sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XXII: Notas Soltas (a)

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


Capítulo XXII
Notas Soltas

     UM anúncio de livraria, na Bruzundanga:

“Acaba de aparecer o extraordinário romance — Meu caro senhor..., de Dona Adhel Karatá (pseudônimo de Hiralhema Sokothara Lomes, filha do grande poeta e escritor Sokothara Lomes, cujas assombrosas glórias literárias ela continua com muito brilho, e irmã do fino estilista e elegante parlamentar Carol Sokothara Lomes). À venda, etc., etc.” 

***

     Lá, na Bruzundanga, os mandachuvas, quando são eleitos, e empossados, tratam logo de colocar em bons lugares os da sua clientela. Fazem reformas, inventam repartições, para executarem esse seu alto fim político.
     Há, porém, dous cargos estritamente municipais e atinentes à administração local da capital da Bruzundanga, que todos os matutos amigos dos mandachuvas disputam. Os mandachuvas, em geral, são do interior do país. Estes cargos são: o de prefeito de polícia e o de almotacé-mor da cidade. Não só eles são rendosos, pelos vencimentos marcados em lei, como dão direito a propinas e outros achegos.
     O de chefe de polícia rende, na nossa moeda, cerca de vinte contos por ano, só nas taxas cobradas às mulheres públicas; o de almotacé-mor da cidade, esse então não se fala...
     Sendo, assim, lugares em que se pode enriquecer, não faltam doutores da roça que os queiram e empreguem todas as armas para obtê-los.
     Eles mal conhecem a cidade. Se a visitaram ou se mesmo residiram nela, nunca lhes foi possível passar das ruas principais e daquela em que estiveram morando; de forma que lhe ignoram as necessidades, os defeitos a corrigir, a sua história, a sua economia e as queixas de sua população.
     Houve um prefeito de polícia que, vindo diretamente da província das Jazidas para a sua prefeitura em Bosomsy, nada sabia da cidade, nem mesmo as ruas principais. Metódico, econômico, por estar muito preocupado em desagravar as suas propriedades, de hipotecas, nos primeiros meses de sua gestão limitava-se a ir de casa para a prefeitura no seu automóvel oficial, e voltar dela para a sua residência, também no seu automóvel burocrático.
     Certo dia cismou em percorrer, a pé, um dos mais centrais boulevards da cidade. Esta recente via pública cortava muitas outras estreitas da antiga cidade e, em todas as esquinas, ele encontrou os urbanos (guardas civis) nos seus postos. Todos estes modestos policiais da cidade o cumprimentavam respeitosamente e o prefeito ficou muito contente com a sua administração. Chegou, porém, em um dado cruzamento de rua donde, de uma estreitinha, tanto da direita como da esquerda, saíam e entravam magotes de povo. Que rebuliço será esse? pensou ele. Será uma greve? Um motim? Que será?
     O prefeito, assustado, medita logo providências, quando se lembra de pedir ao urbano explicações diretas, sem ir pelos canais competentes:

— Que quer dizer tanto povo aí, nessa rua? perguntou ele esquecido da celestial altura em que estava.
— Não há nada, senhor prefeito. É sempre assim, acudiu o urbano, levando a mão ao boné.
— Como?
— Vossa Excelência não sabe que esta é a rua mais transitada da cidade, e que é a antiga Rua do Desembargador?

     O prefeito não conhecia, senão de ouvido, a rua mais célebre do país, dentre todas as ruas célebres das suas principais cidades.
     Com um almotacé-mor da cidade, deu-se um caso quase semelhante. Este arconte tinha nascido na província dos Bois, e, apesar de viver desde há muitos anos na capital da Bruzundanga, pouco a conhecia. Quando foi provido no seu cargo, quis fazer em horas o que não havia feito em anos. Tomou o automóvel oficial (certamente) e mandou tocá-lo para os arredores de Bosomsy. Admirou-se muito de que não houvesse por eles, matadouros de gado bovino, pois nos da sua pequena, pequeníssima cidade natal, os havia em quantidade. Não viu senão essa falta e deixou de ver as terras abandonadas, incultas, as estradas esburacadas, terras em que um bom almotacé ainda podia, com proveito, animar o plantio de árvores frutíferas, hortaliças, legumes e a criação de pequeno gado, na zona rural.
     Com essa decepção na alma, pois não podia admitir que uma cidade não tivesse nos arredores matadouros, para o fabrico da carne salgada, resolveu certo dia visitar as dependências da sua repartição. Chegou ao arquivo. O arquivista, que era zeloso e conhecia bem a história da cidade, prontificou-se a mostrar-lhe os documentos curiosos da vida passada da linda capital:

— Vossa Excelência vai ver as atas das sessões do Senado da Câmara, que...

     Eram documentos escritos dos mais antigos, não só da história da cidade, como da do país inteiro; mas o almotacé, com grande surpresa de toda a comitiva, exclamou amuado:

— Como? O quê?
— ...as atas do Senado da Câmara, Excelência.
— Qual! Senado é uma cousa e Câmara é outra. Como Senado da Câmara? Que embrulho? Cada um se governa por si... A Constituição...
— Mas...
— Não tem mas, não tem nada. Mande o que é do Senado, para o Senado; e o que é da Câmara, para a Câmara.

