quarta-feira, 30 de outubro de 2019

tempo é história: Calçacurta: 1A - o cadáver

CalçaCurta

novela


o cadáver 
1A - 4ª ed

baitasar



esse é o seu cadáver...

não acreditava na própria morte, não é? debochava da vulgocracia do governo popular enquanto esquartejava os desafetos, o trabalho sujo ficou para o senhor que aceitou a incumbência sem nenhuma preocupação maior, como alguém que rouba livros da biblioteca

os fins justificavam os meios: acabar com os comunistas já instalados nos edifícios e casas da villa, surrupiavam as crianças, estrepavam as mulheres, degolavam os prisioneiros

se o senhor me permite, acho que estamos confundindo a história da villa com as histórias de comunista contadas ao redor do fogo de chão, histórias para o gado dormir com medo

mas enfim, as suas ações não recaíram sobre o senhor, não é? morreu dormindo dentro do seu pijama

seu velho safado, apostou que não se incomodava com porra de justiça alguma

mas ela chegou...

esse é o despejo do seu corpo, tudo acaba, Nem tudo, Xupa-racha!

eu sei, nem tudo. os canalhas e seus desmandos já devem ter outros canalhas iguais ou piores, prontos para assumirem seu posto de abusos e devassidão em nome da família e dos bons costumes deles

isso é rebuliço que passa do infame para o sem-vergonha e o que aconteceu pode retornar com mais descaso e mais trágico, gente assim não se importa com quem sofre desde que não sejam elas, por isso o senhor manteve essa arrogância e impunidade, quem não quer sujar as mãos compra os seus serviços, é fácil, basta virar a cara e dizer que não acredita, É tudo mentira, Nem tudo, senhor, às vezes, demora para a história e o tempo se encontrarem, mas se encontram

essa sua história não é só de ontem, ou hoje, ela é de amanhã. a repetição das maldades e desmandos não tem fim, é preciso estarmos atentos e fortes mesmo temendo à morte

todos se vão, mas até a crise da perda pode ser um avanço, as histórias de amanhã não estão escritas, isso é uma oportunidade para renovar o guarda-roupa da compaixão, humanidade, benfazer ou sucumbir mais uma vez ao anúncio da modernidade com novas novidades e maldades

os únicos e as únicas que não voltam são os desaparecidos, mas as suas memórias não desaparecem, essas feridas da história são as sangrias do passado, a carne morta nas suas mãos, sob às suas ordens, essa busca não tem descanso para acabar com o sofrimento da impunidade

não pedi, mas fui testemunha de tudo aquilo, o senhor nunca acreditou que seria derrotado, e não foi, apenas se afastou lenta e gradualmente

sabia que o tempo e o vento vai espalhando e varrendo tudo para baixo do tapete do esquecimento, mas acaba-se corroído por dentro como as traças atacam no guarda-roupa

o seu plano para defender o quarto de despejos foi queimar o guarda-roupa com tudo dentro e jogar no mar

mas não se enterra ou afoga a memória da história: sou um abismo que não afunda, flutuo acordada, explicando as realidades que se vive fora da prisão nas escolas das crianças e academias dos doutores

o tempo de outro canalha vai surgir, mas o seu acabou

queria morrer dormindo, vestindo o seu pijama

e conseguiu, torturou quem quis, mandou matar quem quis matar e morreu de pijama na sua cama, como dizem alguns, A justiça de Deus tarda, mas não falha, no seu caso, ela chegou bem tarde, mas pelo menos chegou, já que a justiça dos homens e mulheres nunca se interessou pelo seu caso

a mesma sorte – ou destino? ou proteção? ou interesse... – não tiveram os seus prisioneiros e prisioneiras desconhecidas e invisíveis, morreram como passageiros nas suas prisões, o senhor lambuzou a memória daqueles que morreram lutando, frente à frente, no campo das batalhas, nunca foi o primeiro homem no campo das lutas e jamais o último que saiu, mas o primeiro no início de cada choque, apertão, tapa, Lembra da sua ordem favorita?, Não, Faça uma forcinha para lembrar, Não lembro, Tira a roupa!

Xupa-racha! Apresente-se!

