sábado, 9 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Levou-o para o quarto

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Levou-o para o quarto e começou a se despir sem falsos pudores com as luzes acesas. Florentino Ariza se estendeu de costas na cama, procurando recobrar o domínio, de novo sem saber o que fazer com a pele do tigre que tinha matado. Ela disse: "Não olhe." Ele perguntou por que sem afastar a vista do teto baixo. 

— Porque você não vai gostar — disse ela.

     Então ele a olhou, viu-a nua até a cintura, tal como a imaginara. Tinha os ombros enrugados, os seios caídos e as costelas forradas de um pelame pálido e frio como o de uma rã. Ela tapou o peito com a blusa que acabava de tirar, e apagou a luz. Ele então se refez e começou a se despir na escuridão, jogando nela cada peça de roupa que tirava e que ela devolvia morta de rir.
     Permaneceram deitados de costas um longo tempo, ele mais e mais aturdido à medida que o abandonava a embriaguez, e ela tranquila, quase abúlica, mas rogando a Deus que não a deixasse rir sem razão, como sempre que exagerava um pouco com o anis. Conversaram para entreter o tempo. Falaram de si mesmos. De suas vidas diferentes, do acaso inverossímil de estarem nus no camarote escuro de um navio encalhado, quando o justo era pensar que já não tinham tempo senão para esperar a morte. Ela jamais ouvira dizer que ele tivesse tido uma mulher, uma que fosse, numa cidade em que tudo se sabia até mesmo antes de acontecer. Disse isso de um modo casual, e ele respondeu de pronto sem o mais leve tremor na voz:

— É que me conservei virgem para você.

     Ela não teria acreditado nisso de maneira alguma, ainda que fosse verdade, porque suas cartas de amor estavam cheias de frases como essa que não valiam pelo seu sentido mas pelo seu poder de deslumbramento. Mas gostou da coragem com que ele falou. Florentino Ariza, de sua parte, perguntou de repente a si mesmo o que jamais teria ousado perguntar: que classe de vida oculta tinha tido ela à margem do casamento. Nada o teria surpreendido, por saber muito bem que as mulheres são iguais aos homens em suas aventuras secretas: os mesmos estratagemas, as mesmas inspirações súbitas, as mesmas traições sem remorsos. Mas fez bem em não lhe perguntar. Numa época em que suas relações com a igreja já andavam bastante avariadas, o confessor lhe perguntou sem que viesse à baila se alguma vez tinha sido infiel ao marido, e ela se levantou sem responder, sem terminar, sem se despedir, e nunca mais voltou a se confessar com esse confessor nem com nenhum outro. Por outro lado, a prudência de Florentino Ariza teve uma recompensa inesperada: ela estendeu a mão no escuro, acariciou-lhe o ventre, os flancos, o púbis quase sem pelos. Disse: "Você tem uma pele de neném." Depois deu o passo final: buscou-o onde não estava, tornou a buscá-lo sem ilusões, e o encontrou inerme. 

— Está morto — disse ele.

