o repasto, começava a banda sua
música de fandango, e a dança não cessava até a meia-noite.
Com a dor de ouvido, Fermina Daza não quis jantar, e assistiu ao primeiro
embarque de lenha para as caldeiras, numa barranca pelada onde nada havia além
dos troncos amontoados, e um homem muito velho que atendia ao negócio. Não
parecia haver nada mais em muitas léguas. Para Fermina Daza foi uma escala lenta
e tediosa, inimaginável nos transatlânticos da Europa, e o calor era tanto que se
podia sentir mesmo dentro do mirante refrigerado. Mas quando o navio zarpou de
novo soprava um vento fresco recendente a entranhas de selva, e a música ficou
mais alegre. Na povoação de Sítio Novo havia uma única luz numa única janela de
uma única Casa, e no escritório do porto não fizeram o sinal combinado de que
havia carga ou passageiros para o navio, de maneira que este passou sem saudar.
Fermina Daza estivera toda a tarde perguntando a si mesma de que recursos ia
valer-se Florentino Ariza para vê-la sem chamar à parte do camarote, e por volta das
oito não aguentou mais as ânsias de estar com ele. Saiu ao corredor na esperança de
encontrá-lo de um modo que parecesse casual, e não precisou andar muito:
Florentino Ariza estava sentado num banco do corredor, calado e triste como na
pracinha dos Evangelhos, há mais de duas horas se perguntando como ia fazer para
vê-la. Fizeram ambos o mesmo gesto de surpresa que ambos sabiam fingido, e
percorreram juntos o convés da primeira classe atulhado de gente jovem, a maioria
estudantes ruidosos que se esfalfavam com certa ansiedade na última pândega das
festas. Na cantina, Florentino Ariza e Fermina Daza tomaram um refresco de
garrafa sentados como estudantes ao balcão, e ela se viu de repente numa situação
temida. Disse: "Que horror!" Florentino Ariza perguntou em que pensava para ter
semelhante impressão.
— Nos pobres velhinhos — disse ela. — Os que mataram a golpes de remo no
bote.
Foram dormir quando acabou a música, depois de uma longa conversa sem
tropeços no mirante escuro. Não houve lua, o céu estava nublado, e no horizonte
explodiam relâmpagos sem trovões que os iluminavam por um instante. Florentino
Ariza enrolou os cigarros para ela, que não fumou mais de quatro, atormentada pela
dor que se aliviava por momentos e recrudescia quando o navio bramia ao cruzar
com outro, ou ao passar na frente de um povoado adormecido, ou quando navegava
devagar para sondar o fundo do rio. Ele lhe contou com que ansiedade a vira sempre
nos Jogos Florais, no vôo em balão, no velocípede de acrobata, e com quanta
ansiedade esperava as festas públicas durante todo o ano só para vê-la. Também ela
o vira muitas vezes, e nunca teria imaginado que ele ali estivesse só para vê-la.
Contudo, há apenas um ano, ao ler suas cartas, se perguntara de repente como
explicar que ele jamais houvesse competido nos Jogos Florais: sem dúvida teria
ganho. Florentino Ariza mentiu: só escrevia para ela, versos para ela, e só ele os lia.
Então foi ela quem buscou sua mão no escuro, não a encontrou esperando-a como
esperara a dele na noite da véspera, e pegou-a de surpresa. Gelou-se o coração de
Florentino Ariza.
— Como são curiosas as mulheres — disse.
Ela deu uma risada profunda, de pomba jovem, e tornou a pensar nos anciãos do
bote. Estava escrito: aquela imagem havia de persegui-la sempre. Mas nessa noite
podia suportá-la, porque se sentia tranquila e bem, como poucas vezes na vida:
limpa de toda culpa. Teria ficado assim até o amanhecer, calada, a mão dele suando
gelo em sua mão, mas não pôde suportar o tormento do ouvido. De modo que
quando se apagou a música, e depois cessou a bulha dos passageiros comuns
pendurando redes no salão, ela compreendeu que sua dor era mais forte que o
desejo de estar com ele. Sabia que o simples dizer isso a ele ia aliviá-la, mas não o
fez para não preocupá-lo. Pois já tinha então a impressão de conhecê-lo como se
tivesse vivido com ele toda a vida, e acreditava que ele era capaz de mandar o navio
voltar ao porto se isso pudesse curar sua dor.
continua na página 250...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Soube
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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