Sim, Senhor!

as suas últimas ordens

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...

eu sei, ainda não acredita, mas acredite, não sou eu neste ataúde

Estamos aqui para implorarmos que a Tua bondade recaia sobre todos nós...

essa é a sua carcaça cheia de medalhas e condecorações vazias. não tem mais jeito, as mentiras não vão lhe trazer de volta

E na alma desse homem de coração justo. Acolhe, Senhor...

parece que nem luto oficial o senhor ganha, essas coisas de bandeira a meio mastro, um minuto de silêncio

li nos jornais – no assoalho das páginas – pequenas notas do seu passamento, essa gente lembra bem do senhor, mas não querem carregar o fardo da sua memória e da covardia deles, preferem lhe ter no buraco da história, abaixo do tapete do esquecimento

Permite, como a Virgem Maria, abençoada Mãe do Menino Deus...

sou a última voz que escuta enquanto esfria e desmancha a força desta cobertura de ódio e imbecilidade, carne condecorada com as cicatrizes esquecidas dos desaparecidos

isso mesmo, esse seu entusiasmo pela ignomínia da tortura me desarranja como a cera das velas – que, por certo, algum devoto ou distraído das próprias culpas irá lhe acender –, azar o meu que odeio velas

tenho asma

por que a surpresa? a história é uma sucessão permanente de crises

Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...

eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo e passar para o outro lado, já o senhor não pode mais renunciar, morreu

a vida desobrigou-se do dominador, mas o que o senhor sabe da vida além de querer obrigar o seu jeito de pensar, querer e fazer, para tudo e todos? relaxa, a vida não tem sentido, é preciso ir vivendo com entusiasmo e alegria enquanto se apaga no tempo, chega de querer matar

e no fim, veja no que deu, no seu caso, já sabemos no que deu, né? muita porrada e desaparecidos nos porões, foram lhe deixar solto para fazer todo o mal possível do jeito que bem entendesse, perderam o controle

acredito que desta vida só levamos as lágrimas da saudade pela nossa ausência

no seu caso, o senhor vai carregar o pesar dos bêbados que ficaram órfãos apoiados no balcão e a consternação das putas

essas não mentem, já sabemos quanto nos custará o serviço de acolhimento. não aceitam violência, mas negociam algumas extravagâncias, aceitam relutantes seus carinhos e beijinhos, mas tudo muito rápido, tudo tem um preço para entrar e sair – não perdem tempo, afinal, tempo é dinheiro –, mas antes de abrir a porta de fuga é preciso agarrar o preço acomodado na cômoda, a bem da verdade, é nessa hora que o senhor dorme com um pequeno sorriso nos lábios

não é necessário dar adeusinho nem fazer biquinho na despedida, basta um simples obrigado e virar para o lado

hoje, quem sabe, venham derramar uma ou duas lágrimas no peito do defunto parceiro que encostava no balcão e ordenava, aos gritos, Essa rodada é por minha conta! Pode servir, Xupa-racha!

o puteiro inteiro levantava e saudava o senhor, lembra?

eu sei que lembra, essa umidade nas vistas lhe denunciaram, nunca lhe vi chorar, nem naquela vez que a rapariga comunistinha levou tanto choque nos biquinhos dos peitos que cuspiu a criança longe, lembra? nenhum nervosismo ou pressa

mas sempre tem uma primeira vez para tudo

A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...

os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar, ninguém virá chorar. afirmam que com um pouco de sorte, talvez, veja bem, talvez lhe reste o silêncio dos desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho

adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades, nada o impedia de descansar as próprias mãos nos destroços

Toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...

não é um ótimo dia, mas é um bom dia. afinal, tem dia para tudo... até para morrer

Vão em Paz e que o Senhor vos acompanhe.


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domingo, 27 de outubro de 2019

O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 69 – Mais Dejanira... e nova túnica