     Um grande filósofo afirmou que, para bem se conhecer uma instituição, uma ciência, um país, era necessário saber-lhes a história; e ninguém, penso, pode admitir que se possa administrar bem qualquer cousa sem a conhecer perfeitamente.
     Os administradores de Bosomsy nada conhecem, como já disse, da cidade, cujos destinos vão reger e cuja vida vão superintender. Exemplifico.
     Um prefeito de polícia, como lhes contei, não lhe conhecia a rua principal; e um almotacé-mor, encarregado da administração geral do município, não lhe conhecia a natureza de suas produções nem a sua história, como ficou contado. Ele não sabia que a antiga câmara dos edis chamava-se — Senado da Câmara.
     Como estes muitos outros se repetem na administração da capital.

***

     Via eu todos os dias passar na rua principal de Bosomsy um sujeito cheio de imponência e ademanes fidalgos; perguntei a um amigo:

— Quem é aquele? É algum duque? É marquês?
— Qual! E um tabelião.

***

“O Senhor F. de Tal, redator da Warkad-Gazette, contratou casamento com a Senhorita Hilvia Kamond, filha da viúva Almirante Bartel Kamond”, informava um jornal.

     É caso de perguntar: que diabo de cousa é esta — “viúva almirante”? Por que a noiva não é logo e simplesmente filha do falecido almirante?

***

— Quem é aquele sujeito que ali vai?
— Não lhe sei o nome. Sei, porém, que vive muito bem e é o marido da Klarindhah.

***

— O doutor Sicrano já escreveu alguma cousa?
— Por que perguntas?
— Não dizem que ele vai ser eleito para a Academia de Letras?
— Não é preciso escrever cousa alguma, meu caro; entretanto, quando esteve na Europa, enviou lindas cartas aos amigos e...
— Quem as leu?
— Os amigos, certamente; e, demais, é um médico de grande clínica. Não é bastante?

***

Sobre o Teatro

     TENDO lido na Warkad-Gazette uma notícia elogiosa da estreia da revista “Mel de Pau”, no Teatro Mundhéu, lá fui uma noite. Quando entrei já o espetáculo tinha começado e uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava ao som de uma música roufenha:

Eu hei de saber 
Quem foi aquela 
A dizer ali em frente 
Que eu chupava 
Charuto de canela.

     Por aí os pratos estridulavam, o bombo roncava e a orquestra iniciava alguns compassos de tango, ao som dos quais a dama bamboleava as ancas. As palmas choviam e, quase sempre, a cantora repetia a maravilha, que tanto fazia rir a plateia.
     Na noite seguinte, passando pelo “Harapuka-Palace”, li no cartaz: “Todo o serviço”, revista hilariante, em três atos, etc.
     Entrei. No palco uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava acompanhada de uma música rouca:

Eu hei de saber 
Quem foi aquela 
A dizer ali em frente 
Que eu chupava 
Charuto de canela.

     Acabando os pratos eram feridos, o bombo trovejava, a música inteira iniciava uns compassos de “maxixe” e a dama, com as mãos nos quadris, bamboleava as ancas. Risos, palmas e o portento era repetido.
     Interessei-me por tão variado teatro e foi com agrado que em certa noite, muito próxima destas duas últimas, aceitei um convite para ir ao “Mussuah Theatre”. Lá dei com uma outra dama, em fraldas de camisa, fumando e cantando, sob a direção da batuta do maestro:

Eu hei de saber 
Quem foi aquela 
A dizer ali em frente 
Que eu chupava 
Charuto de canela.

     Risos, palmas, pratos, chocalhos, bombos; a música iniciava alguns compassos, e a dama remexia bem os quadris. Tratava-se da revista “Está pra tudo”.
     Assim, fui a três ou quatro teatros e sempre dei com uma dama a cantar esta cousa tão linda:

Eu hei de saber 
etc., etc., etc.

***

Sobre os Literatos

     QUANTAS cartas tens aí! disse-lhe eu ao vê-lo abrir a carteira para tirar uma nota com que pagasse a despesa.

— São “pistolões”.
— Pra tanta gente?
— Sim; para os críticos dos jornais e das revistas. Não sabes que vou publicar um livro?

***

Sobre os Jornais 

     NOVIDADES telegráficas sensacionais:

“Cocos, 2 — Foi aposentado o Primeiro Escriturário da Intendência F (A. A.), Correio Vespertino, de 3-6-07.”

“Caranguejos, 22 — Os padres maristas comemoraram ontem com grandes festas o centenário da fundação da respectiva ordem (J. C., ed. t., de 22-6-17).”

“Guarabariba, 22 — Foi desligado do quadro da administração dos Correios daqui o praticante de segunda classe Virgílio César, por ter sido removido para os Correios de Santa Catarina.

— Chegaram a esta capital os doutores Ascendino Cunha e Guilherme Silveira (J. C., ed. t., de 22-6-17).”

Os Bruzundangas - Capítulo XXII: Notas Soltas (a)
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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