Elias Canetti
MASSAS DE INVERSÃO
“Bom e caro amigo: os lobos sempre comeram as ovelhas; será que desta vez as ovelhas comerão os lobos?” Tais palavras encontram-se numa carta que madame Jullien escreveu a seu filho durante a Revolução Francesa. Reduzida a uma fórmula sucinta, elas contêm a essência da inversão. Até agora, uns poucos lobos mantiveram-se à custa de muitas ovelhas. Chegou a hora de as muitas ovelhas voltarem-se contra os poucos lobos. É sabido que as ovelhas não comem carne. Mas, precisamente nessa sua aparente falta de sentido, essas palavras são significativas. As revoluções são típicas épocas de inversão. Aqueles que por tanto tempo foram indefesos subitamente adquirem dentes. Seu número tem de compensar o que lhes falta em experiência de maldade.
A inversão pressupõe uma sociedade estratificada. A fronteira que
separa determinadas classes, das quais uma possui mais direitos do que a
outra, precisa ter existido por um certo tempo, precisa ter se feito sentir
longamente na vida cotidiana dos homens, antes que possa surgir a
necessidade de uma inversão. É necessário que o grupo superior tenha
desfrutado do direito de dar ordens ao inferior — quer tenha o
primeiro conquistado o país e se imposto a seus habitantes, quer tenha a
estratificação resultado de processos internos.
Cada ordem deixa fincado naquele que é obrigado a cumpri-la um
doloroso aguilhão. Maiores detalhes sobre a natureza desses aguilhões,
que são indestrutíveis, saber-se-ão mais adiante. Homens aos quais
muitas ordens foram dadas, homens que se apresentam repletos de tais
aguilhões, sentem um poderoso impulso de livrar-se deles. Duas são as
maneiras de conseguir essa libertação. Eles podem repassar para baixo
as ordens que receberam de cima — e, para isso, é necessário que haja uma camada inferior, pronta a acolher tais ordens. Ou podem, também,
pagar na mesma moeda o que tão longamente sofreram e armazenaram
daqueles que lhes são superiores. Um indivíduo sozinho, fraco e
desamparado como é, apenas raramente terá a sorte de dispor de uma
tal oportunidade. Quando, porém, muitos deles reúnem-se numa
massa, é possível que consigam o que, isoladamente, lhes fora negado.
Juntos, podem voltar-se contra aqueles que, até então, lhes davam as
ordens. A situação revolucionária pode ser encarada como a de uma tal
inversão. E a essa massa, cuja descarga consiste principalmente de uma
libertação conjunta dos aguilhões fincados pelas ordens, há que se
denominar massa de inversão.
Considera-se a queda da Bastilha o início da Revolução Francesa.
Esta, porém, tivera já anteriormente o seu início, com um massacre de
lebres. Em maio de 1789, os Estados Gerais haviam se reunido em
Versalhes. Discutiam a supressão dos direitos feudais, dentre os quais
estava também o direito de caça da nobreza. Em 10 de junho, um mês
antes da queda da Bastilha, Camille Desmoulins — que, na qualidade de
deputado, participava das discussões — relatou a seu pai numa carta:
“Os bretões estão pondo provisoriamente em prática alguns dos artigos
de suas reivindicações. Estão matando as pombas e os animais selvagens.
Da mesma forma, cinquenta jovens estão promovendo aqui na
redondeza uma devastação sem igual das lebres e dos coelhos. Diz-se
que, ante os olhos dos guardas, teriam matado de 4 a 5 mil animais na
planície de Saint-Germain”. Antes de aventurar-se contra os lobos, as
ovelhas voltam-se contra as lebres. Antes da inversão, dirigida contra os
próprios superiores, as pessoas se lançam incólumes contra os que lhes
são inferiores: os animais de caça.
O acontecimento propriamente dito dá-se, então, no Dia da Bastilha.
Toda a cidade provê-se de armas. A rebelião tem por alvo a justiça real,
a qual o edifício atacado e tomado de assalto incorpora. Prisioneiros
são libertados, podendo, então, juntar-se à massa. O governador
responsável pela defesa da Bastilha e seus auxiliares são executados.
