O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
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continuando...
Levou-o para o quarto e começou a se despir sem falsos pudores com as luzes
acesas. Florentino Ariza se estendeu de costas na cama, procurando recobrar o
domínio, de novo sem saber o que fazer com a pele do tigre que tinha matado. Ela
disse: "Não olhe." Ele perguntou por que sem afastar a vista do teto baixo.
— Porque você não vai gostar — disse ela.
Permaneceram deitados de costas um longo tempo, ele mais e mais aturdido à
medida que o abandonava a embriaguez, e ela tranquila, quase abúlica, mas
rogando a Deus que não a deixasse rir sem razão, como sempre que exagerava um
pouco com o anis. Conversaram para entreter o tempo. Falaram de si mesmos. De
suas vidas diferentes, do acaso inverossímil de estarem nus no camarote escuro de
um navio encalhado, quando o justo era pensar que já não tinham tempo senão
para esperar a morte. Ela jamais ouvira dizer que ele tivesse tido uma mulher, uma
que fosse, numa cidade em que tudo se sabia até mesmo antes de acontecer. Disse
isso de um modo casual, e ele respondeu de pronto sem o mais leve tremor na voz:
— É que me conservei virgem para você.
Ela não teria acreditado nisso de maneira alguma, ainda que fosse verdade,
porque suas cartas de amor estavam cheias de frases como essa que não valiam pelo
seu sentido mas pelo seu poder de deslumbramento. Mas gostou da coragem com
que ele falou. Florentino Ariza, de sua parte, perguntou de repente a si mesmo o
que jamais teria ousado perguntar: que classe de vida oculta tinha tido ela à
margem do casamento. Nada o teria surpreendido, por saber muito bem que as
mulheres são iguais aos homens em suas aventuras secretas: os mesmos
estratagemas, as mesmas inspirações súbitas, as mesmas traições sem remorsos.
Mas fez bem em não lhe perguntar. Numa época em que suas relações com a igreja
já andavam bastante avariadas, o confessor lhe perguntou sem que viesse à baila se
alguma vez tinha sido infiel ao marido, e ela se levantou sem responder, sem
terminar, sem se despedir, e nunca mais voltou a se confessar com esse confessor
nem com nenhum outro. Por outro lado, a prudência de Florentino Ariza teve uma
recompensa inesperada: ela estendeu a mão no escuro, acariciou-lhe o ventre, os
flancos, o púbis quase sem pelos. Disse: "Você tem uma pele de neném." Depois deu
o passo final: buscou-o onde não estava, tornou a buscá-lo sem ilusões, e o
encontrou inerme.
— Está morto — disse ele.
Acontecia amiúde da primeira vez, com todas, desde sempre, de modo que tinha
aprendido a conviver com aquele fantasma: a cada vez tinha que aprender de novo,
como se fosse a primeira. Pegou a mão dela e a colocou no próprio peito: Fermina
Daza sentiu quase à flor da pele o velho coração incansável batendo com a força, a
pressa e a desordem de um adolescente. Ele disse: "Amor demais é tão mau para
isto como falta de amor." Mas disse sem convicção: estava envergonhado, furioso
consigo mesmo, ansiando por um motivo para culpá-la do seu fracasso. Ela sabia, e
começou a provocar o corpo indefeso com carícias de brinquedo, feito uma gata
terna folgando na crueldade, até que ele não aguentou mais o martírio e foi para o
seu camarote. Ela continuou pensando nele até o amanhecer, convencida por fim de
seu amor, e à medida que o anis a abandonava em lentas ondas, ia sendo invadida
pela aflição de que ele se tivesse revoltado e não voltasse nunca mais.
Mas voltou no mesmo dia, à hora insólita de onze da manhã, fresco e restaurado,
e se desnudou na frente dela com uma certa ostentação. Foi um prazer vê-lo a plena
luz tal como o imaginara no escuro: um homem sem idade, de pele escura, lúcida e
tensa como um guarda-chuva aberto, sem pelos além dos muito escassos e
espichados das axilas e do púbis. Estava de guarda alta, e ela percebeu que não
deixava ver a arma por acaso e sim que a exibia como um troféu de guerra para se
dar coragem. Nem lhe deu tempo de tirar a camisola que tinha posto quando
começou a brisa do amanhecer, e sua pressa de principiante provocou nela um
arrepio de compaixão. Que não a afetou, porque em casos como aquele não lhe
parecia fácil distinguir entre a compaixão e o amor. No fim, porém, se sentiu vazia.
