quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

#tbt sexagenário: Still Loving You

Scorpions

Still Loving You

O #tbt sexagenário que começa hoje traz essa clássica balada dos anos 80, a atemporal "Still Loving You" do Scorpions, com o clipe legendado... eu estava lá.





Time, it needs time
To win back your love again
I will be there
I will be there
Love, only love
Can bring back your love someday
I will be there
I will be there

Fight, babe, I'll fight
To win back your love again
I will be there
I will be there
Love, only love
Can break down the wall someday
I will be there
I will be there

If we'd go again all the way from the start
I would try to change the things that killed our love
Pride has built a wall so strong that I can't get through
Is there really no chance to start once again?
I'm loving you

Try, baby, try
To trust in my love again
I will be there
I will be there
Love, our love
Just shouldn't be thrown away
I will be there
I will be there

If we'd go again all the way from the start
I would try to change the things that killed our love
Yes, I've hurt your pride and I know what you've been through
You should give me a chance
This can't be the end

I'm still loving you
I'm still loving you
I'm still loving you
I need your love
I'm still loving you

Composição: Klaus Meine / Rudolf Schenker

Data do lançamento: 1984!
Artista: Scorpions
Álbum: Love at First Sting
Gêneros: Hard rock, Glam metal


SCORPIONS: A História de uma das maiores Bandas de Hard Rock do Mundo





Vento da Mudança - Wind Of Change




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Still Loving You / 

Curta: Nilo, o presidente negro

Nunca é tarde para sonhar


Baseado na história de Nilo Procópio Peçanha. Com afeto e orgulho, este curta-metragem é um convite para conhecer e se emocionar com a vida do primeiro e único presidente negro do país, uma história real de perseverança, representatividade e esperança, que ilumina o passado e inspira futuras gerações.


Nilo Peçanha




Direção: Diane Lizst
Produtora Executiva: Diane Lizst
Roteiro: Diane Lizst e Isabella Ismile
Gestão de Projeto: Franproduz
Direção de arte: Isabella Ismile
Co-diretor de arte: Pedro Arcelino
Produtor Audiovisual: Pedro Arcelino
Animação: Isabella Ismile
Design de personagens: Diane Lizst e Isabella Ismile
Storyboard: Diane Lizst e Isabella Ismile
Cenários: Isabella Ismile e Rodrigo Tannus
Assistente de animação: Gabriel Matos
Produção Fonográfica: Filipe de Matos Monteiro
Música: Nunca é tarde para sonhar
Composição: Giselle Damásio
Cantor Intérprete: Evando dos Santos
Back-vocal: Diane Lizst e Giselle Damasio
Narração: Diane Lizst
Dublagem: Evando dos Santos
Sonoplastia: Isabella Ismile
Interpretação em Libras: Milena Gomes
Legenda: Isabella Ismile
Edição: Isabella Ismile
Design: Pedro Arcelino

Realização:
Governo Federal
Ministério da Cultura - MINC
Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima
Fundo Municipal de Cultura via Lei Paulo Gustavo