Ladrões são também pendurados nos postes. A Bastilha é posta no chão:
demolem-na pedra por pedra. Em seus dois aspectos principais —
como pena de morte e como perdão —, a justiça passa às mãos do povo.
Consuma-se aí — para o momento — a inversão.
Massas dessa espécie formam-se nas mais variadas circunstâncias:
sublevações de escravos contra seus senhores, de soldados contra os
oficiais, de pessoas de cor contra brancos que se fixaram em seu meio.
Invariavelmente, os primeiros passaram um longo período sob o
comando dos últimos. Os revoltosos agem sempre motivados por seus
aguilhões, e têm sempre de esperar um longo tempo até que possam
agir.
Contudo, muito do que se observa na superfície das revoluções
desenrola-se entre massas de acossamento. Indivíduos são caçados e,
quando apanhados, mortos por todos em conjunto, seja sob a forma de
um julgamento ou mesmo sem que tenha sido sentenciado. Mas não é
disso, absolutamente, que a revolução consiste. Massas de acossamento,
atingindo rapidamente o seu fim natural, jamais bastam para fazê-la. A
inversão, uma vez começada, segue sempre em frente. Cada um busca
alcançar uma posição na qual possa livrar-se de seus aguilhões, e todos
os têm em profusão. A massa de inversão é um processo que abrange
toda uma sociedade; mesmo que porventura obtenha êxito logo de
início, ainda assim somente lenta e dificultosamente caminha ela para o
seu fim. Da mesma forma como, na superfície, a massa de acossamento
esvai-se com rapidez, a inversão, partindo do nível mais profundo, dá-se
vagarosamente, em muitos saltos sucessivos.
A inversão pode, entretanto, ser ainda muito mais lenta: pode-se
prometê-la para o além. “Os últimos serão os primeiros.” Entre a
situação presente e a futura encontra-se a morte. No outro mundo,
voltar-se-á a viver. Aquele que foi pobre no aqui e não praticou mal
algum, tanto mais valerá ele no além. Seguirá existindo como um ser
novo e mais bem situado. Ao crente, promete-se a libertação de seus
aguilhões. Mas nada se lhe diz acerca das circunstâncias exatas dessa
libertação; e, ainda que mais tarde todos se vejam reunidos no além, não
se aponta propriamente para a massa como o substrato da inversão.
No centro dessa espécie de promessa encontra-se a ideia do
revivescimento. Casos de revivescimento neste mundo, operados por
Cristo, são relatados nos Evangelhos. Os pregadores dos famosos
revivals nos países anglo-saxões empregaram de todas as formas possíveis
o efeito produzido pela morte e pela ressurreição. Ameaçados por eles
com as mais terríveis penas do inferno, os pecadores reunidos
mergulhavam numa atmosfera de medo que mal se pode descrever.
Viam um vasto lago de fogo e enxofre diante dos olhos, e a mão do
todo-poderoso em vias de mergulhá-los no pavoroso abismo. A
veemência de suas invectivas — diz-se de um desses pregadores — tinha
seu efeito ainda mais intensificado pelas medonhas contorções de seu
rosto e pelo trovejar de sua voz. De uma distância de quarenta,
cinquenta, cem milhas, as pessoas afluíam de todas as partes para ouvir
tais pregadores. Os homens traziam suas famílias em carroças cobertas e
proviam-se de roupa de cama e alimento para vários dias. Por volta de
1800, uma parte do estado do Kentucky mergulhou num estado febril
graças a assembleias desse tipo. Estas tinham lugar ao ar livre —
edificação alguma teria, nos estados de outrora, comportado essas
massas gigantescas. Em agosto de 1801, 20 mil pessoas reuniram-se no
encontro de Cane Ridge. Cem anos mais tarde, a lembrança desse
acontecimento ainda não se desvanecera no Kentucky.
