Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
PRIMEIRA PARTE
11
Na segunda-feira à tarde, Jem e eu subimos cada degrau da casa da sra. Dubose e entramos no saguão, que estava aberto.
Armado com um exemplar de Ivanhoé e cheio de conhecimento, Jem bateu na segunda porta à esquerda.
— Sra. Dubose? — chamou.
A empregada Jessie abriu a porta, destrancou a porta de tela e perguntou:
— É você, Jem Finch? Sua irmã veio junto. Não sei…
— Deixe os dois entrarem, Jessie — disse a sra. Dubose. Jessie obedeceu e foi para a cozinha.
Quando entramos, fomos recebidos por um cheiro opressivo, o mesmo que senti em muitas casas consumidas pela
umidade, onde havia lampiões de querosene, tinas de água e roupa de cama encardida. Esse cheiro sempre me deixava com
medo, ansiosa, vigilante.
No canto do quarto havia uma cama de metal onde estava deitada a sra. Dubose. Fiquei pensando se ela tinha ficado assim
por causa do que Jem tinha feito e, por um momento, tive pena. Ela estava sob uma pilha de colchas e parecia quase simpática.
Ao lado da cama, tinha uma mesinha de mármore com um copo, uma colher de chá, um conta-gotas de ouvido, uma caixa de
algodão e um despertador de aço num tripé.
— Então você trouxe aquela sua irmãzinha mal-educada, não é? — foi o cumprimento dela.
Jem disse baixinho:
— Minha irmã não é mal-educada e não tenho medo da senhora.
Notei que os joelhos dele tremiam. Esperei que ela reclamasse, mas ela disse apenas:
— Pode começar a ler, Jeremy.
Jem sentou-se numa cadeira de bambu e abriu o exemplar de Ivanhoé. Abri outro livro igual e sentei ao lado dele.
— Fiquem mais perto. Ao lado da cama — pediu a sra. Dubose.
Puxamos as nossas cadeiras para a frente. Era o mais perto que eu já tinha chegado dela e tive uma vontade enorme de
afastar a cadeira de novo.
Ela era horrível. A cara parecia uma fronha de travesseiro encardida e os cantos da boca brilhavam de saliva, que escorria
lentamente pelas rugas que iam até o queixo. O rosto era coberto de manchas senis e os olhos sem brilho eram dois pontos
pretos. As mãos eram ossudas e as cutículas quase cobriam as unhas. Ela estava sem a dentadura de baixo, e o lábio superior
projetava-se para a frente. De vez em quando, grudava o lábio inferior na gengiva de cima e o queixo ia junto. Com isso, o
cuspe escorria mais rápido.
Parei de olhar para ela. Jem abriu de novo Ivanhoé e começou a ler. Tentei acompanhar, mas ele lia rápido demais.
Quando chegava numa palavra desconhecida, ele pulava, mas a sra. Dubose percebia e mandava ele soletrar. Jem leu por uns
vinte minutos, tempo em que fiquei reparando na cornija da lareira cheia de cinza e olhando pela janela, qualquer coisa que
não fosse ela. Jem continuou lendo e notei que as correções da sra. Dubose foram diminuindo e ficando mais esparsas até que
Jem deixou uma frase pela metade. Ela não estava ouvindo.
Olhei na direção da cama.
Tinha acontecido alguma coisa com a sra. Dubose. Ela estava deitada com as colchas puxadas até o queixo. Só dava para
ver a cabeça e os ombros. A cabeça se movia lentamente de um lado para o outro. De vez em quando, ela abria bem a boca e a
língua ondulava de leve. Os lábios ficavam cheios de saliva, ela então engolia e abria a boca de novo. A boca parecia ter vida
própria, abria e fechava como um marisco na maré baixa. De vez em quando, a boca fazia puf como um líquido viscoso
fervendo.
Tinha acontecido alguma coisa com a sra. Dubose. Ela estava deitada com as colchas puxadas até o queixo. Só dava para
ver a cabeça e os ombros. A cabeça se movia lentamente de um lado para o outro. De vez em quando, ela abria bem a boca e a
língua ondulava de leve. Os lábios ficavam cheios de saliva, ela então engolia e abria a boca de novo. A boca parecia ter vida
própria, abria e fechava como um marisco na maré baixa. De vez em quando, a boca fazia puf como um líquido viscoso
fervendo.
Ele me olhou, depois olhou para a cama. A cabeça dela se virou na nossa direção e Jem perguntou:
— Sra. Dubose, a senhora está se sentindo bem?
Ela não ouviu.
O despertador tocou e levamos um susto. Um minuto depois, ainda com os nervos estremecidos, Jem e eu estávamos na
calçada, indo para casa. Não fugimos, foi Jessie que, enquanto o despertador ainda estava tocando, entrou no quarto e mandou
que fôssemos embora.
— Shhh, podem ir para casa — ela disse.
Na porta, Jem hesitou.
— Está na hora do remédio dela — disse ele.
Quando a porta se fechou, ouvi Jessie indo rápido até a cama da sra. Dubose.
