quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Soube

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Soube. Fermina Daza deu instruções ao camareiro para que a deixasse dormir a seu gosto, e quando acordou havia na mesa da cabeceira um jarro com uma rosa branca, fresca, ainda suada de orvalho, e com ela uma carta de Florentino Ariza com tantas folhas quantas conseguira escrever depois de se despedir dela. Era uma carta tranquila, que procurava apenas exprimir o estado de ânimo que o embargava desde a noite anterior: tão lírica quanto as outras, tão retórica como todas, mas apoiada na realidade. Fermina Daza leu-a um tanto envergonhada de si mesma com os descarados galopes do seu coração. Acabava com o pedido de que avisasse ao camareiro quando estivesse pronta, pois o capitão os esperava no posto de comando para mostrar o funcionamento do navio.
     Estava pronta às onze, banhada e recendente a sabonete de flores, com um vestido de viúva muito singelo de étamine cinzenta, e inteiramente refeita da tempestade da noite. Pediu um café sóbrio ao camareiro de branco impecável, que estava no serviço pessoal do comandante, mas não mandou o recado de que viessem buscá-la. Subiu só, deslumbrada pelo céu sem nuvens, e encontrou Florentino Ariza conversando com o comandante no posto de comando. Pareceu-lhe diferente, não só porque ela o via agora com outros olhos, como porque havia de fato mudado. Em lugar da fúnebre indumentária da vida inteira usava sapatos brancos muito cômodos, calça e camisa de linho de colarinho aberto e manga curta e seu monograma bordado no bolso do peito. Usava além disso um gorro escocês, também branco, e um dispositivo de vidros escuros superposto a seus eternos óculos de míope. Via-se logo que era tudo de primeiro uso e acabado de comprar com o propósito da viagem, salvo o cinto de couro marrom, muito gasto, que Fermina Daza notou ao primeiro golpe de vista como uma mosca na sopa. Ao vê-lo assim, vestido para ela de um modo tão ostensivo, não pôde impedir o rubor de fogo que lhe subiu ao rosto. Perturbou-se ao cumprimentá-lo, e ele se perturbou mais ainda com a perturbação dela. A consciência de que se comportavam como noivos perturbou-os ainda mais, e a consciência de estarem ambos perturbados acabou de perturbá-los a tal ponto que o comandante Samaritano notou tudo com um trêmulo de compaixão. Tirou-os do apuro explicando o manejo dos comandos e o mecanismo geral do navio durante duas horas. Navegavam muito devagar por um rio sem margens que se dispersava entre praias áridas até o horizonte. Mas ao contrário das águas turvas da desembocadura, aquelas eram lentas e diáfanas, e tinham um resplendor de metal debaixo do sol impiedoso. Fermina Daza teve a impressão de um delta povoado de ilhas de areia.

— É o pouco que nos vai restando do rio — disse o comandante.

     Florentino Ariza, com efeito, estava surpreendido com o que havia de mudado, e mais ainda estaria no dia seguinte, quando a navegação ficou mais difícil, e percebeu que o rio pai, o Madalena, um dos maiores do mundo, não passava de uma ilusão da memória. O capitão Samaritano explicou como o desmatamento irracional tinha acabado com o rio em cinquenta anos: as caldeiras dos navios tinham devorado a selva emaranhada de árvores colossais que Florentino Ariza sentia como uma opressão na primeira viagem. Fermina Daza não veria os bichos de seus sonhos: os caçadores de peles dos curtumes de Nova Orleans haviam exterminado os jacarés que fingiam de mortos com as fauces abertas durante horas e horas nos barrancos da margem para surpreender as borboletas, os louros com suas algaravias e os micos com seus gritos de doidos tinham ido morrendo à medida que acabavam as frondes, os peixes-boi de grandes tetas de mãe que amamentavam as crias e choravam com vozes de mulher desolada nas pontas de areia eram uma espécie extinta pelas balas blindadas dos caçadores de prazer.  
     O capitão Samaritano tinha um afeto quase maternal pelos peixes-boi, porque lhe davam a impressão de senhoras condenadas por algum extravio de amor, e tinha como certa a lenda de que eram as únicas fêmeas sem machos no reino animal. Sempre se opunha a que disparassem de bordo como era costume, apesar de existirem leis que o proibiam. Um caçador da Carolina do Norte, com sua documentação em regra, tinha desobedecido as suas ordens e destroçado a cabeça de uma mãe de peixe-boi com um disparo certeiro de sua Springfield, e a cria tinha ficado enlouquecida de dor chorando aos gritos sobre o corpo estendido. O comandante tinha feito subir para bordo o órfão, para cuidar dele, e deixou o caçador abandonado na praia deserta junto do cadáver da mãe assassinada. Passou seis meses no cárcere, devido a protestos diplomáticos, e quase perdeu sua licença de navegante, mas saiu disposto a repetir o feito sempre que houvesse ocasião. Contudo, aquele passou a ser um episódio histórico: o peixe-boi órfão, que cresceu e viveu muitos anos no parque de animais raros de São Nicolau das Barrancas, foi o último que se viu no rio.

— Cada vez que passo por essa praia — disse — rogo a Deus que aquele gringo volte a embarcar no meu navio, para que eu volte a deixá-lo.