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Nilo, o presidente negro /


Nilo Peçanha: O PRESIDENTE NEGRO que a história quase ESQUECEU



Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Uma Sociedade Sem Classes
     2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite
           O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade. Seria realmente temerário atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários.
     Essa atração da elite é um indício tão importante para a compreensão dos movimentos totalitários (embora não se possa dizer o mesmo dos regimes totalitários) quanto a sua ligação com a ralé. Denota a atmosfera específica, o clima geral que propicia o surgimento do totalitarismo. É preciso lembrar que a idade dos líderes dos movimentos totalitários e dos seus simpatizantes supera a dos membros das massas que organizam, de modo que, do ponto de vista cronológico, as massas não precisam aguardar, impotentes, que os seus líderes surjam de uma sociedade de classes em declínio, da qual são o produto mais importante. Aqueles que voluntariamente abandonaram a sociedade antes do colapso das classes, juntamente com a ralé — que é o subproduto mais recente do domínio da burguesia —, estão prontos para aclamá-los. Os atuais governantes totalitários e os líderes dos movimentos totalitários têm ainda os traços característicos da ralé, cuja psicologia e filosofia política são bastante conhecidas; o que sucederá quando um autêntico homem da massa assumir o comando ainda não sabemos, embora possamos supor que ele se assemelhe mais a um Himmler, com a sua meticulosa e calculada correção, do que a um Hitler, com o seu fanatismo histérico, e lembrará mais a teimosa obtusidade de um Molotov do que a crueldade sensual e vingativa de um Stálin. 
     A esse respeito, a situação da Europa após a Segunda Guerra Mundial não foi muito diferente daquela que sucedeu à Primeira. Do mesmo modo como, na década de 20, foram formuladas as ideologias do fascismo, bolchevismo e nazismo, e seus respectivos movimentos foram liderados pela chamada geração de vanguarda, por aqueles que haviam sido criados nos tempos de antes da guerra e se recordavam perfeitamente dessa época, o clima político e intelectual do totalitarismo de pós-guerra foi determinado por uma geração que conheceu a época anterior a 1939. Isso se aplica especialmente à França, onde o colapso do sistema de classes ocorreu após a Segunda Guerra, e não após a Primeira. Os movimentos totalitários, exatamente como os homens da ralé e os aventureiros da era imperialista, têm em comum com os seus simpatizantes intelectuais o fato de que uns e outros já estavam fora do sistema de classes e nacionalidades da respeitável sociedade europeia antes que esse sistema entrasse em colapso.
     Quando a falsa respeitabilidade cedeu ao desespero da anarquia, esse colapso pareceu oferecer a primeira grande oportunidade tanto para a elite quanto para a ralé e, obviamente, para os novos líderes das massas. Suas carreiras lembram as dos primeiros líderes da ralé: fracasso na vida profissional e social, perversão e desastre na vida privada. O fato de que as suas vidas, antes do seu ingresso na carreira política, haviam sido um fracasso — ingenuamente apontado em seu detrimento pelos líderes mais respeitáveis dos velhos partidos — era o ponto alto da sua atração para as massas. Parecia demonstrar que, individualmente, eles encarnavam o destino da massa do seu tempo, e que o desejo de tudo sacrificarem pelo movimento, a devoção por aqueles que haviam sofrido alguma catástrofe, a determinação de jamais cederem à tentação da segurança da vida normal e o desprezo pela respeitabilidade eram perfeitamente sinceros e não apenas inspirados por ambições passageiras.
     Por outro lado, a elite do pós-guerra era apenas ligeiramente mais jovem que aquela geração que se deixara usar e abusar pelo imperialismo como jogadores, espiões e aventureiros, cavaleiros de armadura polida e matadores-de-dragões, por amor a carreiras gloriosas longe da respeitabilidade. Compartilhavam com Lawrence da Arábia o anseio de "perderem o seu eu" e sentiam violenta repulsa por todos os padrões existentes e por toda autoridade constituída. Se ainda não tinham esquecido a "idade de ouro da segurança", lembravam melhor ainda o quanto a haviam odiado e como se haviam entusiasmado com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Não foi somente Hitler nem somente os fracassados que agradeceram a Deus, de joelhos, quando, em 1914, a mobilização varreu a Europa.[44] Nem ao menos precisaram censurar-se por terem sido presa fácil da propaganda chauvinista ou das explicações mentirosas a respeito do caráter puramente defensivo da guerra. A elite partiu para a guerra na exultante esperança de que tudo o que conhecia, toda a cultura e textura da vida desmoronaria em "tempestades de aço" (Ernst Jünger). Nas palavras cuidadosamente escolhidas de Thomas Mann, a guerra era "castigo" e "purificação"; "a guerra em si, e não as vitórias, é que inspirava o poeta". Ou, nas palavras de um estudante da época, "o que importa não é o objeto pelo qual se faz o sacrifício, mas a eterna disposição de fazê-lo"; ou ainda, nas palavras de um jovem trabalhador, "não importa que a gente viva ou não alguns anos a mais. A gente quer ter alguma coisa que possa dizer que fez na vida".[45] E, muito antes que um dos simpatizantes intelectuais do nazismo dissesse "quando ouço a palavra cultura, puxo o revólver", os poetas já haviam proclamado a sua repulsa pela "cultura de lixo" e poeticamente invocavam os "bárbaros, citas, negros e indianos para esmagá-la".[46]   
     Tachar simplesmente de acesso de niilismo esta violenta insatisfação com a era que precedeu a guerra e as subsequentes tentativas de restaurá-la (de Nietzsche e Sorel a Pareto, de Rimbaud e T. E. Lawrence a Jünger, Brecht e Malraux, de Bakúnin e Nechayev a Alexander Blok) seria ignorar quão justificada pode ser a repulsa numa sociedade inteiramente impregnada com a atitude ideológica e os padrões morais da burguesia. Contudo, também é verdade que a "geração de vanguarda", em agudo contraste com os pais espirituais que ela mesma havia escolhido, estava completamente absorvida pelo desejo de ver a ruína de todo este mundo de segurança falsa, cultura falsa e vida falsa. Esse desejo era tão forte que o seu impacto e eloquência eram maiores que os de todas as tentativas anteriores de "transformação de valores", como a de Nietzsche, ou de reorganização da vida política, como indica a obra de Sorel, ou de restauração da autenticidade humana, como em Bakúnin, ou de apaixonado amor pela vida, na pureza das aventuras exóticas de Rimbaud. A destruição sem piedade, o caos e a ruína assumiam a dignidade de valores supremos.[47]
     Quão genuínos eram esses sentimentos prova o fato de que muito poucos dessa geração perderam o seu entusiasmo pela guerra ao experimentarem pessoalmente os seus horrores. Os sobreviventes das trincheiras não se tornaram pacifistas. Conservaram carinhosamente aquela experiência que, segundo pensavam, podia separá-los definitivamente do odiado mundo da respeitabilidade. Apegaram-se às lembranças de quatro anos de vida nas trincheiras como se fossem um critério objetivo para a criação de uma «nova elite. Nem cederam à tentação de idealizar esse passado; pelo contrário, os adoradores da guerra eram os primeiros a admitir que, na era da máquina, a guerra certamente não podia gerar virtudes como o cavalheirismo, a coragem, a honra e a hombridade,[48] mas apenas impunha ao homem a experiência da destruição pura e simples, juntamente com a humilhação de serem apenas peças da grande máquina da carnificina.
     Essa geração recordava a guerra como o grande prelúdio do colapso das classes e da sua transformação em massas. A guerra, com a sua arbitrariedade constante e assassina, tornou-se o símbolo da morte, a "grande niveladora"[49] e, portanto, a mãe da nova ordem mundial. A ânsia de igualdade e justiça, o desejo de transcender os estreitos e inexpressivos limites de classes, de abandonar privilégios e preconceitos estúpidos, pareciam encontrar na guerra um modo de fugir às velhas atitudes condescendentes de piedade pelos oprimidos e deserdados. Em épocas de crescente miséria e desamparo individual, é tão difícil resistir à piedade, quando ela se transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria universalidade, que parece matar a dignidade humana mais definitivamente que a própria miséria.
     Nos primeiros anos de sua carreira, quando a restauração do status quo europeu ainda constituía a mais séria ameaça às ambições da ralé,[50] Hitler apelou quase exclusivamente para esses sentimentos da geração de peculiar desprendimento do homem da massa que parecia corresponder ao desejo de anonimato, ao desejo de ser apenas um número e funcionar apenas como uma peça, para que se pudesse apagar a sua falsa identificação com tipos específicos ou funções predeterminadas na sociedade. A guerra havia sido sentida como "aquela "ação coletiva mais poderosa de todas" que obliterava as diferenças individuais, de sorte que até mesmo o sofrimento, que tradicionalmente distinguia os indivíduos com destinos próprios não intercambiáveis, podia agora ser interpretado como "instrumento de progresso histórico".[51] A elite do pós-guerra desejava incorporar-se a qualquer massa, sem distinções nacionais. Um tanto paradoxalmente, a Primeira Guerra Mundial havia quase liquidado os sentimentos nacionais da Europa, onde, entre as duas guerras, era muito mais importante haver pertencido à geração das trincheiras, não importa de que lado, do que ser alemão ou francês.[52] Os nazistas basearam toda a sua propaganda nessa camaradagem indistinta, nessa "comunidade de destino", e conquistaram grande número de organizações de veteranos de guerra em todos os países europeus, demonstrando assim quão inexpressivos se haviam tornado os slogans nacionais, mesmo entre os escalões da chamada ala direita, que os empregavam em virtude da sua conotação de violência e não pelo que continham de especificamente nacional.
     Nenhum dos elementos era muito novo nesse clima intelectual geral do pós-guerra europeu. Bakúnin já havia confessado que "não quero ser eu, quero ser nós",[53] e Nechayev já havia pregado o evangelho do "homem condenado", que não tem "quaisquer interesses pessoais, quaisquer afazeres, sentimentos, ligações, propriedades, nem mesmo um nome que possa chamar de seu".[54] Os instintos anti-humanistas, antiliberais, antiindividualistas e anticulturais da geração de vanguarda, o seu brilhante e espirituoso louvor da violência, do poder da crueldade haviam sido precedidos pelas pomposas e desajeitadas demonstrações "científicas" da elite imperialista de que a lei do universo é a luta de todos contra todos, de que a expansão é uma necessidade psicológica antes de ser mecanismo político, e de que o homem deve conduzir-se de acordo com essas leis universais.[55] O elemento novo nas obras da geração de vanguarda era o seu alto nível literário e a grande profundidade da sua paixão. Os escritores do pós-guerra já não tinham necessidade das demonstrações científicas da genética, e de pouco ou nada lhes serviam as obras completas de Gobineau ou de Houston Stewart Chamberlain, que já pertenciam ao cabedal cultural dos filisteus. Liam não Darwin, mas o marquês de Sade.[56] Se acreditavam em leis universais, certamente não estavam muito ansiosos em segui-las. Para eles, a violência, o poder e a crueldade eram as supremas aptidões do homem que havia perdido definitivamente o seu lugar no universo e era demasiado orgulhoso para desejar uma teoria de força que o trouxesse de volta e o reintegrasse no mundo. Contentava-se em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitável houvesse banido, independentemente de teoria e conteúdo, e promovia a crueldade à categoria de virtude maior porque contradizia a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade.
     Comparados aos ideólogos do século XIX, cujas teorias parecem às vezes compartilhar tanto, os homens dessa geração diferem principalmente por sua maior paixão e autenticidade. A miséria havia-os tocado mais fundo, as perplexidades os inquietavam mais e a hipocrisia os feria mais mortalmente do que a todos os apóstolos da boa vontade e da irmandade humana. E já não podiam fugir para terras exóticas, já não podiam dar-se ao luxo de serem matadores de dragões entre povos estranhos e apaixonantes. Não havia meio de fugir à rotina diária de miséria, humildade, frustração e ressentimentos, embelezada por uma falsa cultura de fala educada; nenhum conformismo aos costumes desses países de faz-de-conta podia salvá-los da crescente náusea que essa combinação inspirava continuamente.
     Essa impossibilidade de fugir pelo mundo afora, esse sentimento de cair repetidamente nas armadilhas da sociedade — tão diferente das circunstâncias que haviam formado o caráter imperialista — acrescentavam à velha paixão do anonimato e da perda de si mesmos uma tensão constante e um desejo de violência. Sem a possibilidade de mudança radical de papel e de caráter, o mergulho voluntário nas forças sobre-humanas da destruição parecia salvá-los da identificação automática com as funções preestabelecidas da sociedade e sua completa banalidade, ao mesmo tempo em que parecia ajudar a destruir o próprio funcionamento. Esses homens sentiam-se atraídos pelo pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, pela curiosa e aparentemente contraditória insistência no primado simultâneo da ação pura e da força irresistível da necessidade. Era uma mistura que correspondia exatamente à experiência de guerra da "geração de vanguarda", à experiência da atividade constante dentro da estrutura da fatalidade inelutável.
     Além disso, o ativismo parecia fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta "quem sou eu?", que ocorre com redobrada persistência em tempos de crise. Se a sociedade insistia em "és o que pareces ser", o ativismo do pós-guerra respondia "és o que fizeste" — por exemplo, o homem que pela primeira vez atravessou o Atlântico num aeroplano (como em Der Flüg der Lind-berghs —, resposta que, após a Segunda Guerra Mundial, foi repetida com uma pequena variação por Sartre: "és a tua vida" (em Huis cios). A pertinência dessas respostas estava menos na sua validez como redefinições da identidade pessoal do que na sua utilidade para eventual fuga da identificação social, da multiplicidade de papéis e funções intercambiáveis que a sociedade havia imposto. A questão era fazer algo, fosse heroico ou criminoso, que nenhuma outra pessoa pudesse prever ou determinar.
     O pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, sua preferência pelo terrorismo em relação a qualquer outra forma de atividade política, atraíram da mesma forma a elite de intelectuais e a ralé, precisamente porque esse terrorismo era tão diferente daquele das antigas sociedades revolucionárias^ Já não era uma questão de política calculada, que via em atos terroristas o único meio de eliminar certas personalidades importantes que se haviam tornado símbolos de opressão. O que era tão atraente é que o terrorismo se havia tornado uma espécie de filosofia através da qual era possível exprimir frustração, ressentimento e ódio cego, uma espécie de expressionismo político que tinha bombas por linguagem, que observava com prazer a publicidade dada a seus feitos estrondosos e que estava absolutamente disposto a pagar com a vida o fato de conseguir impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém. Foi esse mesmo espírito e esse mesmo jogo que levaram Goebbels, muito antes da derrota final da Alemanha nazista, a anunciar, com óbvio deleite, que os nazistas, em caso de derrota, saberiam fechar a porta atrás de si de modo a não serem esquecidos durante séculos.
     Contudo, se existe um critério válido para distinguir a elite da ralé na atmosfera pré-totalitária, é aqui que podemos encontrá-lo: o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história, mesmo ao preço da destruição. A sincera convicção de Goebbels de que "a maior felicidade que um homem pode experimentar hoje" é ser um gênio ou servir a um gênio[57] era típica da ralé, mas não da massa nem da elite simpatizante. Esta última, pelo contrário, levava muito a sério o anonimato, ao ponto de negar seriamente a existência do gênio; todas as teorias da arte dos anos 20 tentaram desesperadamente provar que a excelência resulta da habilidade, do artesanato, da lógica e da realização das potencialidades do material.[58] A ralé, e não a elite, sentia-se fascinada pelo "radiante poder da fama" (Stefan Zweig) e aceitava entusiasticamente a idolatria do gênio que caracterizara o extinto mundo burguês. Nisso, a ralé do século XX seguiu fielmente o padrão dos antigos par-venus, que também haviam descoberto que a sociedade burguesa abria mais facilmente as portas ao fascinante "anormal" — ou seja, ao gênio, ao homossexual ou ao judeu — do que ao simples mérito. O desprezo que a elite nutria pelo gênio e o seu desejo de anonimato ainda revelavam um espírito que nem as massas nem a ralé estavam em posição de compreender, e que, nas palavras de Robespierre, tentava afirmar a grandeza do homem contra a pequenez dos grandes.