Este é um dos casos em que a forma é tudo, e inclui a própria substância. Aproveitando em tal excesso a manifestação dos militares, os republicanos viciaram a sua obra, essa propaganda que vinha de decênios, e transformaram a intervenção do Exército, de legítimo apoio à revolução republicana, em absorção dela com o motivo de zelos, que, evidentemente, eram excessivos. Não se condena o 7 de Abril porque a tropa, toda, lhe garantira o êxito, juntando-se à massa popular em protesto no campo de Sant’Ana, preferindo, nessa atitude, o Brasil já levantado, ao monarca que ultrajava a nação. A agitação de rua vinha de dias; foram para ela os políticos civis, que nunca mais abandonaram o controle da ação. Não há, nisto, nada de semelhança com esse 15 de novembro, em que os oficiais, já em contestação com o poder civil, por motivo de interesses de classe, levantaram-se, e abatem o regime, para resultados que tiveram de ser consagrados como a “República proclamada pelo Exército e a Marinha, em nome da Nação”. De fato, os propagandistas entregaram-se aos oficiais amotinados, que se substituíram à propaganda, para depois se substituírem à nação. Foi, na concretização dos desenvolvimentos, o erro inicial, erro de essência, com o que se desviou, desde logo, a República, para a sequência de faltas, prepotências, deturpações, desastres, crimes, misérias... que tem sido a vida mesma do regime.

Destarte, englobada num levante de quartéis, a proclamada República foi, com aquela marcha de regimentos para o indisputado triunfo, um surdo estalar em que se abafou a mal-alinhavada propaganda. O chefe do Governo vencido deu, na emergência, o ótimo da ação que lhe era própria: foi altivo; acreditou, como sempre, nos seus gestos, repetiu ordens alheias à realidade, falou em patriotismo... sem que isto lhe aproveitasse, para ouvir de Floriano – que os seus galões os ganhara no serviço da pátria, não no de ministros. A réplica mais própria foi a de Deodoro, a restringir os motivos do movimento às queixas que o Exército tinha do mesmo Ouro Preto!... Subtendido que a República estava na conquista do poder pelo Exército, se bem que o nome do movimento fosse proclamação da República, esqueceram-se completamente de dizê-lo de público: por fora da coisa, ao romper do dia, e às três horas da tarde, andava um propagandista consciente da significação daquilo, Aníbal Falcão, a procurar José do Patrocínio, para que a Câmara Municipal, instituição popular, desse o tom civil e popular à revolução. Com isto concordaram muito dignamente os militares, que se tinham esquecido do caso; e assim se fez. E o trono, por onde andava?... E todos que, ao pé dele, se diziam os representantes da nação?... Na facilidade do triunfo, foi tudo deixado de lado, como já inexistente. Alguns dos que não tinham ainda compreendido bem os fatos, chamaram-no, e Pedro II pôde vir, quase só, mas tranquilamente garantido, pela mesma facilidade da vitória republicana. Foi para o paço da cidade, onde, também tranquilos e garantidos, o procuraram alguns dos contumazes resolvedores de crises políticas. Estavam fora do mundo: concederam que o ministério não podia continuar... já estava demitido, e percorreram a lista dos possíveis chefes do Governo... Então, lembraram-se de que era indispensável a aquiescência do chefe militar no movimento, e trataram de encontrá-lo. Ouro Preto, deixado livre... no momento, como todos os outros considerados monarquistas, também foi ao paço: “Ouro Preto, sendo chamado, insistiu para a sua demissão, que obteve com muita dificuldade, retirando-se em seguida para a casa do Barão de Javary, onde foi preso...” tal o consigna a insuspeita imparcialidade do Padre Galante... Partiram os mensageiros do trono à procura de Deodoro, que conforme bem o sabia o mesmo trono, já havia organizado o seu ministério. Voltavam-se para ele, e procuraram-no, como outrora, na noitada de 6 de abril, andara o outro em busca de Vergueiro, para que viesse salvar o primeiro Império. Agora, a salvação possível, e certamente aceita, era a de submeter-se o poder imperial à espada do general revoltado... Ainda assim, não foi possível: Deodoro só foi alcançado à noite, quando, cansado de fazer a República, ia recolher-se. Nem quis receber o recado, que vinha em nome de Saraiva, e mandou: “Diga ao Saraiva que é tarde...” Quando a resposta chegou ao paço já encontrou nos raros fiéis, o inteiro desalento. No ambiente, quase vazio, as fisionomias descoravam com as últimas e vagas esperanças dissipadas. Estava o paço guardado por tropas que apenas exigiam – pedissem licença para entrar. E entravam cada vez menos: quando se fechou o dia 15, não havia mais monarquistas no Brasil. O trono caiu no abandono proporcional à miséria da alma dos dirigentes. Dos milhares que andavam a fazer a política imperial não houve um gesto de defesa, nem sequer uma voz de protesto... Não houve, da parte deles, nem olhares de simpatia para a criatura que só, e dignamente, expiava uma culpa que era deles mesmos. Os que não foram ignóbeis logo, ali, na hora da vitória da revolução, foram insignificantes e incaracterizados. Realmente digno, recatadamente nobre, só se destacou o imperante destronado. Para que não parecesse batalha sem inimigos, o governo provisório consagrou a vitória, e todos os seus riscos, prendendo três adversários, depois demonstrados sem perigo para as instituições. Além destes, deportados, expatriaram-se Muritiba e Nioac, pela insignificante razão de serem fâmulos do paço.