Os ouvintes eram aterrorizados pelos pregadores até caírem no chão,
nele jazendo feito mortos. As ameaças eram ordens de deus. Tais ordens
os compeliam à fuga, fazendo com que buscassem a salvação numa
espécie de morte aparente. “Abatê-los” era o propósito deliberado e
declarado do pregador. Tudo se passava como num campo de batalha: à
direita e à esquerda, fileiras inteiras de pessoas caiam no chão. A
comparação com um campo de batalha é de autoria dos próprios
pregadores. Esse susto supremo e derradeiro parecia-lhes
imprescindível para a inversão moral que pretendiam provocar. O êxito
da pregação era medido em função do número de “tombados”. Uma
testemunha que contabilizou com precisão esse número relata que, no
decorrer daquele encontro de vários dias, 3 mil pessoas tombaram
desamparadas no chão — quase um sexto de todos os presentes. Os
caídos eram carregados para uma sala de reuniões ao lado. Em
momento algum as pessoas deitadas recobriram menos da metade do
chão. Um número grande, bastante grande delas permaneceu imóvel ali
por horas, incapaz de falar ou mover-se. Às vezes voltavam a si por uns
poucos instantes e, mediante um profundo gemido, um grito penetrante
ou uma fervorosa prece por misericórdia, demonstravam estar vivas.
Algumas tamborilavam com os calcanhares no chão. Outras,
agonizantes, gritavam e remexiam-se feito peixes içados vivos da água.
Outras, ainda, rolavam horas a fio pelo chão. E havia também aquelas
que, súbita e freneticamente, saltavam por sobre o púlpito e os bancos e
precipitavam-se na floresta gritando: “Perdido! Perdido!”.
Quando os tombados voltavam a si eram outra pessoa. Levantavam-se e exclamavam: “Redenção!”. Haviam “renascido” e podiam agora dar
início a uma vida boa e pura. Haviam deixado para trás sua antiga existência de pecadores. A conversão, porém, só era digna de crédito se
precedida de uma espécie de morte.
Fenômenos de caráter menos extremado, mas produzindo o mesmo
efeito, ocorriam também. Uma assembleia inteira explodiu em choro.
Muitos foram acometidos por convulsões inelutáveis. Alguns,
geralmente grupos de quatro ou cinco, puseram-se a latir feito cães.
Passados alguns anos, tendo a excitação assumido uma forma mais
branda, primeiro pessoas isoladas, depois todo um coro foi assaltado
por uma “risada sagrada”.
Tudo quanto acontecia, porém, acontecia no interior da massa.
Desta, quase não se conhecem formas mais excitadas e tensas.
A inversão aí almejada é diversa daquela das revoluções. Trata-se,
nesse caso, da relação dos homens com os mandamentos divinos. Até o
momento, agiram contrariamente a eles. Agora, temem o castigo. Esse
medo, intensificado de todas as formas pelos pregadores, compele-os a
um estado de inconsciência. Fingem-se de mortos, qual animais em
fuga; mas seu medo é tão grande que perdem a consciência dele.
Quando voltam a si, declaram-se prontos a acatar as ordens e proibições
de deus. Em compensação, abranda-se neles o medo intensificado ao
máximo do castigo imediato. Trata-se, por assim dizer, de um processo
de domesticação: as pessoas deixam-se domesticar pelo pregador,
transformando-se em servos obedientes de deus.
Tal fenômeno é precisamente o oposto daquele que se verifica numa revolução, conforme foi interpretado mais acima. Lá, tratava-se de
libertar-se dos aguilhões que, graças à longa sujeição a uma dominação,
vão pouco a pouco sobrecarregando os homens. Aqui, trata-se de uma
nova sujeição aos mandamentos de deus, de uma pronta disposição,
pois, de acolher de boa vontade todos os aguilhões que tal sujeição
possa gerar. Em comum, ambos os fenômenos têm apenas a consumação de uma inversão e o cenário psíquico no qual esta se
desenrola: tanto em um como no outro caso, a massa.
continua página 93...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
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Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (Massa de Inversão)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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