Era a primeira vez que fazia amor em mais de vinte anos, e o fizera embargada
pela curiosidade de sentir como podia ser, em sua idade e depois de um recesso tão
prolongado. Mas ele não tinha lhe dado tempo de saber se seu corpo também estava
querendo. Tinha sido rápido e triste, e ela pensou: "Agora está tudo fodido." Mas se
enganou: apesar do desencanto de ambos, apesar do arrependimento dele pela sua
bisonhice e do arrependimento dela pela loucura do anis, não se separaram um
instante nos dias seguintes. Mal saíam do camarote para as refeições. O
comandante Samaritano, que descobria por instinto qualquer mistério que
quisessem manter em seu navio, mandava-lhes a rosa branca todas as manhãs,
armou-lhes uma serenata de valsas do seu tempo, e mandava preparar para eles
comidas de brincadeira com ingredientes alentadores. Não tentaram de novo o
amor até muito depois, quando a inspiração chegou sem que a buscassem. Bastava-lhes a ventura simples de estar juntos.
Não teriam sequer pensado em sair do camarote se o comandante não lhes
comunicasse numa nota que depois do almoço chegariam a Dourada, o porto final,
ao fim de onze dias de viagem. Fermina Daza e Florentino Ariza avistaram do
camarote o promontório de casas iluminadas por um sol pálido, e acreditaram
descobrir a razão do seu nome, mas já acharam a razão menos evidente quando
sentiram o calor que resfolegava como as caldeiras, e viram ferver o asfalto das
ruas. Além disso, o navio não atracou ali e sim na margem oposta, onde ficava a
estação terminal da estrada de ferro de Santa Fé.
Abandonaram o refúgio logo que os passageiros desembarcaram. Fermina Daza
respirou o bom ar da impunidade no salão vazio, e ambos contemplaram da
amurada a multidão alvoroçada que identificava as bagagens nos vagões de um
trem que parecia de brinquedo. Alguém poderia pensar que chegavam da Europa,
sobretudo as mulheres, cujos abrigos nórdicos e chapéus do século anterior eram
um contrassenso na canícula poeirenta. Algumas traziam os cabelos enfeitados com
formosas flores que começavam a fenecer com o calor. Acabavam de chegar da
planície andina depois de um dia de trem através de uma savana de sonho, e ainda
não tinham tido tempo de mudar de roupa para o Caribe.
Em meio à algazarra de feira, um homem muito velho de aspecto inconsolável
tirava pintos dos bolsos do capote de mendigo. Tinha aparecido de repente, abrindo
caminho entre a multidão com um sobretudo em farrapos que pertencera a alguém
muito mais alto e corpulento. Tirou o chapéu, que pôs de abas para cima no cais
caso alguém quisesse arremessar urna moeda, e começou a tirar dos bolsos
punhados de pintinhos frágeis e descoloridos que pareciam proliferar entre seus
dedos. Num momento estava o cais atapetado de pintos inquietos piando por todos
os lados, entre os viajantes apressados que pisavam neles sem saber. Fascinada pelo
espetáculo de maravilha que parecia executado em sua homenagem, pois só ela o
contemplava, Fermina Daza não percebeu em que momento começaram a entrar no
navio os passageiros da viagem de volta. Acabou sua festa: entre os que chegavam
notou logo muitas caras conhecidas, algumas de amigos que fazia pouco a haviam
acompanhado em seu luto, e se apressou em refugiar-se outra vez no camarote.
Florentino Ariza encontrou-a consternada: preferia morrer a ser descoberta pelos
seus numa viagem de prazer, pouco tempo depois da morte do marido. Florentino
Ariza ficou tão afetado pelo seu abatimento que prometeu pensar em algum modo
de protegê-la que não fosse o cárcere do camarote.
continua na página 253...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Levou-o para o quarto
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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