     Fermina Daza e Florentino Ariza permaneceram nos postos de comando até a hora do almoço, e pouco depois passaram diante do povoado de Calamar, que uns poucos anos antes vivia em festa perpétua, e agora era um porto em ruínas de ruas desoladas. O único ser que se avistou do navio foi uma mulher vestida de branco que fazia sinais com um lenço. Fermina Daza não entendeu por que não a recolhiam, se parecia tão aflita, mas o comandante explicou que era a aparição de uma afogada que fazia sinais de engano com o intuito de desviar os navios para os perigosos remoinhos da outra margem. Passaram tão perto dela que Fermina Daza a viu em todos os detalhes, e não duvidou de que na realidade não existisse, mas seu rosto lhe pareceu conhecido. 
     Foi um dia longo e calorento. Fermina Daza voltou ao camarote depois do almoço, para sua sesta inevitável, mas não dormiu bem com a dor de ouvido, que ficou mais intensa quando o navio trocou as saudações de rigor com outro da C.F.C. com o qual cruzou algumas léguas acima de Barranca Velha. Florentino Ariza cochilou um sonho instantâneo sentado no salão principal, onde a maioria dos passageiros sem camarote dormia como à meia-noite, e sonhou com Rosalba muito perto do lugar em que a vira embarcar. Viajava só, com suas modas da Mompox do século anterior, e era ele e não a criança que dormia a sesta na gaiola de vime pendente da viga. Foi um sonho ao mesmo tempo tão enigmático e divertido que ele guardou seu sabor durante toda a tarde, enquanto jogava dominó com o comandante e dois passageiros amigos.
     O calor cessava ao pôr-do-sol, e o navio revivia. Os passageiros emergiam como de um letargo, recém-banhados e de roupa limpa, e ocupavam as poltronas de vime do salão à espera do jantar, anunciado às cinco em ponto por um copeiro que percorria o convés de um extremo ao outro fazendo soar entre aplausos de brincadeira uma sineta de sacristão. Durante o repasto, começava a banda sua música de fandango, e a dança não cessava até a meia-noite.
     Com a dor de ouvido, Fermina Daza não quis jantar, e assistiu ao primeiro embarque de lenha para as caldeiras, numa barranca pelada onde nada havia além dos troncos amontoados, e um homem muito velho que atendia ao negócio. Não parecia haver nada mais em muitas léguas. Para Fermina Daza foi uma escala lenta e tediosa, inimaginável nos transatlânticos da Europa, e o calor era tanto que se podia sentir mesmo dentro do mirante refrigerado. Mas quando o navio zarpou de novo soprava um vento fresco recendente a entranhas de selva, e a música ficou mais alegre. Na povoação de Sítio Novo havia uma única luz numa única janela de uma única Casa, e no escritório do porto não fizeram o sinal combinado de que havia carga ou passageiros para o navio, de maneira que este passou sem saudar.
     Fermina Daza estivera toda a tarde perguntando a si mesma de que recursos ia valer-se Florentino Ariza para vê-la sem chamar à parte do camarote, e por volta das oito não aguentou mais as ânsias de estar com ele. Saiu ao corredor na esperança de encontrá-lo de um modo que parecesse casual, e não precisou andar muito: Florentino Ariza estava sentado num banco do corredor, calado e triste como na pracinha dos Evangelhos, há mais de duas horas se perguntando como ia fazer para vê-la. Fizeram ambos o mesmo gesto de surpresa que ambos sabiam fingido, e percorreram juntos o convés da primeira classe atulhado de gente jovem, a maioria estudantes ruidosos que se esfalfavam com certa ansiedade na última pândega das festas. Na cantina, Florentino Ariza e Fermina Daza tomaram um refresco de garrafa sentados como estudantes ao balcão, e ela se viu de repente numa situação temida. Disse: "Que horror!" Florentino Ariza perguntou em que pensava para ter semelhante impressão. 

— Nos pobres velhinhos — disse ela. — Os que mataram a golpes de remo no bote.

     Foram dormir quando acabou a música, depois de uma longa conversa sem tropeços no mirante escuro. Não houve lua, o céu estava nublado, e no horizonte explodiam relâmpagos sem trovões que os iluminavam por um instante. Florentino Ariza enrolou os cigarros para ela, que não fumou mais de quatro, atormentada pela dor que se aliviava por momentos e recrudescia quando o navio bramia ao cruzar com outro, ou ao passar na frente de um povoado adormecido, ou quando navegava devagar para sondar o fundo do rio. Ele lhe contou com que ansiedade a vira sempre nos Jogos Florais, no vôo em balão, no velocípede de acrobata, e com quanta ansiedade esperava as festas públicas durante todo o ano só para vê-la. Também ela o vira muitas vezes, e nunca teria imaginado que ele ali estivesse só para vê-la. Contudo, há apenas um ano, ao ler suas cartas, se perguntara de repente como explicar que ele jamais houvesse competido nos Jogos Florais: sem dúvida teria ganho. Florentino Ariza mentiu: só escrevia para ela, versos para ela, e só ele os lia. Então foi ela quem buscou sua mão no escuro, não a encontrou esperando-a como esperara a dele na noite da véspera, e pegou-a de surpresa. Gelou-se o coração de Florentino Ariza.

— Como são curiosas as mulheres — disse. 

     Ela deu uma risada profunda, de pomba jovem, e tornou a pensar nos anciãos do bote. Estava escrito: aquela imagem havia de persegui-la sempre. Mas nessa noite podia suportá-la, porque se sentia tranquila e bem, como poucas vezes na vida: limpa de toda culpa. Teria ficado assim até o amanhecer, calada, a mão dele suando gelo em sua mão, mas não pôde suportar o tormento do ouvido. De modo que quando se apagou a música, e depois cessou a bulha dos passageiros comuns pendurando redes no salão, ela compreendeu que sua dor era mais forte que o desejo de estar com ele. Sabia que o simples dizer isso a ele ia aliviá-la, mas não o fez para não preocupá-lo. Pois já tinha então a impressão de conhecê-lo como se tivesse vivido com ele toda a vida, e acreditava que ele era capaz de mandar o navio voltar ao porto se isso pudesse curar sua dor.  

continua na página 250...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Soube
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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