     Acontecia amiúde da primeira vez, com todas, desde sempre, de modo que tinha aprendido a conviver com aquele fantasma: a cada vez tinha que aprender de novo, como se fosse a primeira. Pegou a mão dela e a colocou no próprio peito: Fermina Daza sentiu quase à flor da pele o velho coração incansável batendo com a força, a pressa e a desordem de um adolescente. Ele disse: "Amor demais é tão mau para isto como falta de amor." Mas disse sem convicção: estava envergonhado, furioso consigo mesmo, ansiando por um motivo para culpá-la do seu fracasso. Ela sabia, e começou a provocar o corpo indefeso com carícias de brinquedo, feito uma gata terna folgando na crueldade, até que ele não aguentou mais o martírio e foi para o seu camarote. Ela continuou pensando nele até o amanhecer, convencida por fim de seu amor, e à medida que o anis a abandonava em lentas ondas, ia sendo invadida pela aflição de que ele se tivesse revoltado e não voltasse nunca mais.
     Mas voltou no mesmo dia, à hora insólita de onze da manhã, fresco e restaurado, e se desnudou na frente dela com uma certa ostentação. Foi um prazer vê-lo a plena luz tal como o imaginara no escuro: um homem sem idade, de pele escura, lúcida e tensa como um guarda-chuva aberto, sem pelos além dos muito escassos e espichados das axilas e do púbis. Estava de guarda alta, e ela percebeu que não deixava ver a arma por acaso e sim que a exibia como um troféu de guerra para se dar coragem. Nem lhe deu tempo de tirar a camisola que tinha posto quando começou a brisa do amanhecer, e sua pressa de principiante provocou nela um arrepio de compaixão. Que não a afetou, porque em casos como aquele não lhe parecia fácil distinguir entre a compaixão e o amor. No fim, porém, se sentiu vazia.
     Era a primeira vez que fazia amor em mais de vinte anos, e o fizera embargada pela curiosidade de sentir como podia ser, em sua idade e depois de um recesso tão prolongado. Mas ele não tinha lhe dado tempo de saber se seu corpo também estava querendo. Tinha sido rápido e triste, e ela pensou: "Agora está tudo fodido." Mas se enganou: apesar do desencanto de ambos, apesar do arrependimento dele pela sua bisonhice e do arrependimento dela pela loucura do anis, não se separaram um instante nos dias seguintes. Mal saíam do camarote para as refeições. O comandante Samaritano, que descobria por instinto qualquer mistério que quisessem manter em seu navio, mandava-lhes a rosa branca todas as manhãs, armou-lhes uma serenata de valsas do seu tempo, e mandava preparar para eles comidas de brincadeira com ingredientes alentadores. Não tentaram de novo o amor até muito depois, quando a inspiração chegou sem que a buscassem. Bastava-lhes a ventura simples de estar juntos.
     Não teriam sequer pensado em sair do camarote se o comandante não lhes comunicasse numa nota que depois do almoço chegariam a Dourada, o porto final, ao fim de onze dias de viagem. Fermina Daza e Florentino Ariza avistaram do camarote o promontório de casas iluminadas por um sol pálido, e acreditaram descobrir a razão do seu nome, mas já acharam a razão menos evidente quando sentiram o calor que resfolegava como as caldeiras, e viram ferver o asfalto das ruas. Além disso, o navio não atracou ali e sim na margem oposta, onde ficava a estação terminal da estrada de ferro de Santa Fé.
     Abandonaram o refúgio logo que os passageiros desembarcaram. Fermina Daza respirou o bom ar da impunidade no salão vazio, e ambos contemplaram da amurada a multidão alvoroçada que identificava as bagagens nos vagões de um trem que parecia de brinquedo. Alguém poderia pensar que chegavam da Europa, sobretudo as mulheres, cujos abrigos nórdicos e chapéus do século anterior eram um contrassenso na canícula poeirenta. Algumas traziam os cabelos enfeitados com formosas flores que começavam a fenecer com o calor. Acabavam de chegar da planície andina depois de um dia de trem através de uma savana de sonho, e ainda não tinham tido tempo de mudar de roupa para o Caribe.
     Em meio à algazarra de feira, um homem muito velho de aspecto inconsolável tirava pintos dos bolsos do capote de mendigo. Tinha aparecido de repente, abrindo caminho entre a multidão com um sobretudo em farrapos que pertencera a alguém muito mais alto e corpulento. Tirou o chapéu, que pôs de abas para cima no cais caso alguém quisesse arremessar urna moeda, e começou a tirar dos bolsos punhados de pintinhos frágeis e descoloridos que pareciam proliferar entre seus dedos. Num momento estava o cais atapetado de pintos inquietos piando por todos os lados, entre os viajantes apressados que pisavam neles sem saber. Fascinada pelo espetáculo de maravilha que parecia executado em sua homenagem, pois só ela o contemplava, Fermina Daza não percebeu em que momento começaram a entrar no navio os passageiros da viagem de volta. Acabou sua festa: entre os que chegavam notou logo muitas caras conhecidas, algumas de amigos que fazia pouco a haviam acompanhado em seu luto, e se apressou em refugiar-se outra vez no camarote. Florentino Ariza encontrou-a consternada: preferia morrer a ser descoberta pelos seus numa viagem de prazer, pouco tempo depois da morte do marido. Florentino Ariza ficou tão afetado pelo seu abatimento que prometeu pensar em algum modo de protegê-la que não fosse o cárcere do camarote.

continua na página 253...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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