     A despeito dessa diferença entre a elite e a ralé, não há dúvida de que a elite se deleitava sempre que o submundo forçava a sociedade respeitável, através do terror, a aceitá-lo em pé de igualdade. Os membros da elite concordavam em pagar o preço, que era a destruição da civilização, pelo prazer de ver como aqueles que dela haviam sido excluídos injustamente, no passado, agora penetravam nela à força. Não se ofendiam* muito com as monstruosas contrafações da história, perpetradas por todos os regimes totalitários e claramente perceptíveis na propaganda totalitária. Estavam convencidos de que a historiografia tradicional era, de qualquer forma, uma fraude, pois havia excluído da memória da humanidade os subprivilegiados e os oprimidos. Aqueles a quem a sua própria época rejeitava eram geralmente esquecidos pela história — e o insulto, aliado ao crime, sempre perturbou todas as consciências sensíveis desde que desapareceu a fé num mundo em que os últimos seriam os primeiros. As injustiças do passado e do presente tornaram-se intoleráveis quando evaporou-se a esperança de que a balança da justiça jamais viesse a endireitar-se. A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em termos de luta de classes fascinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção da sua tese, dada a intenção original de encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam sido excluídos da história.
     A trégua temporária entre a elite e a ralé baseava-se, em grande parte, nesse prazer genuíno com que a primeira assistia à destruição da respeitabilidade pela segunda, o que aconteceu, por exemplo, quando os barões do acopla Alemanha foram forçados a receber socialmente a Hitler, o pintor de paredes e fracassado confesso; ou quando os movimentos totalitários cometeram fraudes grosseiras e vulgares em todos os campos da vida intelectual, reunindo todos os elementos subterrâneos e espúrios da história europeia num conjunto que parecia fazer sentido. Desse ponto de vista, era sem dúvida agradável ver o bolchevismo e o nazismo passarem a repudiar até mesmo aquelas fontes de suas ideologias que já haviam conquistado algum reconhecimento em círculos acadêmicos e outros círculos oficiais. O que inspirava os manejadores da história não \ era o materialismo dialético de Marx, mas a conspiração das trezentas famílias; não o pomposo cientificismo de Gobineau e de Chamberlain, mas os "Protocolos dos sábios do Sião"; não a demonstrável influência da Igreja Católica e o papel do anticlericalismo nos países latinos, mas a literatura clandestina sobre jesuítas e maçons. A finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a história oficial como uma fraude, expor uma esfera de in^ fluências secretas das quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo.
     A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença. entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. O que os fascinava não era a habilidade com que Hitler e Stálin mentiam, mas o fato de que pudessem organizar as massas numa unidade coletiva para dar às suas mentiras uma pompa impressionante. O que era simples fraude do ponto de vista factual e intelectual parecia receber a bênção da própria história quando toda a realidade dinâmica dos movimentos passou a sustentar a mentira, fingindo tirar dela o entusiasmo necessário para a ação.
     É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite, enquanto e onde não houvessem tomado o poder, porque as doutrinas patentemente vulgares, arbitrárias e dogmáticas do totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora^ Essas doutrinas discrepavam tanto dos padrões intelectuais, culturais e morais geralmente aceitos que se podia concluir que somente um defeito básico, inerente do caráter do intelectual, Ia trahison des clercs (Julien Benda), ou um doentio ódio do espírito contra si mesmo, explicava o prazer com que a elite aceitava as "ideias" da ralé. O que os porta-vozes do humanismo e do liberalismo geralmente esquecem, no seu amargo desapontamento e no seu desconhecimento das experiências mais gerais da época, é que, numa atmosfera em que todos os valores e proposições tradicionais se haviam evaporado — e no século XIX as ideologias se haviam refutado umas às outras e esgotado o seu apelo vital —, era de certa forma mais fácil aceitar proposições patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades, exatamente porque não se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos. A vulgaridade, com o seu cínico repúdio dos padrões respeitados e das teorias aceitas, trazia em si um franco reconhecimento do que havia de pior e um desprezo por toda simulação que facilmente passava por bravura e novo estilo de vida. No crescente triunfo das atitudes e convicções da ralé,— que não eram mais que as atitudes e convicções da burguesia despidas de fingimento — aqueles que tradicionalmente odiavam a burguesia e tinham voluntariamente abandonado a sociedade respeitável viam apenas a falta de hipocrisia e de respeitabilidade, não o seu conteúdo.[59]
     Desde que a burguesia afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia todas as questões morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios, mas que realmente desprezava, parecia revolucionário admitir a crueldade, o descaso pelos valores humanos e a amoralidade geral, porque isso pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente parecia repousar. Como era tentador assumir atitudes extremas na meia-luz hipócrita dos duplos padrões de moral, colocar publicamente no rosto a máscara da crueldade quando todos fingiam ser bondosos e ostentar a maldade num mundo que nem sequer era de maldade, mas de mesquinhez! A elite intelectual dos anos 20, que pouto sabia da antiga relação entre a ralé e a burguesia, estava convencida de que o velho jogo de épater le bour-geois podia ser jogado com perfeição, se o primeiro lance fosse chocar a sociedade com a caricatura irônica da sua própria conduta.
     Naquela época, ninguém podia imaginar que a verdadeira vítima dessa ironia seria a elite e não a burguesia. A avant-garde ignorava que estava investindo não contra paredes, mas contra portas abertas; o sucesso unânime desmentiria a sua pretensão de ser uma minoria revolucionária, e demonstraria que ela buscava apenas exprimir um novo espírito de massa, que era o espírito do seu tempo. A este respeito, foi particularmente significativa a acolhida que a Dreigroschenoper de Brecht teve na Alemanha de antes de Hitler. A peça mostrava bandidos como respeitáveis negociantes e respeitáveis negociantes como bandidos. A ironia não atingiu o alvo, pois os respeitáveis negociantes da plateia enxergaram naquilo uma visão profunda das coisas do mundo, e a ralé tomou a peça como a aprovação artística do banditismo. O tema musical da peça, Erst koíhmt das Fressen, dann kommt die Moral [Antes vem a comida, depois vem a moral], recebeu o aplauso delirante de todos, embora de cada um por motivos diferentes. A ralé aplaudiu porque levou a sério a afirmação; a burguesia aplaudiu porque fora lograda durante tanto tempo por sua própria hipocrisia que se cansara do esforço e via profunda sabedoria na expressão da banalidade da sua vida; a elite aplaudia porque desmascarar a hipocrisia era um elevado e maravilhoso divertimento. O efeito da obra foi exatamente o oposto do que Brecht pretendia. A burguesia já não se chocava com coisa alguma; acolhia com prazer a denúncia da sua filosofia, cuja popularidade provava que sempre estivera certa, de sorte que o único resultado político da "revolução" de Brecht foi encorajar todo o mundo a arrancar a máscara incômoda da hipocrisia e.. aceitar abertamente os padrões da ralé.
     Cerca de dez anos mais tarde, na França, o Bagatelles pour un massacre, no qual Céline propunha que se massacrassem todos os judeus, provocou reação igualmente ambígua. André Gide expressou publicamente o seu deleite nas páginas àa\Nouvelle RevueFrançaise, naturalmente não porque quisesse matar os judeus da França, mas porque exultava com a brutal confissão desse desejo e com a fascinante contradição entre a grosseria de Céline e a polidez hipócrita que cercava a questão judaica em todos os círculos respeitáveis. O desejo da elite de desmascarar a hipocrisia era tão irresistível que nem mesmo a perseguição muito real que Hitler promoveu contra os judeus chegou a prejudicar essa exultação — e a perseguição já estava em pleno andamento quando Céline escreveu o livro. A aversão contra o filo semitismo dos liberais tinha muito mais a ver com essa reação do que o ódio aos judeus. ^jalo, notável de que as conhecidas opiniões de Hitler e de Stálin sobre arte, e a perseguição que ambos moveram contra os artistas modernos, nunca eliminaram a atração que os movimentos totalitários exerciam sobre os artistas da avant-garde pode ser explicado por um estado de espírito semelhante — o que demonstra a falta de senso de realidade da elite e o seu pervertido desprendimento, muito afins do mundo fictício em que viviam e da falta de interesses das massas por si mesmas. A grande oportunidade dos movimentos totalitários, e o motivo pelo qual uma aliança temporária entre a elite intelectual e a ralé pôde ocorrer, foi que, de certo modo elementar e indistinto, os seus problemas se tornavam os mesmos e prefiguravam os problemas e a mentalidade das massas.
     O irresistível apelo da falsa pretensão dos movimentos totalitários de haverem abolido a separação entre a vida pública e a vida privada e de haverem restaurado no homem uma totalidade misteriosa e irracional tinha muito a ver com a atração que a elite sentia pela ausência de hipocrisia da ralé e pela ausência de interesse das massas por si mesmas. Desde que Balzac revelou _as vidas privadas de figuras públicas da sociedade francesa e desde que a dramatização de Ibsen dos "pilares da sociedade" conquistou o teatro da Europa, a questão da dupla moralidade tem sido um dos principais tópicos de tragédias e romances. A dupla moralidade praticada pela burguesia tornou-se o principal sinal do esprit de sérieux, sempre pomposo e nunca sincero. Essa divisão entre a vida privada e a vida pública ou social nada tinha a ver com a justa separação entre as esferas pessoal e pública, mas era antes o reflexo psicológico da luta do século XIX entre bourgeois e citoyens, entre os burgueses que usavam e julgavam todas as instituições públicas pela medida dos seus interesses privados e os cidadãos responsáveis que se preocupavam com as coisas públicas do interesse de todos. Nesse particular, a filosofia política dos liberais segundo a qual a mera soma dos interesses individuais constitui o milagre do bem comum, parecia apenas uma racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o bem comum.
     Contra o espírito de classe dos partidos europeus, que sempre confessaram representar certos interesses e contra o "oportunismo" resultante da sua concepção de si mesmos como simples partes de um todo, os movimentos totalitários afirmavam a sua "superioridade" pelo fato de conterem uma Weltan-schauung através da qual tomariam posse do homem como um todo.[60]  Nessa pretensão de totalidade, os líderes da ralé dos movimentos totalitários formulavam a sua ideologia invertendo apenas a própria filosofia política da burguesia. A classe burguesa, tendo aberto caminho para si por meio da pressão social e, frequentemente, através de chantagem econômica contra instituições políticas, sempre acreditara que os órgãos públicos oficiais do poder fossem dirigidos por seus próprios interesses e influxos secretos. Nesse sentido, a filosofia política da burguesia era sempre "totalitária"; supunha sempre que política, economia e sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para os interesses privados. O duplo padrão da burguesia, sua distinção entre a vida pública e a vida pessoal, era uma concessão ao Estado nacional que havia desesperadamente tentado manter separadas as duas esferas.
     O que atraía a elite era o radicalismo em si. As esperançosas previsões de Marx de que o Estado feneceria e surgiria uma sociedade sem classes não eram suficientemente radicais nem messiânicas. Se Berdyaev tem razão quando afirma que "os revolucionários russos (...) sempre foram totalitários", então a atração que a Rússia soviética exerceu sobre os simpatizantes intelectuais do nazismo e do comunismo residia precisamente no fato de que, na Rússia, "a revolução era uma religião e uma filosofia, e não um simples conflito interessado no lado social e político da vida".[61] A verdade é que a transformação das classes em massas e o colapso do prestígio e da autoridade das instituições políticas haviam provocado, nos países da Europa ocidental, condições semelhantes às que existiam na Rússia, de modo que não foi por acaso que os seus revolucionários adquiriram o fanatismo revolucionário tipicamente russo que não esperava mudar as condições sociais ou políticas, mas destruir completamente todos os credos, valores e instituições existentes. A ralé apenas aproveitou-se desse novo estado de ânimo e provocou uma efêmera aliança entre revolucionários e criminosos, aliança esta que também havia ocorrido em muitas facções revolucionárias da Rússia czarista, mas que sempre estivera ausente do cenário europeu.
     A perturbadora aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações originam-se do fato de que essas duas camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da estrutura do Estado-nação e da estrutura da sociedade de classes. Se uma encontrou a outra com tanta facilidade, embora temporariamente, é porque ambas percebiam que representavam o destino da época, que seriam seguidas por massas sem fim, que mais cedo ou mais tarde a maioria dos povos europeus estaria com elas — prontos a fazerem a sua revolução, segundo pensavam.
     Ambas estavam enganadas, como se viu depois. A ralé — submundo da classe burguesa — esperava que as massas impotentes a ajudassem a galgar o poder, a apoiassem quando tentasse promover os seus interesses privados, e que poderia simplesmente substituir as camadas mais antigas da sociedade burguesa, instilando nela o espírito mais dinâmico do submundo. Mas, uma vez no poder, o totalitarismo logo aprendeu que não eram só as camadas da ralé que tinham espírito de iniciativa e que, de qualquer forma, essa iniciativa só podia ameaçar o domínio total do homem. Por outro lado, a falta de escrúpulos também não era privilégio da ralé e, se necessário, podia ser ensinada em tempo relativamente curto. Para a máquina impiedosa do domínio e do extermínio, as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais, contanto que esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras. Não foi por acaso, portanto, que os poucos protestos contra as atrocidades em massa dos nazistas contra os judeus e os povos da Europa oriental partiram não dos militares nem de qualquer outro setor das massas coordenadas compostas por homens respeitáveis, mas precisamente daqueles primeiros camaradas de Hitler que eram típicos representantes da ralé.[62]
     E  Himmler, de 1936 o homem mais poderoso da Alemanha, não era um daqueles "boêmios armados" (Heiden) cujas características eram penosamente semelhantes às da elite intelectual. Himmler era ."mais normal", isto é, mais filisteu do que qualquer outro dos primeiros líderes do movimento nazista.[63] Não era um boêmio como Goebbels, nem criminoso sexual como Streicher, nem louco como Rosen-berg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro como Gõring. Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total, partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família.
     O isolamento desses filisteus na vida privada e sua sincera devoção a questões de família e de carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado da sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento — crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e de coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: "A única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo".[64]
     Por outro lado, para fazer justiça àqueles elementos da elite que vez por outra se deixavam seduzir pelos movimentos totalitários e que, devido à sua capacidade intelectual, são às vezes acusados de haver inspirado o totalitarismo, é preciso dizer que nada do que esses homens desesperados do século XX fizeram ou deixaram de fazer teve qualquer influência sobre o totalitarismo, embora tivesse muito a ver com as primeiras e bem-sucedidas tentativas dos movimentos de fazerem o mundo exterior levar a sério as suas doutrinas. Sempre que os movimentos totalitários tomavam o poder, todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que o regime passasse a cometer os seus piores crimes. A iniciativa intelectual, espiritual e artística é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé, e ambos são mais perigosos que a simples oposição política. A uniforme perseguição movida contra qualquer forma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa deve-se a algo mais que o seu natural ressentimento contra tudo o que não podem compreender. O domínio total não permite a livre iniciativa em qualquer campo de ação, nem qualquer atividade que não seja inteiramente previsível. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade.[65].

Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite)
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[44] Ver a descrição que Hitler faz de suas reações ao eclodir a Primeira Guerra Mundial (Mein Kampf, livro 1, cap. V).
[45] Ver a coleção de artigos sobre a "crônica interna da Primeira Guerra Mundial" por Hanna Hafkesbrink, Unknown Germany, New Haven, 1948, pp. 43, 45 e 81, respectivamente. Trata-se de trabalho de profundo valor, que nos revela os fatores imponderáveis da atmosfera histórica, e que torna deplorável a ausência de estudos semelhantes para a França, Inglaterra e Itália.
[46Ibid.,pp.20-1.
[47] Tudo começava com uma sensação de completo alheamento em relação à vida normal. Escreveu Rodolf Binding, por exemplo: "Cada vez mais fazemos parte dos mortos, dos alienados — porque a grandeza do que ocorre nos aliena e separa — e não dos banidos, cuja volta é possível" (ibid., p. 160). Uma curiosa reminiscência da pretensão da elite da geração das trincheiras pode ainda ser encontrada no relato de Himmler sobre a "forma de seleção" para a reorganização da SS: "(...) o processo de seleção mais severo é proporcionado pela guerra, pela luta de vida e morte. Nesse processo, o valor do sangue se manifesta pela realização. (...) Mas a guerra é uma circunstância excepcional, e era preciso encontrar uma forma de seleção contínua também em tempos de paz" (op.cit.).
[48] Ver, por exemplo, Ernst Jünger, The storm ofsteel, Londres, 1929.
[49] Hafkesbrink, op. cit., p. 156.
[50] Heiden, op. cit., mostra a consistência com que Hitler preferia a catástrofe nos primeiros dias do movimento, como receava uma possível recuperação da Alemanha. "Uma meia dúzia de vezes [durante o Ruhrputsch], com palavras diferentes, declarou às suas tropas de choque que a Alemanha estava afundando. 'Nossa tarefa é assegurar o sucesso do nosso movimento'" — (p. 167) — sucesso que, naquele instante, dependia do colapso da luta no Ruhr.
[51] Hafkesbrink, op. cit., pp. 156-7.
[52] Esse sentimento já era generalizado durante a guerra, quando Rudolf Binding escte-veu: "Esta guerra não deve ser comparada a uma campanha. Pois, numa campanha, a vontade de um líder, se confronta com a de outro. Mas nesta guerra ambos os adversários jazem por terra, e somente a Guerra impõe a sua vontade" (ibid., p. 67).
[53] Bakúnin, numa carta escrita a 7 de fevereiro de 1870. Ver Max Nomad, Apostles of Revolution, Boston, 1939, p. 180.
[54] O "Catecismo da Revolução" não foi escrito nem pelo próprio Bakúnin nem por seu discípulo Nechayev. Quanto à questão da autoria e tradução do texto completo, ver Nomad, op. cit., pp. 227 ss. De qualquer forma, o "sistema de completo descaso por quaisquer dogmas de simples decência e integridade na atitude [do revolucionário] em relação aos outros seres humanos (...) ficou na história da revolução russa com o nome de 'Nechayevshtchina" (ibid., p. 224).
[55] Ernest Seillière, Mysticisme et domination: essais de critique impérialiste, 1913, é um dos principais teóricos políticos do imperialismo. Ver também Cargill Sprietsma, We imperialists: notes on Ernest Seillières philosophy ofimperialism, Nova York, 1931; G. Monod em La Revue Historique, janeiro de 1912; e Louis Esteve, Une nouvelle psychologie de Vimpérialisme: Ernest Seillière, 1913.
[56] Na França, desde 1930, o marquês de Sade tornou-se um dos autores favoritos da avant-garde literária. Jean Paulhan, em sua introdução a uma nova edição de Les infortunes de Ia vertu, de Sade, Paris, 1946, observa: "Quando vejo hoje tantos escritores tentando conscientemente negar o artifício e o jogo literário em benefício do inexprimível [un événement indicible] (...), ansiosamente buscando o sublime no infame, o grande no subversivo (...), pergunto-me (...) se a nossa literatura moderna, naqueles setores que nos parecem mais vitais — ou, pelo menos, mais agressivos — não se voltou inteiramente para o passado, e se a causa disso não foi precisamente Sade". Ver também Georges Batailte, "Le secret de Sade", em La critique, tomo III, n?s 15-6, 17, 1947.
[57] Goebbels, op. cit., p. 139.
[58] As teorias da arte de Bauhaus eram características nesse particular. Ver também as observações de Bertolt Brecht sobre o teatro em Gesammelte Werke, Londres, 1938.
[59] O seguinte trecho, de autoria de Ròhm, é típico do sentimento de quase toda a geração mais jovem, e não apenas de uma elite: "a hipocrisia e o domínio do fariseu são as mais notáveis características da sociedade de hoje. (...) Nada podia ser mais falso do que a chamada moral da sociedade. Os moços estão perdidos no mundo filisteu da dupla moral burguesa, e já não sabem como distinguir entre a verdade e o erro" (Die Geschichte eines Hochverràters, pp. 267 e 269). A homossexualidade que reinava nesses círculos era também, pelo menos em parte, uma expressão do seu protesto contra a sociedade.
[60] O papel da Weltanschauung na formação do movimento nazista foi acentuado muitas vezes pelo próprio Hitler. É interessante notar que em Mein Kampf ele alega ter compreendido a necessidade de basear um partido numa Weltanschauung em virtude da superioridade dos partidos marxistas (livro II, cap. I: "Weltanschauung e o Partido").
[61] NicolaiBerdyaev, Theorigin of Russian Communism, 1937, pp. 124-5.
[62] Houve, por exemplo, a curiosa intervenção de Welhelm Kube, comissário-geral em Minsk e um dos mais antigos membros do partido, que, em 1941, ou seja, no começo do assassínio em massa, escreveu a seu chefe: "Não há dúvida de que desejo cooperar com a solução da questão judaica, mas aqueles que foram criados em nossa cultura são, afinal de contas, diferentes das hordas bestiais locais. Devemos designar para a tarefa de matá-los os lituanos e letões que são desprezados até mesmo pela população local? Não poderia fazê-lo. Solicito que me sejam dadas instruções claras para tratar do assunto do modo mais humano possível, em benefício do prestígio do nosso Reich e do nosso Partido". Essa carta foi publicada em Hitler 'sprofessors, de Max Weinreich, Nova York, 1946, pp. 153-4. A intervenção de Kube foi prontamente rejeitada, mas uma tentativa quase idêntica de salvar a vida de judeus dinamarqueses, feita por W. Best, plenipotenciário do Reich na Dinamarca e conhecido nazista, foi melhor sucedida. Ver Nazi conspiracy, V, 2.
     Da mesma forma, Alfred Rosenberg, que havia pregado a inferioridade dos povos eslavos, obviamente nunca imaginara que as suas teorias seriam um dia usadas para liquidá-los. Encarregado da administração da Ucrânia, escreveu relatórios indignados sobre as condições que lá prevaleciam no outono de 1942, depois de haver tentado obter a intervenção direta do próprio Hitler. Ver Nazi conspiracy, III, 83 ss., e IV, 62. Há, naturalmente, certas exceções a esta regra. O homem que salvou Paris da destruição foi o general Von Choltitz, que, no entanto, ainda "temia ser destituído do comando por não haver cumprido as ordens", embora soubesse que "a guerra estava perdida havia anos". Parece duvidoso que ele houvesse tido a coragem de resistir às ordens de "transformar Paris num monte de ruínas" sem o enérgico apoio de um velho nazista, Otto Abetz, embaixador alemão na França, segundo o seu próprio testemunho durante o julgamento de Abetz em Paris.
[63] Um inglês, Stephen H. Roberts, The house that Hitler built, Londres, 1939, descreve Himmler como "um homem de fina cortesia e ainda interessado nas coisas simples da vida. Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses. (...) Nenhum homem aparenta menos o cargo que exerce do que esse ditador da polícia alemã, e estou convencido de que ninguém que eu tenha encontrado na Alemanha é mais normal (...)" (pp. 89-90). Isso nos faz lembrar, de modo curioso, a observação da mãe de Stálin que, segundo a propaganda bolchevista, disse dele: "Um filho exemplar. Quisera que todos fossem como ele" (Souvarine, op. cit., p. 656).
[64] Quem fez essa observação foi Robert Ley. Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 178.
[65] A política bolchevista, que, nesse particular, é surpreendentemente coerente, é bem conhecida e dispensa maiores comentários. Picasso, para citar o exemplo mais famoso, não é apreciado na Rússia, embora se tenha tornado comunista. É possível que a súbita mudança de atitude de André Gide, depois que viu a realidade bolchevique na Rússia soviética (Retour de IVRSS) em 1936, tenha definitivamente convencido Stálin da inutilidade dos artistas criativos, mesmo como simpatizantes. A política nazista diferia das medidas bolchevistas apenas no fato de que não matava os seus talentos.
     Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães, comparativamente poucos, que foram além da mera cooperação e ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos. (Weihreich, op. cit., não distingue entre os professores que adotaram o credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime, omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam com a situação, e coloca assim, indiscriminadamente, conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos.)
     Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt, cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal ainda constituem leitura impressionante; já em meados da década de 30, foi substituído pelo tipo nazista de teóricos políticos como Hans Frank, que mais tarde foi governador da Polônia ocupada, Gottfried Neesse, e Reinhard Hoehn. O último a cair em desgraça foi Walter Frank, que havia sido antissemita convicto e membro do partido nazista antes da tomada do poder e que, em 1933, foi diretor do recém-fundado Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands [Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha] com o seu famoso Forschungsabteilung Judenfrage [Seção de Pesquisas para a Questão Judaica], e editor da volumosa (nove tomos!) obra Forschungen zur Judenfrage (1937-44). Em co-meços da década de 40, Frank teve de ceder a sua posição e influência a Alfred Rosenberg, cujo Der Mythos des 20. Jahrhunderts [O mito do século XX] certamente não constitui nenhum exemplo de "erudição". O motivo pelo qual Frank não merecia a confiança dos nazistas era, obviamente, o fato de não ser charlatão. O que nem a elite nem a ralé que "abraçava" o nacional-socialismo com tanto fervor podia compreender era que "não se pode abraçar esta Ordem (...) por acaso. Além e acima do desejo de servir, está a implacável necessidade da seleção, que não reconhece nem circunstâncias atenuantes nem clemência" (Der Weg der SS [O caminho da SS], emitido pela SS Hauptamt-Schulungsamt, sem data, p. 4). Em outras palavras, no tocante à seleção dos que desejavam unir-se a eles, os nazistas tomavam sua própria decisão, independentemente do "acidente" das opiniões. O mesmo parece aplicar-se à seleção de bolchevistas para a polícia secreta. F. Beck e W. Godin contam em Russian purge and the extraction of confessions, 1951, p. 160, que os membros da NKVD eram arregimentados dentre membros do partido que não tinham tido a menor oportunidade de se oferecerem para essa "carreira".