Era, a monarquia, coisa assim abandonada? Não. Enquanto existiu, afora os republicanos que persistiam republicanos, todos os que se julgavam com direito a ser voz na política, diziam-se monarquistas, com todas as veras. E defenderam explicitamente o trono, enquanto isso lhes pareceu útil e sem riscos. Logo que se pronunciou a propaganda republicana (1872), solenemente se proclamou a criação de um guarda suíssa para a defesa das instituições. Defesa armada, como se vê, que eles não compreendem outra. Havia a propaganda republicana, chilra, banal, pobre... em todo caso, uma oposição de princípios aos da monarquia; lógicos e sinceros, os que desta viviam, em defesa dela, deviam contrapor à propaganda republicana, outra propaganda... Nunca o fizeram. Apelaram, bestialmente, para a contradita dos empastelamentos e da bordoada, como os sucessores ainda hoje o fazem. No segundo ano de vida do jornal de propaganda “A República”, atacaram-no, para tais efeitos, que o Sr. P. da Silva teve de consignar o sucesso:


Vários adeptos da nova doutrina (República) fundaram
na capital uma tipografia e publicaram um jornal...
Amedrontou-se o ministério... Resolveu empregar a violência para combater a propaganda: Magotes de pessoas que o público acreditou instigados pela polícia, assaltaram uma noite a tipografia e a sala da redação, rebentaram máquinas... quebraram... destruíram... retiraram-se pacificamente... De todos os cidadãos sensatos partiram acusações contra a polícia. Nos periódicos e nas câmaras ecoaram brados, e soube-se igualmente que o imperador reprovara o ato. Defendeu o ministro da justiça os agentes da polícia... ordenou investigações e inquéritos... que não deram resultado... [31]


[31] Gonzaga Duque, “Revoluções Brasileiras”, pág. 256; P. da Silva, “História do Império”, I, II, pág. 163.


Tudo faz crer que Pedro II tenha condenado a façanha: com toda razão, ele confiava mais no liberalismo dos seus papos de tucano, do que nos arreganhos dos que, na hora decisiva, o abandonariam ignobilmente – ratos a passar em debandada para o novo chaveco... Aderiram todos à República, mesmo os que de modo nenhum se podiam ajustar a ela, qualquer que fosse. Passaram-se, como se passariam para outra coisa os que hoje incorporam a substanciosa República de que vivem. Ontem, ainda havia alguns sinceros, para permanecerem republicanos em face da monarquia pronta a recebê-los; hoje, desses tiranetes, reles gozadores, todos ostensivamente autoritários, não há um com a coragem lógica de pronunciar-se pelo regime da franca e exclusiva autoridade: dizem-se todos republicanos presidencialistas, na medida em que a República os enche. Amanhã... serão parlamentaristas, absolutistas, fascistas, ou sovietistas... se houver nominal parlamentarismo, absolutismo, fascismo, ou comunismo, que os queira.

