O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Foi uma noite esplêndida, que o comandante Diego Samaritano condimentou
com relatos suculentos de seus quarenta anos no rio, mas Fermina Daza teve que
fazer um grande esforço para parecer entretida. Apesar de haver soado às oito o
último aviso e de terem feito descer a essa hora os visitantes e recolhido a
passarela, o navio não zarpou até que o comandante acabasse de jantar e subisse ao
posto de comando para dirigir a manobra. Fermina Daza e Florentino Ariza ficaram
debruçados na amurada do salão comum, confundidos com os passageiros ruidosos
que disputavam entre si o jogo de identificar as luzes da cidade, até que o navio saiu
da baía, meteu-se por canais invisíveis e pântanos salpicados de luzes ondulantes de
pescadores, e resfolegou afinal a plenos pulmões no livre ar do rio Grande da
Madalena. Então a banda irrompeu numa peça popular da moda, houve um alarido
de prazer dos passageiros, e a dança começou em tropel.
Fermina Daza preferiu se refugiar no camarote. Não tinha dito uma palavra
durante toda a noite, e Florentino Ariza a deixara perdida em suas cavilações. Só a
interrompeu para se despedir diante do camarote, mas ela não estava com sono, só
um pouco de frio, e sugeriu que se sentassem um pouco para olhar o rio do mirante
privado. Florentino Ariza rodou duas poltronas de vime até a amurada, apagou as
luzes, pôs nos ombros dela uma manta de lã e se sentou ao seu lado. Ela enrolou
um cigarro da caixinha que ele lhe trazia de presente, enrolou-o com uma
habilidade surpreendente, fumou-o devagar com o fogo dentro da boca, sem falar, e
depois enrolou mais dois em seguida e os fumou sem pausas. Florentino Ariza
tomou gole a gole duas garrafas térmicas de café forte.
O resplendor da cidade tinha desaparecido no horizonte. Vistos do mirante
escuro, o rio liso e silente, e as pastagens das duas margens debaixo da lua cheia, se
converteram numa planície fosforescente. De vez em quando se via uma choça de
palha perto das grandes fogueiras que anunciavam que ali se vendia lenha para as
caldeiras dos navios. Florentino Ariza conservava lembranças esbatidas de sua
viagem de juventude, e a visão do rio fazia com que revivessem em rajadas
deslumbrantes, como se fossem de ontem. Contou algumas a Fermina Daza,
achando que podia animá-la, mas ela fumava em outro mundo. Florentino Ariza
renunciou às suas lembranças e deixou-a só com as dela, e enquanto isso enrolava
cigarros e os ia dando já acesos, até que a caixa acabou. A música cessou depois da
meia-noite, o bulício dos passageiros se dispersou e se desfez em sussurros
sonolentos, e os dois corações ficaram sozinhos no mirante em sombras, vivendo ao
compasso do resfolegar do navio.
Depois de um longo tempo, Florentino Ariza olhou Fermina Daza ao fulgor do
rio, viu-a espectral, o perfil de estátua suavizado por um tênue resplendor azul, e
viu que chorava em silêncio. Mas em vez de consolá-la, ou esperar que esgotasse
suas lágrimas, como queria ela, deixou-se invadir pelo pânico.
— Você quer ficar só? — perguntou.
— Se quisesse não diria a você que entrasse — disse ela.
Fermina Daza parou de fumar para não soltar a mão que ele guardava na sua.
Estava perdida na ansiedade de compreender. Não podia conceber marido melhor
que tinha sido o seu, e no entanto encontrava mais tropeços do que complacências
na evocação de sua vida, demasiadas incompreensões recíprocas, brigas inúteis,
rancores mal solucionados. Suspirou de repente: "É incrível como se pode ser tão
feliz durante tantos anos, no meio de tanto bate-boca, tantas chateações, porra, sem
saber de verdade se isso é amor ou não." Quando acabou de desabafar, alguém tinha
apagado a lua. O navio avançava com os passos contados, pondo um pé antes de pôr
o outro: um imenso animal à espreita. Fermina Daza tinha voltado da ansiedade.
— Agora vá — disse.
Florentino Ariza lhe apertou a mão, se inclinou para ela, e procurou beijá-la na
face. Mas ela o afastou com sua voz rouca e suave.
— Ainda não — disse: — estou com cheiro de velha.
Ouviu-o sair na escuridão, ouviu seus passos nas escadas, ouviu-o deixar de ser
até o dia seguinte. Fermina Daza acendeu outro cigarro, e enquanto o fumava viu o
doutor Juvenal Urbino com seu terno de linho imaculado, seu rigor profissional,
sua simpatia deslumbrante, seu amor oficial, fazendo-lhe de outro navio do passado
um aceno de adeus com seu chapéu branco. "Nós homens somos uns pobres criados
dos preconceitos", ele tinha dito certa vez. "Em compensação, quando uma mulher
resolve dormir com um homem não há barreira que não salte, nem fortaleza que
não derrube, nem consideração moral nenhuma que não esteja disposta a varar de
lado a lado: não há Deus que valha." Fermina Daza continuou imóvel até a
madrugada, pensando em Florentino Ariza, não como o sentinela desolado da
pracinha dos Evangelhos cuja lembrança já não lhe suscitava sequer uma luzinha
de saudade, e sim como era agora, decrépito e descadeirado, mas real: o homem que
estivera sempre ao alcance de sua mão, sem que ela o admitisse. Enquanto o navio
a carregava resfolegante rumo ao fulgor das primeiras rosas, só rogava a Deus que
Florentino Ariza soubesse por onde começar outra vez no dia seguinte.
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continua na página 244...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Foi uma noite esplêndida
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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