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - Estávamos tranquilos)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 


     em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 

continuando...

     Estávamos tranquilos de tal maneira que uma americana entrou e saiu, desculpando-se por se haver enganado de quarto. 

- Você vai me trazer essa moça - disse eu, depois de ter eu próprio batido a porta com toda a força, o que levou um outro groom a verificar se não havia uma janela aberta. 
- Você se lembra bem: Srta. Albertine Simonet. Aliás, está no envelope. Você só precisa lhe dizer que isto vem de minha parte. Ela virá de muito bom grado - acrescentei para encorajá-lo e não me humilhar demais.
- É claro! - 

     Mas não, ao contrário, não é nada natural que vir de Berneville até aqui. 

- Com grado. É muito incômodo venha de bom grado que venha consigo. - Sim, sim, sim, sim, compreendo! - 

     Você lhe dizendo: “muito bem” - respondia ele, com esse tom preciso e fino que há muito "boa impressão", porque eu sabia que era a qual já deixara de me causar a nitidez aparente, muita estupidez e indeterminação. Mecânico recobria-se. 

- Não ficarei fora por muito tempo – dizia- 
- A que horas terá voltado?  

     O ascensorista que, levando ao extremo a regra ditada por Bélise para evitar reincidência do mesmo compasso, contentava-se sempre com uma só negativa. 

- Posso muito bem ir até lá. Justamente as saídas tinham sido suspensas há pouco porque havia um almoço de vinte talheres. E era a minha vez de sair à tardinha. É justo que eu saia um pouco esta noite. Levo a minha bicicleta. Assim irei depressa. -

     E uma hora depois ele chegava sozinho dizendo: 

- O senhor esperou bastante, o porteiro não vai ficar aborrecido comigo? - Ah, obrigado, o senhor Paul? Não sabe onde estive. Nem o chefe da portaria tem nada a dizer. -

     Mas certa vez em que lhe dissera: 

- É absolutamente necessário, que a traga -, ele me falou sorrindo: 
- O senhor sabe que não a encontrei. Ela não está aí. E não pude permanecer por muito tempo; tinha medo, de ser como o meu colega, que foi enviado do hotel - (pois o ascensorista, que dizia reentrar no caso de uma profissão na qual se entra pela primeira vez: "eu gostaria muito de reentrar para os Correios", em compensação, fosse para adoçar a coisa, se se tratasse dele, fosse para insinuá-la mais adocicada e perfidamente, se se tratasse de outrem, suprimia o reinicial. Não era por maldade que ele sorria, e dizia:

"sei que ele foi enviado sim por timidez.”

     Julgava diminuir a importância de sua falta, levando-a na brincadeira. 
     Da mesma forma, se me havia dito: 

- O senhor sabe que não a encontrei não era porque julgasse que eu de fato já o sabia. Pelo contrário, não duvidava que eu o ignorasse e, principalmente, assustava-se como para evitar a si próprio as angústias que, isso causaria. Assim, dizia "o senhor sabe" pretendia ao pronunciar as frases destinadas a revelar-me aquilo. Jamais nos deveríamos encolerizar contra aqueles que, apanhados em falta por nós, põem-se a troçar. Eles procedem assim não porque zombem, mas por tremerem à ideia de que possamos estar descontentes. Testemunhemos uma grande piedade, demonstremos uma grande ternura por aqueles que riem. Semelhante a um verdadeiro acesso, a perturbação do ascensorista lhe trouxera não apenas um rubor apoplético, mas também uma alteração da linguagem, que subitamente se tornara familiar. Acabou por explicar-me que Albertine não estava em Épreville, que deveria regressar somente às nove horas e que se às vezes, o que significava por acaso, voltasse mais cedo, lhe dariam o meu recado e, em todo caso, ela estaria comigo antes de uma da madrugada.  
     Aliás, ainda não foi naquela noite que principiou a tomar consistência a minha cruel desconfiança. Não, para dizê-lo de imediato e embora o caso haja ocorrido somente algumas semanas depois, ela nasceu de uma observação de Cottard. Naquele dia, Albertine e suas amigas tinham desejado arrastar-me ao cassino de Incarville, e por sorte minha eu não as teria encontrado (pois queria fazer uma visita à Sra. Verdurin que me convidara várias vezes) se não fosse detido exatamente em Incarville por uma pane no trem que ia demorar algum tempo para ser reparada. Andando de um lado para o outro à espera de que terminassem, encontrei-me de súbito frente a frente com o doutor Cottard, que fora a Incarville para dar uma consulta. Hesitei quase em cumprimentá-lo, visto que não respondera a nenhuma de minhas cartas. Mas a amabilidade não se manifesta em todo mundo da mesma forma. Não tendo sido restringido pela educação às mesmas regras fixas de polidez das pessoas da sociedade, Cottard era cheio de boas intenções que se ignoravam, que se negavam, até o dia em que ele tinha ocasião de manifestá-las. Desculpou-se, havia certamente recebido as minhas cartas, havia assinalado a minha presença aos Verdurin, que tinham muita vontade de me ver e a cuja casa me aconselhou que fosse. Queria mesmo levar-me até lá na mesma noite, pois ia pegar de volta o trenzinho local para jantar com eles. Como eu hesitasse e ele ainda dispunha de algum tempo para tomar o trem, pois a pane ia demorar para ser reparada, fi-lo entrar no pequeno cassino, um daqueles que me haviam parecido tão tristes na noite da minha primeira chegada, e agora estava cheio do tumulto das moças que, por falta de cavalheiro, dançavam juntas. Andrée veio ter comigo, deslizando; eu contava partir em breve com Cottard para a casa dos Verdurin, quando recusei definitivamente o seu oferecimento, possuído pelo desejo muito vivo de ficar com Albertine. É que acabava de ouvi-la rir. E esse riso evocava logo as carnações róseas, as perfumadas paredes, contra as quais parecia que acabara de se esfregar e de que o acre sensual e revelador como um aroma de gerânio, parecia transportar consigo algumas partículas quase imponderáveis, irritantes e secretas.
     Uma das moças que eu não conhecia sentou-se ao piano, e Andrée pediu a Albertine que valsasse com ela. Feliz, nesse pequeno cassino, por pensar que ia permanecer com aquelas moças, observei a Cottard como dançavam bem. Mas ele, do ponto de vista especial do médico, e com a educação de quem não levava em conta o fato de eu conhecer aquelas moças, às quais no entanto me vira cumprimentar, respondeu: 