Não podia ser de outra forma: na República, como no Império de 1822, e no parlamentarismo de 1838, enquistou-se tudo, das respectivas políticas condenadas, combatidas e vencidas revolucionariamente. Em 1888, a Câmara Municipal de São Borja foi suspensa e processada, por haver proposto que se consultasse a Nação quanto à sucessão do trono na pessoa da Princesa Isabel... No ano seguinte, os processadores estavam com a ditadura militar que sucedera ao trono. E é indispensável insistir no acentuar dessas misérias, porque tal foi o vírus em que se corrompeu, definitivamente, a República já malnascida. O segundo Império se realizou em Pedro II, realmente o mais digno, nele, e que mais sofreu dos serviços dos seus políticos do que de toda a campanha republicana. Iam com ele, servis, abjetos, sem um protesto eficaz contra a absorção que ele fazia da soberania da nação. Tornavam indispensável tal absorção. Prestavam-se, no seu serviço, até a crimes, como a guerra do Paraguai... e quando despojados das  graças, tornavam-se insidiosos adversários, eximindo-se de todas as culpas, implacáveis, a abater o trono sob a acusação do poder pessoal. E como se tanto não bastasse para incompatibilizar o mesmo trono com o Brasil essencialmente democrata, eles o submetiam ao ridículo, em que se dissolviam todos os prestígios, de que a espúria instituição tanto carecia. Vinham cá para fora, a ampliar cacoetes e revelar, desmedidas, fraquezas e deslealdades, que isolavam de mais em mais a coroa da nação. Feita com eles mesmos, a República tinha que ser a espúria oligarquia em que se depravou o regime. Com dois séculos e meio de influxo bragantino, conduzido invariavelmente por um Estado em que toda a miséria dos dirigentes – colônia e Império se refazia de crise em crise, a revolução para a República tinha que ser integral substituição de tudo – ideias, programas, homens e processos; renovação, com reforma bem profunda, e de que emergisse, finalmente, a alma do Brasil essencial – sentimentos e voz de um povo que nasceu e se fez através da implacável e pérfida espoliação de todo o indispensável à consciência humana; alma que apenas tem sofrido e gemido, para a inesgotável tristeza da sua lira, festa de infantil melancolia, soluços sob um sol radiante, desânimo sem luta ostensiva.

Foi muito fácil a República, porque os que lhe fechavam o caminho nada significavam; mas guardavam esses caminhos por onde ela tinha de prosseguir, e, na essência das qualidades e dos recursos próprios, eles, que nada haviam dado para a defesa das instituições de onde vinham; eles, que já tinham criado as condições – questões militares, escravocratismo... eles, que deram os motivos imediatos para a condenação do trono; eles, em quem se encontrava a ideologia da política nacional, deram os moldes da insignificante propaganda republicana; e, na hora, vieram em enxurrada para a mesma República – para o mandonismo abjeto de sempre, mais abjeto, ainda, pois que lhe falta o critério fictício do mandão supremo.

Desta sorte, todas as insuficiências e misérias da República têm a mesma razão: as misérias e insuficiências de sempre; a péssima qualidade da classe dirigente, nunca apurada, nunca renovada, desde a penúria mental dos primitivos coimbrenses.


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/


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Leia também:

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 56 – O último romântico - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 58 – O indianismo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim

sábado, 26 de outubro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXVII

PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA VIDA




O tempo presente, grande Deus, é a arca do Senhor! Ai de quem toca nela. 

DIDEROT




O LEITOR CONSENTIRÁ QUE forneçamos muito poucos fatos claros e precisos sobre essa época da vida de Julien. Não é que eles nos faltem, muito pelo contrário; mas o que ele viu no Seminário talvez seja demasiado sombrio para o colorido moderado que procuramos conservar nestas páginas. Os contemporâneos que sofrem com certas coisas não podem lembrar-se delas senão com um horror que paralisa qualquer outro prazer, mesmo o de ler uma história.

Julien não era muito bem-sucedido em suas tentativas de hipocrisia de gestos; teve momentos de desgosto e mesmo de desânimo completo. Não tinha êxito, e ainda por cima numa carreira mesquinha. O menor amparo exterior teria sido suficiente para restituir-lhe a coragem, a dificuldade a vencer não era muito grande; mas ele estava sozinho como um barco abandonado em meio ao ocea no. E mesmo que eu fosse bem-sucedido, ele pensava, ter de passar a vida inteira em tão má companhia! Glutões que só pensam na omelete com toicinho que vão devorar no almoço, ou padres Castanèdes, para quem nenhum crime é demasiado infame! Eles chegarão ao poder, mas a que preço, meu Deus!

A vontade do homem é poderosa, leio isso em toda parte; mas será ela suficiente para superar tal desgosto? A tarefa dos grandes homens foi fácil; por terrível que fosse o perigo, eles o achavam belo; mas quem pode compreender, exceto eu, a feiura do que me cerca?