Eram só 3h45 quando chegamos em casa, por isso jogamos bola no quintal até a hora de encontrar Atticus. Ele tinha levado
dois lápis amarelos para mim e uma revista de futebol para Jem, o que acho que foi uma compensação silenciosa pelo nosso
primeiro dia de leitura com a sra. Dubose. Jem contou como tinha sido.
— Tiveram medo dela? — perguntou Atticus.
— Não, pai. Mas ela é tão desagradável. Tem uns acessos e cospe à beça — disse Jem.
— Ela não consegue controlar. Os doentes às vezes têm uma aparência não muito boa.
— Tive medo dela — eu disse.
Atticus me olhou por cima dos óculos.
— Você sabe que não precisa acompanhar Jem, não sabe?
A tarde seguinte na casa da sra. Dubose foi igual à primeira e à terceira, até que, aos poucos, uma rotina se estabeleceu:
começava tudo igual, isto é, a sra. Dubose perturbava Jem um pouco com seus temas preferidos: as camélias e a inclinação de
nosso pai por pretos. Depois, ela ia ficando calada e distante de nós. O despertador tocava, Jessie nos expulsava do quarto e
tínhamos o resto do dia para nós.
— Atticus, o que exatamente é um admirador de pretos? — perguntei.
Atticus ficou sério.
— Alguém chamou você disso?
— Não, a sra. Dubose disse que você é. Toda tarde ela repete isso. Francis me chamou disso no Natal passado, foi quando
ouvi pela primeira vez.
— Foi por isso que brigou com ele? — perguntou Atticus.
— Foi, pai…
— Então, por que está perguntando o que significa?
Tentei explicar que a briga não foi tanto pelo que Francis disse, mas pela maneira como disse.
— Foi como se me chamasse de melequenta ou algo assim.
— Scout — disse papai —, admirador de preto é uma dessas expressões sem sentido, como melequenta. É difícil explicar:
pessoas ignorantes, sem valor, falam isso quando acham que alguém está pondo os negros acima delas. Passou a ser usada por
gente do nosso meio para rotular alguém de uma forma feia e vulgar.
— Mas você não é admirador de preto, é?
— Sou, sim. Eu me esforço para gostar de todo mundo... De vez em quando, é muito difícil. Querida, não se importe de ser
chamada de algo que as pessoas acham que é um insulto. Isso só mostra como essa pessoa é mesquinha, e não a atinge. Então
não se deixe abalar pela sra. Dubose. Ela já tem problemas demais.
Um mês depois, numa tarde, Jem estava lendo, mergulhado nas aventuras de Sir Walter Scout, como ele o chamava, com a
sra. Dubose corrigindo-o a cada parágrafo, quando bateram à porta.
— Entre! — ela gritou.
Atticus entrou. Foi até a cama e segurou a mão da sra. Dubose.
— Eu vim do escritório e as crianças não foram me encontrar, então achei que ainda estavam aqui.
A sra. Dubose sorriu para ele. Juro por Deus que não conseguia entender como ela tinha coragem de falar com ele, se
parecia odiá-lo tanto.
— Sabe que horas são, Atticus? Exatamente cinco e catorze. O despertador vai tocar às cinco e meia. Quero que saiba
disso.
De repente, notei que a cada dia ficávamos mais tempo com a sra. Dubose, que o despertador tocava alguns minutos mais
tarde todos os dias e que então ela estava bem no meio de um de seus acessos. Naquele dia, ela implicou com Jem por quase
duas horas, sem dar nenhum sinal de que teria um acesso, e me vi num beco sem saída. O despertador anunciava nossa
liberdade; se um dia ele não tocasse, o que faríamos?
— Desconfio que as leituras de Jem estão quase terminando — disse Atticus.
— Acho que só falta mais uma semana… — disse ela.
Jem levantou-se.
— Mas…
Atticus levantou a mão e Jem se calou. No caminho para casa, Jem disse que tinham combinado um mês, o mês tinha
passado e aquilo não era justo.
— Só mais uma semana, filho — pediu Atticus.
— Não — disse Jem.
— Sim — disse Atticus.
Na semana seguinte, voltamos à casa da sra. Dubose. O despertador não tocou, éramos dispensados com um “está bom” tão
tarde que, quando chegávamos em casa, Atticus já estava lendo o jornal. Embora não tivesse mais acessos, ela continuava a
mesma: quando Sir Walter Scott fazia longas descrições de fossos e castelos, a sra. Dubose se entediava e nos provocava:
— Jeremy Finch, eu não disse que você ia se arrepender de ter destruído as minhas camélias? Está arrependido, não está?
Jem respondia que sim, claro.
— Pensou que tinha acabado com a minha camélia neve-da-montanha, não pensou? Pois Jessie disse que ela está
crescendo. Na próxima vez, vai fazer direito, não vai? Vai arrancar pela raiz, não vai?
Jem respondia que sim, claro.
— Fale direito, garoto! Erga a cabeça e diga “sim, senhora”. Com o pai que você tem, não é de estranhar que seja tão
teimoso.