- Sim, mas são bem imprudentes os pais que deixam as filhas adquirirem semelhante hábitos. Certamente eu não permitiria às minhas que viessem até aqui, ao menos são bonitas? Não distingo suas feições. Olhe - acrescenta mostrando-me Albertine e Andrée que valsavam lentamente, apertadas uma contra a outra -, esqueci o meu pince-nez e não enxergo bem, mas com certeza elas estão no auge do gozo. Não se sabe muito bem que é principalmente pelos seios que elas o experimentam. E repare, os seios delas tocam completamente. -

     De fato, o toque não cessara entre os de Andrée e os de Albertine.
     Não sei se elas ouviram ou adivinharam a reflexão, do Cottard, mas desligaram-se levemente uma da outra, sempre continuando a valsar. Nesse momento, Andrée disse uma palavra a Albertine, e esta riu com o mesmo riso penetrante e profundo que eu escutara há pouco. Mas a perturbação que me causou desta vez foi apenas cruel; Albertine dava impressão de mostrar desse modo, de fazer notar a Andrée, algum frêmito voluptuoso e secreto. Aquele riso soava como os primeiros ou os últimos acordes de uma festa desconhecida.
     Saí com Cottard, conversando com ele, distraído, só por instantes pensando na cena que acabava de presenciar. Não é que a conversa de Cottard fosse interessante. Naquele momento até se tornara azeda, pois acabávamos de ver o doutor Du Boulbon, que não nos percebeu. Ele viera passar algum tempo do outro lado da baía de Balbec, onde era muito consultado. Ora, Cottard, embora habitualmente declarasse que não praticava medicina nas férias, havia esperado formar nessa costa uma clientela de escol, a que Du Boulbon se constituía num obstáculo. Por certo o médico de Balbec não podia incomodar a Cottard. Não passava de um médico bastante consciencioso que sabia tudo e a quem não se podia falar no menor prurido sem que ele indicasse logo, numa fórmula complexa, a pomada, loção ou tingimento adequados. Como dizia Marie Gineste em seu bonito linguajar, ele sabia "encantar" as feridas e as chagas. Mas não tinha qualquer ilustração. E de fato já causara um pequeno aborrecimento a Cottard. Este, desde que desejara trocar sua cátedra pela de terapêutica, se fizera especialista em intoxicações, perigosa inovação da medicina que serve para renovar os rótulos dos farmacêuticos, dos quais todo produto é declarado inteiramente atóxico, ao contrário das drogas similares, e até desintoxicante. É a propaganda da moda; mal sobrevive, por baixo, em outras ilegíveis, como um débil vestígio de uma moda precedente, a afirmativa de que o produto foi cuidadosamente antisseptizado. As intoxicações também servem para que o doente se tranquilize, ao saber alegremente que sua paralisia é apenas uma enfermidade tóxica.
     Ora, tendo um grão-duque vindo passar alguns dias em Balbec e estando com um olho extremamente inchado, mandara trazer Cottard, o qual, em troca de algumas cédulas de cem francos (o professor não se incomodava por menos), atribuíra a inflamação a um estado tóxico e prescrevera um regime desintoxicante. Visto que o olho não desinchava, o grão-duque recorreu ao médico ordinário de Balbec, o qual em cinco minutos retirou um grão de poeira. No dia seguinte não havia mais nada. Entretanto, um rival mais perigoso era uma celebridade em doenças nervosas.
     Era um homem rubro, jovial, a um tempo porque o convívio com o descontrole nervoso não o impedia de gozar de muito boa saúde, mas também para tranquilizar seus doentes com o riso grosso de seus bons-dias e de seu até logo, pronto para ajudar com seus braços de atleta a lhes vestir mais tarde a camisa-de-força. Não obstante, quando se conversava com ele em sociedade, fosse de política ou de literatura, ele escutava com uma benevolência atenta, como se indagasse: "De que se trata?", sem se pronunciar de imediato, como se se tratasse de uma consulta. Mas enfim, este, fosse qual fosse o talento que tivesse, era um especialista. Assim, toda a raiva de Cottard recaía sobre Du Boulbon. Aliás, deixei logo o professor amigo dos Verdurin, para recolher me, prometendo ir vê-los.
     Era profundo o mal que me haviam feito suas palavras no tocante a Albertine e Andrée. Mas os piores sofrimentos não foram sentidos por mim de imediato, como ocorre com esses venenos que só agem depois de um certo tempo.
     Albertine não veio na noite em que o ascensorista fora buscá-la, apesar da segurança deste. Por certo, os encantos de uma pessoa são uma causa menos comum de amor que uma frase do tipo desta:

"Não, esta noite não estarei livre."

     Não se dá atenção a essa frase se se está em presença de amigos; estamos alegres toda a noite, não nos preocupamos com determinada imagem; durante esse tempo, ela está mergulhada na mistura necessária; ao regressar, encontra-se o clichê pronto e perfeitamente nítido. Percebe-se que a vida já não é aquela que se teria deixado por uma ninharia na véspera, pois, se continuamos a não temer a morte, não mais temos coragem de pensar na separação. Além disso, não a partir de uma da madrugada (hora que o ascensorista havia fixado), mas das três horas, não mais experimentei como outrora o sofrimento de sentir diminuir as minhas chances de que ela aparecesse. A certeza de que não viria trouxe-me um sossego absoluto, alívio; essa noite era simplesmente uma noite como tantas outras em geral eu não a via, e dessa ideia eu começava. E desde então, destacando-se à esse Nada aceito, tornava-se doce o pensamento de que a veria no dia seguinte ou em outros dias. Às vezes, nessas noites de espera, a angústia agia como a um remédio que se tomou. Falsamente interpretada por aquele que sofre, julga ele estar angustiado por causa daquela que não vem. Em tal caso o amor nasce, como certas doenças nervosas, da explicação incorreta de um mal penoso. Explicação que não é útil retificar, pelo menos no que concerne ao amor, sentimento que é sempre errôneo, seja qual for a sua causa.  
     No dia seguinte, quando Albertine me escreveu dizendo que acabava de voltar a Épreville, e portanto não recebera a tempo o meu recado, e viria, se eu o permitisse, visitar-me à noite por detrás das palavras da carta, como por trás das que me dissera uma vez ao telefone; julgamos sentir a presença de prazeres e de criaturas que ela teria preferido a mim. Mais uma vez fui inteiramente abalado pela dolorosa curiosidade de saber o que poderia ela ter feito, devido ao amor latente que sempre trazemos dentro de nós; durante um momento, cheguei a acreditar que esse amor iria ligar-me a Albertine, porém ele se contentou em fremir dentro de mim; e seus últimos ruídos se extinguiram sem que se pusesse em marcha.
     Eu havia compreendido mal, na minha primeira estada em Balbec, o caráter de Albertine e talvez o mesmo tivesse acontecido com Andrée. Achara ser frivolidade ingênua de sua parte, se todas as nossas súplicas não conseguiam retê-la e fazê-la faltar a um garden-party, a um passeio em lombo de burro, a um piquenique.
     Em minha segunda estada em Balbec; suspeitei que essa frivolidade era apenas aparente, o garden-party um biombo, senão uma invenção. Ocorria, sob formas diversas, o seguinte (entendo a coisa vista por mim, do meu lado do vidro que de modo algum era transparente, e sem que pudesse saber o que havia de verdadeiro do outro lado): Albertine me fazia os mais apaixonados protestos de ternura. Vigiava a hora porque precisava fazer uma visita a uma dama que recebia, ao que parece, todos os dias às cinco da tarde em Infreville. Atormentado por uma suspeita e aliás sentindo-me adoentado, pedia a Albertine, suplicava-lhe que permanecesse comigo. Era impossível (e ela até nem tinha mais que cinco minutos para ficar), pois aquilo aborreceria a tal dama, pouco hospitaleira e suscetível, e, ao que dizia à Albertine, enfadonha. 