Esse momento foi o mais penoso de sua vida. Ser-lhe-ia tão fácil alistar-se num dos regimentos da guarnição de Besançon! Podia ser professor de latim, precisava de muito pouco para sua subsistência! Mas, nesse caso, não haveria mais carreira, nem futuro para sua imaginação: seria a morte. Eis o detalhe de um de seus tristes dias.

Minha presunção felicitou-se tantas vezes por eu ser diferente dos outros jovens camponeses! Pois bem, vivi o bastante para ver que diferença engendra ódio, dizia-se ele certa manhã. Essa grande verdade acabava de ser-lhe mostra da por um de seus mais irritantes insucessos. Durante oito dias esforçara-se por agradar um aluno que tinha reputação de santidade. Caminhava com ele pelo pátio, escutando com submissão tolices de fazer dormir em pé. De repente, o tempo virou anunciando uma tempestade, ouviram-se trovoadas, e o santo aluno exclamou, repelindo-o de forma grosseira:

– Escute: cada um por si neste mundo, não quero ser queimado pelo raio; Deus pode fulminá-lo como um ímpio, como um Voltaire.

Com os dentes cerrados de raiva e de olhos abertos para o céu riscado de raios, Julien exclamou: Mereço ser afogado se durmo durante a tempestade! Tentemos a conquista de um outro pedante qualquer.

Tocou a sineta para a aula de história sagrada do padre Castanède.

A esses jovens camponeses aterrorizados com o trabalho penoso e a pobreza de seus pais, o padre Castanède ensinava, nesse dia, que o governo, criatura tão terrível aos olhos deles, só tinha poder real e legítimo em virtude da delegação do vigário de Deus na terra.

Tornai-vos dignos da bondade do papa pela santidade de vossas vidas, por vossa obediência, sede como um bastão nas mãos dele, acrescentava, e haveis de obter uma posição soberba na qual comandareis como chefes, longe de todo controle; uma posição inamovível, da qual o governo paga um terço dos vencimentos e os fiéis, formados por vossas prédicas, os dois outros terços.

Ao sair da aula, o sr. Castanède deteve-se no pátio.

– É exatamente de um cura que se pode dizer: tanto vale o homem, tanto vale a posição, ele dizia aos alunos que formavam um círculo a seu redor. Conheci, eu que vos falo, paróquias das montanhas cujos ganhos eram maiores que os de muitas da cidade. Além do dinheiro, havia frangos gordos, ovos, manteiga fresca e uma série de outros prazeres; lá o cura é o primeiro sem contestação: não há boa refeição sem que ele seja convidado, bem recebido etc.

Assim que o sr. Castanède voltou a seus aposentos, os alunos dividiram-se em grupos. Julien não estava em nenhum; foi deixado à parte como uma ovelha sarnenta. Em todos os grupos, via um aluno lançar uma moeda no ar; se este acertasse no cara ou coroa, seus colegas concluíam que ele em breve teria uma dessas paróquias de ricos proventos.

A seguir vieram as anedotas. Certo padre jovem, ordenado há apenas um ano, tendo oferecido um coelho à servente de um velho cura, conseguira ser designado para vigário e, poucos meses depois, tendo o cura morrido em seguida, veio a substituí-lo na boa paróquia. Outro conseguira fazer-se designar como sucessor na paróquia de um burgo bastante rico comparecendo às refeições do velho cura paralítico e cortando-lhe os frangos com elegância.

Como os jovens de todas as carreiras, os seminaristas exageram os efeitos desses pequenos expedientes que têm algo de extraordinário e impressionam a imaginação.

Preciso adaptar-me a essas conversas, dizia-se Julien. Quando os assuntos não eram salsichas e boas paróquias, falava-se da parte mundana das doutrinas eclesiásticas, das disputas entre bispos e governadores, entre prefeitos e párocos. Julien via aparecer a ideia de um segundo Deus, mas de um Deus bem mais temível e poderoso que o outro: esse segundo Deus era o papa. Dizia-se, mas em voz baixa e quando se tinha certeza de não ser ouvido pelo sr. Pirard, que, se o papa não se dá o trabalho de nomear todos os governadores e prefeitos da França, é que confiou esse cuidado ao rei da França, nomeando-o filho mais velho da Igreja.