Jem erguia a cabeça e olhava para a sra. Dubose sem ressentimento. Com o passar das semanas, ele tinha cultivado uma
expressão de interesse distante e educado como reação às coisas mais irritantes.
Finalmente, o último dia chegou. A sra. Dubose disse:
— Já chega. Não precisam vir mais. Tenham um bom dia.
Tinha acabado. Corremos pela calçada numa alegria cheia de alívio, aos pulos e gritos.
Aquela foi uma boa primavera, de dias mais longos, com mais tempo para brincarmos. A grande preocupação de Jem era o
desempenho dos jogadores de futebol universitário de todo o país. Toda noite, Atticus lia para nós as páginas de esportes do
jornal. Pelo jeito, o time do Alabama, cujos jogadores tinham nomes impossíveis de pronunciar, ia participar da Rose Bowl
de novo naquele ano. Uma noite, Atticus estava lendo a coluna de Windy Seaton quando o telefone tocou.
Ele atendeu e foi até a chapeleira no saguão.
— Vou até a casa da sra. Dubose um minuto, não demoro.
Mas Atticus ficou lá até bem depois da hora de dormir. Quando voltou, trouxe uma caixa de bombons. Sentou-se na sala e
colocou a caixa no chão, ao lado da cadeira.
— O que ela queria? — perguntou Jem.
Não víamos a sra. Dubose havia mais de um mês. Quando passávamos pela casa, ela nunca estava na varanda.
— Ela morreu, filho. Morreu há alguns minutos — Atticus respondeu.
— Ah, bom.
— Bom mesmo. Parou de sofrer, estava doente fazia tempo. Filho, sabe o que eram aqueles acessos?
Jem negou com a cabeça.
— A sra. Dubose era viciada em morfina — explicou Atticus. — Tomou durante anos para aliviar as dores, por
recomendação médica. Podia ter vivido os últimos anos sem dor e morrer sem sofrer tanto, mas era contra...
— Como assim? — perguntou Jem.
Atticus respondeu:
— Pouco antes da sua travessura, ela me chamou para fazer o testamento — disse Atticus. — O dr. Reynolds tinha avisado
que ela só ia viver mais alguns meses. Estava com todos os negócios em ordem, mas disse “tem uma coisa que está errada”.
— O que era? — perguntou Jem, surpreso.
— Ela disse que queria deixar este mundo sem estar presa a nada nem a ninguém. Jem, quando alguém fica doente daquele
jeito, tem o direito de tomar qualquer remédio para aliviar as dores, mas ela era contra. Queria se livrar da morfina antes de
morrer e foi o que fez.
— Por isso ela tinha aqueles acessos? — perguntou Jem.
— É, era por isso. Duvido que ela ouvisse uma palavra da sua leitura na maior parte do tempo, pois estava concentrada no
despertador. Se você não tivesse sido obrigado a ler, eu teria pedido para você fazer isso de qualquer jeito. Assim, ela deve
ter se distraído um pouco. Havia outro motivo…
— Ela ficou livre da morfina? — perguntou Jem.
— Livre como o vento das montanhas — concordou Atticus. — Lúcida até quase o final. Lúcida — ele sorriu — e
rabugenta. Continuou a desaprovar minha defesa de Tom Robinson e disse que eu ia passar o resto da vida pagando fiança
para tirar você da cadeia. Mandou Jessie fazer essa caixa para você…
Atticus pegou a caixa e entregou-a para Jem.
Jem abriu-a. Dentro, sobre uma camada de algodão, havia uma perfeita camélia branca. Era uma neve-da-montanha.
Os olhos de Jem quase saltaram das órbitas.
— Velha maldita! Velha maldita! — gritou, jogando a caixa no chão. — Por que não me deixa em paz?
Num instante, Atticus levantou-se e ficou ao lado de Jem, que enfiou o rosto na camisa dele.
— Calma — disse Atticus. — Acho que essa é a maneira dela de dizer a você que… está tudo bem agora, Jem, está tudo
bem. Ela foi uma grande dama.
— Dama? — Jem levantou a cabeça. Estava com o rosto vermelho. — Depois de tudo que ela disse sobre você, acha que
ela era uma dama?
— Era. Tinha sua própria opinião sobre as coisas, talvez muito diferente das minhas… Filho, repito que, mesmo que você
não tivesse se descontrolado, eu teria pedido para você ler para ela. Queria que você a conhecesse um pouco, soubesse o que
é a verdadeira coragem, em vez de pensar que coragem é um homem com uma arma na mão. Coragem é fazer uma coisa mesmo
estando derrotado antes de começar — prosseguiu Atticus. — E mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo. Você raramente vai
vencer, mas às vezes vai conseguir. A sra. Dubose venceu, com seus quarenta e cinco quilos. De acordo com o que ela
acreditava, morreu sem estar presa a nada nem a ninguém. Foi a pessoa mais corajosa que já conheci.
Jem pegou a caixa e jogou-a na lareira. Pegou a camélia e, quando fui dormir, vi que ele passava os dedos em suas pétalas
largas. Atticus estava lendo o jornal.
continua página 084...
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Leia também:
O Sol é para todos: 1ª Parte (11b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
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