- Mas pode-se perfeitamente deixar de fazer uma visita. 
- Não, minha tia me ensinou que é necessário ser polido com todos. 
- Mas eu a tenho visto não ser polida muitas vezes. 
- Não é a mesma coisa, essa dama iria me querer mal e haveria de me intrigar com minha tia. E já não estou assim em tão boas relações com ela. E ela faz questão de que eu visite essa dama ao menos uma vez. 
- Mas já que ela recebe todos os dias. -

     Aí Albertine, apanhada em contradição, modificava o motivo: 

- Claro que recebe todos os dias. Mas hoje marquei um encontro com algumas amigas na casa dela. Assim, a gente se aborrece menos. 
- Então, Albertine, você prefere a dama e suas amigas a mim, já que, para não deixar de fazer uma visita aborrecida, prefere largar-me sozinho, doente e desolado? 
- Pouco me importaria que a visita fosse aborrecida, mas é em atenção à elas. Vou trazê-las de volta no meu carro. Sem isso elas não teriam nenhum meio de transporte. -

     Observei à Albertine que havia trens de Infreville até às dez horas da noite. 

- É verdade, mas você sabe que é possível que nos peçam para ficar para a ceia. Ela é muito hospitaleira. 
- Muito bem, você recusará. 
- Vou aborrecer ainda mais a minha tia. 
- De resto, você pode cear e tomar o trem das dez horas. 
- Fica meio apertado. 
- Então nunca posso ir jantar no centro da cidade e voltar de trem. Mas olhe, Albertine, vamos fazer algo bem simples: sinto que o ar livre me fará bem; e, já que você não pode deixar de visitar essa dama, vou acompanhá-la até Infreville. Não tenha medo, não irei até a Tour Élisabeth (a vivenda da tal dama), não verei nem a dama nem suas amigas. -

     Albertine parecia ter recebido um tremendo golpe. Suas palavras saíam entrecortadas. Disse que os banhos de mar não lhe agradavam. 

- Mas aborrece-lhe que eu a acompanhe? 
- Como é que pode dizer uma coisa dessas? Bem sabe que o meu maior prazer é sair com você. -

     Uma brusca reviravolta se operara. 

- Já que vamos passear juntos - disse ela -, por que não irmos para o outro lado de Balbec, poderíamos jantar juntos. Seria tão bom. No fundo, aquela costa é muito mais bonita. Começo a detestar Infreville e o resto, esses lugarezinhos de cor verde-espinafre. 
- Mas a amiga de sua tia ficará aborrecida se você não for visitá-la. 
- Pois bem, ela se acalmará. 
- Não, não convém aborrecer as pessoas. 
- Mas ela nem sequer perceberá; recebe todos os dias. Tanto faz que eu vá amanhã, depois de amanhã, dentro de oito dias ou em duas semanas. 
- E suas amigas? - Oh, elas já me deixaram na mão em várias ocasiões. Agora é a minha vez. 
- Mas para o lado que você propõe, não há trem depois das nove. 
- Muito bem, que belo negócio! Nove horas é perfeito. E depois, a gente nunca precisa se preocupar com o problema de volta. Sempre haveremos de encontrar uma charrete, uma bicicleta, e, faltando tudo isso, temos nossas pernas. 
- Sempre havemos de encontrar? Como você anda depressa, Albertine! Para os lados de Infreville, onde as pequenas estações de madeira são coladas umas às outras, sim. Mas do lado oposto não é a mesma coisa. 
- Mesmo desse lado. Prometo trazê-lo de volta são e salvo. -

     Eu sentia que, por mim, Albertine renunciava a alguma coisa já combinada que ela não queria me revelar, e que haveria alguém que ficaria infeliz como eu estava. Vendo que o que desejara não era possível, pois queria acompanhá-la, renunciava francamente a isso. Sabia que não era irremediável. Pois, como as mulheres que têm várias coisas na vida, possuía esse ponto de apoio que jamais enfraquece: a dúvida e o ciúme. Por certo ela não procurava excitá-los, pelo contrário. Mas os enamorados tão suspicazes que imediatamente farejam a mentira. De modo que Albertine, não sendo melhor que qualquer outra, sabia por experiência (nem desconfiar que o devia ao ciúme) que sempre estava segura de encontrar as pessoas a quem uma noite deixara esperando. A pessoa desconhecida que ela abandonava por mim sofreria, iria amá-la ainda mais (Albertine não sabia que era por isso), e, para não continuar a sofrer, voaria por si mesma para junto dela, como eu o teria feito. Mas eu não quero causar desgostos, nem me cansar, nem entrar no terrível caminho das investigações, da vigilância multiforme, inumerável. 

- Não, Albertine, não quero estragar o seu prazer, vá para a casa de sua dama de Infreville; ou enfim, para a casa da pessoa de quem ela é o pseudônimo, pouco me importa. O verdadeiro motivo pelo qual não saio com você é que você não deseja, que o passeio que você daria comigo não é o que gostaria de dar; a prova é que você se contradisse mais de cinco vezes sem perceber. -

     Pobre Albertine receou que suas contradições, de que não percebera tivessem sido mais graves, não lembrando exatamente as mentiras que havia pregado: 

- É bem possível que eu tenha caído em contradições. O ar marinho me tira todo o raciocínio. Troquei os nomes o tempo inteiro. -

     O que me provou que ela agora não teria necessidade de muitas doces afirmações para que eu acreditasse no que dizia voltei a sentir a dor de um ferimento ao ouvir esta confissão do que eu só vagamente havia suposto: 

- Pois bem, está combinado, vou embora - disse ela num tom trágico, não sem olhar a hora para ver se não estava atrasada para o outro, agora que eu lhe fornecia o pretexto para não passar a noite comigo. - Você é muito mau. Modifico tudo para passar uma noite boa com você e é você não quer e ainda me acusa de mentirosa. Nunca o tinha visto ser tão cruel. O mar será o meu túmulo. Não o verei nunca mais. (Meu coração bateu à estas palavras, apesar de eu estar certo de que ela voltaria no dia seguinte o que aconteceu.) Vou me afogar, vou lançar-me às águas. - Como Safo! - Mais um insulto; você tem dúvidas não só sobre o que digo, mas também sobre o que faço. 
- Mas, minha pequena, juro que não tinha nenhuma intenção, você sabe que Safo se precipitou no mar. 
- Sim, sim, você não tem nenhuma confiança em mim. -

     Albertine viu que faltavam vinte minutos para as oito na pêndula; receou atrasar-se para o que tinha de fazer e, preferindo a despedida mais breve (da qual, de resto, desculpou-se ao vir visitar-me no dia seguinte; provavelmente nesse dia a outra pessoa não estava livre), fugiu em passos rápidos gritando: 

- Adeus para sempre - com ar desolado. E talvez estivesse mesmo desolada. Pois, sabendo melhor do que eu o que fazia naquele instante, ao mesmo tempo mais severa e mais indulgente consigo própria do que eu era com ela, talvez ainda assim duvidasse de que eu não a quisesse receber mais, em vista da maneira como me havia deixado. Ora, creio que ela fazia mesmo questão de mim, a ponto de a outra pessoa estar mais enciumada que eu próprio.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

MPB: Não Vou Me Adaptar

Arnaldo Antunes e Nando Reis 

(Ao Vivo no Estúdio)





Data de lançamento do álbum Ao Vivo No Estúdio: 2007
Artistas: Nando Reis, Arnaldo Antunes
Álbum: Ao Vivo No Estúdio
Gêneros: MPB, Música regional brasileira



Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia
Eu não encho mais a casa de alegria
Os anos se passaram enquanto eu dormia
E quem eu queria bem me esquecia

Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar
Eu não vou me adaptar, me adaptar
Eu não vou me adaptar, me adaptar

Eu não tenho mais a cara que eu tinha
No espelho essa cara já não é minha
É que quando eu me toquei achei tão estranho
A minha barba estava deste tamanho

Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar
Não vou me adaptar!
Me adaptar!

Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia
Eu não encho mais a casa de alegria
Os anos se passaram enquanto eu dormia
E quem eu queria bem me esquecia

Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar
Não vou me adaptar!
Não vou!

Eu não tenho mais a cara que eu tinha
No espelho essa cara já não é minha
Mas é que quando eu me toquei achei tão estranho
A minha barba estava deste tamanho

Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar
Não vou!
Não vou me adaptar!
Eu não vou me adaptar!
Não vou! Me adaptar!

Composição: Arnaldo Antunes 



Bis... não não não vou me adaptar, mas é verdade: 
Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia... 
e também é verdade: 
Eu não tenho mais a cara que eu tinha


eles - Não Vou Me Adaptar (ao vivo em São Paulo)




- “Não vou me adaptar” é uma das obras-primas de Arnaldo Antunes gravada originalmente no nosso segundo disco, “Televisão” (85). Desde a primeira vez que ouvi a canção identifiquei nela o signo da eternidade, a qualidade que uma música tem de se perpetuar e se renovar a cada interpretação, se adaptar a cada momento diferente na sua enfática defesa da mudança, do não acomodamento. Em 1998 passei a cantá-la no “Volume Dois”, e desde então está sempre presente e em meu repertório. Nessa versão, canto junto de seu autor, meu grande amigo Arnaldo. - Nando Reis
Sei lá / Primavera / Tudo Está no Seu Lugar / Espanhola / Não Vou Me Adaptar / 