Foi nessa época que Julien acreditou poder tirar proveito de seu conhecimento do livro Do papa, do sr. de Maistre. Em verdade, ele surpreendeu seus colegas; mas isso foi ainda pior. Eles não gostaram que alguém expusesse melhor que eles suas próprias opiniões. O sr. Chélan fora imprudente em relação a Julien como o era em relação a si mesmo. Tendo lhe ensinado o hábito de raciocinar com exatidão e de não se contentar com palavras vãs, esquecera de dizer-lhe que, numa pessoa pouco estimada, esse hábito é um crime: pois todo bom raciocínio ofende.

Assim, dizer bem foi, para Julien, um novo crime. De tanto pensarem nele, os colegas conseguiram exprimir numa palavra todo o horror que ele lhes inspirava: apelidaram-no MARTIM LUTERO, principalmente, diziam, por causa da lógica infernal que o torna tão orgulhoso.

Vários jovens seminaristas tinham uma aparência mais viçosa e podiam ser considerados como rapazes mais bonitos que Julien; mas ele tinha as mãos brancas e não podia ocultar certos hábitos de delicado asseio. Isso não era uma vantagem na triste casa onde a sorte o lançara. Os camponeses sujos no meio dos quais vivia declararam que ele tinha costumes muito relapsos. Tememos fatigar o leitor com o relato dos incontáveis infortúnios do nosso herói. Por exemplo, os mais robustos de seus colegas quiseram adquirir o hábito de espancá-lo; ele foi obrigado a armar-se de um compasso de ferro e a anunciar, por sinais, que faria uso dele. Num relatório de espião, os sinais não podem figurar tão vantajosamente quanto as palavras.


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6 Henri Grégoire, bispo que participou da Revolução Francesa, contribuindo para a união do baixo clero. (N.T.) 
7 Ver no museu do Louvre, François, duque de Aquitânia, depositando sua couraça para vestir o hábito de monge.
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Capital (XXIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Procissão(XXVIII)



sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Série Ópera: Les Indes Galantes, VIENS HYMEN

O GALANTE INDES

VIENS HYMEN




Um pequeno passo para a paz









Todo o gênio de Rameau, uma flauta, a beleza de uma voz luminosa, um dançarino em estado de graça


« Viens Hymen » Sabine Devieilhe, soprano
Cal Hunt Danseur
Serge Saitta, flûte traversière
Chorégraphie Bintou Dembélé
Leonardo García Alarcón, chef d’orchestre
Cappella Mediterránea



histórias de avoinha: a vaga de marido

mulheres descalças


a vaga de marido
Ensaio 127Bt – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




o relógio do tempo num inventa nem se desvia ou descansa, ele num dormi nem se distrai – e num tem medo da cara de brabeza do siô augusto ou dó dos contorno de sofrimento e abandono da dona rosinha –, atravessa os beco da vida de cadum sem embaraço ou aborrecimento – nem faz cara de arrependimento –, num bate na porta nem pede licença, só deixa pra tráis os pó qui se acumula do ossário das vida qui já foi vida, mais isso só inté o ventu chegá e se encarregá de debandá tudo

o ventu é o seladô qui faz o arremate do esquecimento: esparrama o pó amontoado nos buraco da terra; depois, é aveiz das água da chuva qui faz lavá e germiná tudo

num sobra nada dos aroma, dos colorido das cara – as caramunha, os trejeito, as máscara –, dos melindre, das emoção, o relógio do tempo num descansa nem se assusta, é comilão, devora tudo

quem diz, e diz, e repete, Eu quisera ter vivido com outro jeito, perdeu o tempo de vivê os folguedo da vida, hoje ou amanhã vai morrê, e depois, e depois, e sempre, o relógio num volta e só dá o aviso uma veiz: acabô e tudo continua sem o siô augusto e dona rosinha

num adianta os grito, Vamos! Vamos sua vaca!, esse rebuliço das palavra só prepara dona rosinha pra sê um corpo sem alegria e morto, antes mesmo de tê descido pru buraco da cova, antes da hora de tá afeita pra sê comida da terra

o siô augusto parece apreciá com gosto sê o covêro do buraco qui vai comê dona rosinha

pru qui essa fervura nervosa das gritaria e descortesia? foi o siô augusto qui procurô os serviço da dona rosinha de muié, dona de casa e mãinha... uqui ele vai perdê ou num perdê com isso? é muntu sacrifício exigido  qui num merece – pra quem vai continuá escondido nas cortina de faz-de-conta da figuração dele pra ele mesmo