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Castelos de Açúcar Sobre o Solo Queimado de Cuba(3)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     15. Castelos de Açúcar Sobre o Solo Queimado de Cuba
          Em 1762, os ingleses se apossaram meteoricamente de Havana. Na época, as pequenas plantações de tabaco e a criação de gado eram as bases da economia rural da ilha; Havana, praça forte militar, evidenciava um considerável desenvolvimento dos artesanatos, contava com uma importante fundição que fabricava canhões e com o primeiro estaleiro da América Latina apto à construção em grande escala de navios mercantes e navios de guerra. Onze meses foram suficientes para que os invasores britânicos introduzissem uma quantidade de escravos que, normalmente, ingressaria no país em cinco anos, e desde então a economia cubana foi modelada pela demanda estrangeira de açúcar: os escravos produziriam a cobiçada mercadoria destinada ao mercado mundial, e sua suculenta mais-valia seria desde então desfrutada pela oligarquia local e pelos interesses imperialistas.
     Moreno Fraginals descreve, com dados eloquentes, o auge violento do açúcar nos anos seguintes à ocupação britânica. O monopólio comercial espanhol se despedaçara; de resto, estavam já desfeitos os freios ao ingresso de escravos. O engenho absorvia tudo, homens e terras. Os operários do estaleiro, da fundição e os inúmeros e pequenos artesãos, cuja contribuição teria sido fundamental para o crescimento industrial, afluíam para os engenhos; os pequenos agricultores que plantavam tabaco nas veigas ou frutas nos pomares, vitimados pelo bestial arrasamento das terras pelos canaviais, integravam-se também à produção do açúcar. A plantação extensiva ia reduzindo a fertilidade dos solos; multiplicavam-se nos campos cubanos as torres dos engenhos, e cada engenho exigia cada vez mais terras. O fogo devorava as plantações de fumo, as matas, e aniquilava as pastagens. Em 1792 o charque, que poucos anos antes era um artigo cubano de exportação, chegava em grande quantidade do estrangeiro, e Cuba continuaria a importá-lo no futuro [1]; esmoreciam o estaleiro e a fundição, caía verticalmente a produção de tabaco; a jornada de trabalho dos escravos do açúcar chegava a vinte horas. Sobre as terras fumegantes consolidava-se o poder da “sacarocracia”. Em fins do século XVIII, a euforia da cotação internacional nas nuvens, a especulação voava: os preços da terra se multiplicaram por vinte em Güines; em Havana, o juro real do dinheiro era oito vezes mais alto do que o legal; em todo o território de Cuba a tarifa dos batismos, dos enterros e das missas subia na proporção da incontrolável carestia de negros e de bois.
     Os cronistas de outros tempos diziam que era possível percorrer Cuba de ponta a ponta à sombra das palmeiras gigantes e das frondosas matas, onde abundavam a caoba e o cedro, o ébano e os dagames. É possível admirar as madeiras preciosas de Cuba nas mesas e nas janelas do Escorial ou nas portas do palácio real de Madri, mas a invasão da cana fez arder em Cuba, com vários incêndios sucessivos, as melhores matas virgens entre as quantas que antes cobriam seu solo. Nos mesmos anos em que assolava sua própria floresta, Cuba se tornava o principal país comprador de madeira dos Estados Unidos. A cultura extensiva da cana, cultura de rapina, implicou não só a morte das matas, mas também, a longo prazo, “a morte da fabulosa fertilidade da ilha” [2]. O mato era entregue às chamas, e a erosão logo mordia os solos indefesos; milhares de riachos secaram. Atualmente, o rendimento por hectare nas plantações açucareiras de Cuba é três vezes inferior ao do Peru, e quatro vezes e meia inferior ao do Havaí [3]. A irrigação e a fertilização da terra são tarefas prioritárias da Revolução Cubana. Multiplicam-se as represas, grandes e pequenas, enquanto se canalizam os campos e se espalham os adubos sobre as castigadas terras.
     A “sacarocracia” deu um polimento em sua enganosa fortuna enquanto sacramentava a dependência de Cuba, cuja economia adoeceu de diabetes. Entre aqueles que devastaram as terras mais férteis havia personagens de refinada cultura europeia, que sabiam reconhecer um Brueghel autêntico e podiam comprá-lo; de suas frequentes viagens a Paris traziam vasos etruscos e ânforas gregas, gobelinos franceses e biombos Ming, paisagens e retratos dos mais valorizados artistas britânicos. Surpreende-me descobrir, na cozinha de uma mansão de Havana, um gigantesco cofre dotado de combinação secreta, que uma condessa usava para guardar sua baixela. Até 1959 não se construíam fábricas, só castelos de açúcar: o açúcar admitia e demitia ditadores, proporcionava ou negava trabalho aos operários, decidia o ritmo das danças dos milhões e as terríveis crises. A cidade de Trinidad, hoje, é um cadáver resplandecente. Em meados do século XIX havia em Trinidad mais de 40 engenhos, que produziam 700 mil arrobas de açúcar. Os camponeses pobres que cultivavam o tabaco foram deslocados pela violência, e a zona, que antes era também de criação de gado e exportadora de carne, comia carne trazida de fora. Brotaram palácios coloniais, com seus portais de sombra cúmplice, seus aposentos de altos tetos, lustres com chuvas de cristais, tapetes persas, um silêncio de veludo, no ar as ondas do minueto e os espelhos nos salões para refletir a imagem dos cavalheiros de peruca e sapatos de fivela. Agora o que existe ali é o testemunho dos grandes esqueletos de mármore e pedra, a soberba dos campanários mudos, as caleches invadidas pelo pasto. De Trinidad dizem hoje que é “a cidade dos teve”, pois seus sobreviventes brancos sempre evocam algum antepassado que “teve” o poder e a glória. Mas sobreveio a crise de 1857, caíram os preços do açúcar e a cidade caiu com eles para nunca mais levantar-se. [4]
     Um século depois, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra conquistaram o poder, Cuba continuava com seu destino atado à cotação do açúcar. “O povo que confia sua subsistência a um só produto, suicida-se”, profetizara o herói nacional José Martí. Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial de exportação por habitante, superando até a Inglaterra, e teve a maior renda per capita da América Latina. Mas nesse mesmo ano, em dezembro, o preço do açúcar caiu quatro centavos, e em 1921 se desencadeou o furacão da crise: quebraram numerosas centrais açucareiras, que foram adquiridas por interesses norte-americanos, e todos os bancos cubanos e espanhóis, inclusive o próprio Banco Nacional. Sobreviveram apenas as sucursais dos bancos dos Estados Unidos [5]. Uma economia tão dependente e vulnerável como a de Cuba não conseguiria escapar, mais tarde, do impacto feroz da crise de 1929 nos Estados Unidos: o preço do açúcar chegou a baixar para bem menos de um centavo, em 1932, e em três anos as exportações, em valor, reduziram-se à quarta parte. O índice do desemprego em Cuba, nesses anos, “dificilmente terá sido igualado em qualquer país” [6]. O desastre de 1921 foi provocado pela queda do preço do açúcar no mercado dos Estados Unidos, e dos Estados Unidos não tardou a chegar um crédito de cinco milhões de dólares: na garupa do crédito, chegou também o general Crowder; sob o pretexto de controlar a utilização dos fundos, Crowder passou a governar de fato o país. Graças aos seus bons ofícios, a ditadura de Machado chegou ao poder em 1921, mas a grande depressão dos anos 30, com o país paralisado por uma greve geral, derrubou esse regime de sangue e fogo.
     Aquilo que ocorria com os preços se repetia com o volume das exportações. Desde 1948, Cuba recuperou sua quota para suprir a terça parte do mercado norte-americano do açúcar, a preços mais baixos do que os recebidos pelos produtores dos Estados Unidos, mas mais altos e mais estáveis do que os preços do mercado internacional. Anteriormente, já os Estados Unidos deixara de taxar as importações de açúcar cubano, em troca de privilégios similares concedidos ao ingresso de artigos norte americanos em Cuba. Todos esses favores consolidaram a dependência. “O povo que compra manda, o povo que vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer morrer vende para um só povo, e o que quer salvar-se vende para mais de um”, disse Martí, e repetiu Che Guevara na conferência da OEA em Punta del Este, em 1961. A produção era arbitrariamente limitada pelas necessidades de Washington. O nível de 1925, uns cinco milhões de toneladas, continuava sendo a média nos anos 50: o ditador Fulgêncio Batista assaltou o poder, em 1952 – na garupa da maior safra até então conhecida, mais de 7 milhões –, com a missão de restabelecer aquela anormal normalidade, e no ano seguinte, obediente à demanda do norte, a produção caiu para quatro [7].


[1] Já estavam ativas as charqueadas no Rio da Prata. Argentina e Uruguai, que na época não existiam separados e nem se chamavam assim, tinham adaptado suas economias à exportação em grande escala de carne seca e salgada, couros, banha e sebo. Brasil e Cuba, os dois grandes centros escravistas do século XIX, foram excelentes mercados para o charque, um alimento muito barato, de fácil transporte e não menos fácil armazenagem, que não se decompunha no calor do trópico. Os cubanos ainda chamam o charque de “montevidéu”, mas o Uruguai deixou de vendê-lo para Cuba em 1965, somando se ao bloqueio determinado pela OEA. Foi assim que o Uruguai, estupidamente, perdeu o último mercado que lhe restava para esse produto. Tinha sido Cuba, no final do século XVIII, o primeiro mercado que se abriu para a carne uruguaia, embarcada em delgadas mantas secas. BARRÁN, José Pedro & NAHUM, Benjamin. Historia rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo, 1967.
[2] FRAGINALS, op. cit. Até pouco tempo navegavam pelo rio Sagua os palanqueros. “Levam uma comprida vara com ponta de ferro. Com ela vão ferindo o leito do rio, até que cravam num tronco (...). Assim, dia a dia, tiram do fundo do rio os restos das árvores que o açúcar aniquilou. Vivem dos cadáveres das matas.”
[3] FURTADO, Celso. La economía latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución Cubana . Santiago de Chile, 1969; México, 1969.
[4] Moreno Fraginals agudamente observa que os nomes dos engenhos inaugurados no século XIX refletiam os altos e baixos da curva açucareira: Esperanza, Nueva Esperanza, Atrevido, Casualidad, Aspirante, Conquista, Confianza, El Buen Suceso; Apuro, Angustia, Desengaño. Havia quatro engenhos com o nome premonitório de Desengaño.
[5] DUMONT, René. Cuba. Intento de crítica construtiva. Barcelona, 1965.
[6] FURTADO, La economía latinoamericana..., op. cit.
[7] O diretor do programa do açúcar no Ministério da Agricultura dos Estados Unidos declarou, tempos depois da revolução: “Desde que Cuba saiu de cena, não contamos com a proteção desse país, o maior exportador mundial, já que dispunha sempre de reservas para atender nosso mercado, quando necessário”. RUIZ GARCÍA, Enrique. América Latina: anatomía de una revolución. Madrid, 1966.