gosta de vê no espêio o branco dono de tudo, mesmo qui esse convencimento num vai passá da porta pra fora, mais ali, naquela casa, ele é qui manda e desmanda, mama e desmama, num aprendeu – ou num quis aprendê – qui apalpá as intimidade da dona rosinha num é cura nem pecado, é a fervura de vivê os aroma e os colorido da vida, sabê se deliciá nas refeição do amô é sabê serví o alimento com o mesmo gosto qui aprende se a comida

mais o siô augusto vai continuá em jejum  escondido atráis da moita da vida , sempre foi assim e vai continuá sendo: a miudeza do desaproveitamento

já escutô qui depois qui passô num adianta  uqui passô... passô , num tem jeito de fazê voltá o relógio, Não tem importância, a cara feia de brabo resolve. Apareço de supetão e depois é só sumir. Um ou dois gritos coloca tudo no rumo. O medo faz a vida andar para frente.

num tem jeito, a vela acessa tá sempre derramando a chama no copo do vinho, mais é as lágrima da tristura qui faz o siô augusto respirá, a dormência sem limite é um desaproveitamento desembaraçado qui os dono de tudo aduba, ensina e conserva, A Mãezinha está diferente, Por quê, Paizinho?

Não sei...

Diferente em quê?

dona rosinha torce e retorce os dedo, mais num vai descruzá as perna

Não sei... não sei...

o aniversário do tempo num deixa pedra em cima da pedra, desliza determinado  num esquece ninguém , ninguém fica pra tráis muntu tempu, Não adiantam os seus gritos: Vamos! Vamos, sua vaca!

esses seus gritos só querem me preparar para morrer, é o jeito de vosmecê me acostumar com a falta de ter vida longe das suas mãos azedas e grosseiras, vosmecê só quer os buracos do meu corpo e nem isso vosmecê sabe aproveitar com gosto

não sou o seu pedaço de carne, eu tenho uns formigamentos e nervuras que o sinhô meu marido nem chegou perto de ser agradável  é só desconforto assistir vosmecê desvivendo , um animal faminto que não fica melhor com o tempo, deus é homem? deve ser

se tenho medo? tenho!

gosto de falar alto, ser engraçada, sentar e cruzar as pernas, queria andar pelo mundo fora da villa, mas não dá, tanto faz no anoitecer como no amanhecer é uma vida fúnebre, só os mortos sorriem

trocar as fraldas, cozinhar, aprender a lavar a louça – o que lavar primeiro e por último –, seguir um homem pelo resto da vida, vai à merda! decidi que serei o túmulo da sua carne mal-cheirosa e mole

mais vosmecê tem salvação, é só querer me aprender, sou um rio que flui úmida de muitos riachos, não sou as águas de um só lugar, invento palavras que não existem, invento línguas... invento vidas

quer me aprender?

basta me repetir repetir repetir e repetir até a profundeza mais escura e desconhecida, posso lhe dar o que vosmecê nem sonha receber, as intimidades não se comem sem se lambuzar todo, é preciso esparramá tudo com alegria, riso e diversão

e vosmecê precisa tirar as armaduras do medo e enraizar a mania da cortesia no coração

então, pode chegar o dia que vou tomar sua espada nas mãos com gosto e fazer brotar a festa da cantoria do sabiá, uma couraça imensa em sua seiva e vigor, e assim... apalpado, vosmecê talvez possa beber minhas águas, aprender minhas matas e tatear minhas colinas

eu sou bela e meus seios lhe esperam, mas vosmecê se apegou à raiva, ao ódio e aprisionou tudo nesse jogo inventado do esconde-esconde, não diz o que sente – nem eu, eu sei, mais vosmecê aguenta a verdade? –, eu não aguento mais vosmecê, marido num é dono

O Paizinho quer clareza? Então, vou ser bem explicada nas palavras, num parô uqui vinha dos pensamento do curação, sabia qui depois das palavra parada os movimento delas fica atado e com nó relutante pra desmanchá, foi assim qui continuô empurrando elas pra fora, no rumo do siô augusto

O sinhô meu marido vai querer agradar, mais dia menos dia, os candidatos escolhidos por vosmecê, para a vaga de marido da Chiquinha...




histórias de avoinha: a lua na escuridão