CalçaCurta
esse é o seu cadáver...
não acreditava na própria morte, não é? debochava da vulgocracia do governo popular enquanto esquartejava os desafetos, o trabalho sujo ficou para o senhor que aceitou a incumbência sem nenhuma preocupação maior, como alguém que rouba livros da biblioteca
os fins justificavam os meios: acabar com os comunistas já instalados nos edifícios e casas da villa, surrupiavam as crianças, estrepavam as mulheres, degolavam os prisioneiros
novela
o cadáver
1A - 4ª ed
baitasar
esse é o seu cadáver...
não acreditava na própria morte, não é? debochava da vulgocracia do governo popular enquanto esquartejava os desafetos, o trabalho sujo ficou para o senhor que aceitou a incumbência sem nenhuma preocupação maior, como alguém que rouba livros da biblioteca
os fins justificavam os meios: acabar com os comunistas já instalados nos edifícios e casas da villa, surrupiavam as crianças, estrepavam as mulheres, degolavam os prisioneiros
se o senhor me permite, acho que estamos confundindo a história da villa com as histórias de comunista contadas ao redor do fogo de chão, histórias para o gado dormir com medo
mas enfim, as suas ações não recaíram sobre o senhor, não é? morreu dormindo dentro do seu pijama
seu velho safado, apostou que não se incomodava com porra de justiça alguma
mas ela chegou...
esse é o despejo do seu corpo, tudo acaba, Nem tudo, Xupa-racha!
eu sei, nem tudo. os canalhas e seus desmandos já devem ter outros canalhas iguais ou piores, prontos para assumirem seu posto de abusos e devassidão em nome da família e dos bons costumes deles
isso é rebuliço que passa do infame para o sem-vergonha e o que aconteceu pode retornar com mais descaso e mais trágico, gente assim não se importa com quem sofre desde que não sejam elas, por isso o senhor manteve essa arrogância e impunidade, quem não quer sujar as mãos compra os seus serviços, é fácil, basta virar a cara e dizer que não acredita, É tudo mentira, Nem tudo, senhor, às vezes, demora para a história e o tempo se encontrarem, mas se encontram
essa sua história não é só de ontem, ou hoje, ela é de amanhã. a repetição das maldades e desmandos não tem fim, é preciso estarmos atentos e fortes mesmo temendo à morte
todos se vão, mas até a crise da perda pode ser um avanço, as histórias de amanhã não estão escritas, isso é uma oportunidade para renovar o guarda-roupa da compaixão, humanidade, benfazer ou sucumbir mais uma vez ao anúncio da modernidade com novas novidades e maldades
os únicos e as únicas que não voltam são os desaparecidos, mas as suas memórias não desaparecem, essas feridas da história são as sangrias do passado, a carne morta nas suas mãos, sob às suas ordens, essa busca não tem descanso para acabar com o sofrimento da impunidade
não pedi, mas fui testemunha de tudo aquilo, o senhor nunca acreditou que seria derrotado, e não foi, apenas se afastou lenta e gradualmente
sabia que o tempo e o vento vai espalhando e varrendo tudo para baixo do tapete do esquecimento, mas acaba-se corroído por dentro como as traças atacam no guarda-roupa
o seu plano para defender o quarto de despejos foi queimar o guarda-roupa com tudo dentro e jogar no mar
mas não se enterra ou afoga a memória da história: sou um abismo que não afunda, flutuo acordada, explicando as realidades que se vive fora da prisão nas escolas das crianças e academias dos doutores
o tempo de outro canalha vai surgir, mas o seu acabou
queria morrer dormindo, vestindo o seu pijama
e conseguiu, torturou quem quis, mandou matar quem quis matar e morreu de pijama na sua cama, como dizem alguns, A justiça de Deus tarda, mas não falha, no seu caso, ela chegou bem tarde, mas pelo menos chegou, já que a justiça dos homens e mulheres nunca se interessou pelo seu caso
a mesma sorte – ou destino? ou proteção? ou interesse... – não tiveram os seus prisioneiros e prisioneiras desconhecidas e invisíveis, morreram como passageiros nas suas prisões, o senhor lambuzou a memória daqueles que morreram lutando, frente à frente, no campo das batalhas, nunca foi o primeiro homem no campo das lutas e jamais o último que saiu, mas o primeiro no início de cada choque, apertão, tapa, Lembra da sua ordem favorita?, Não, Faça uma forcinha para lembrar, Não lembro, Tira a roupa!
Xupa-racha! Apresente-se!
Sim, Senhor!
as suas últimas ordens
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...
eu sei, ainda não acredita, mas acredite, não sou eu neste ataúde
Estamos aqui para implorarmos que a Tua bondade recaia sobre todos nós...
essa é a sua carcaça cheia de medalhas e condecorações vazias. não tem mais jeito, as mentiras não vão lhe trazer de volta
E na alma desse homem de coração justo. Acolhe, Senhor...
parece que nem luto oficial o senhor ganha, essas coisas de bandeira a meio mastro, um minuto de silêncio
li nos jornais – no assoalho das páginas – pequenas notas do seu passamento, essa gente lembra bem do senhor, mas não querem carregar o fardo da sua memória e da covardia deles, preferem lhe ter no buraco da história, abaixo do tapete do esquecimento
Permite, como a Virgem Maria, abençoada Mãe do Menino Deus...
sou a última voz que escuta enquanto esfria e desmancha a força desta cobertura de ódio e imbecilidade, carne condecorada com as cicatrizes esquecidas dos desaparecidos
isso mesmo, esse seu entusiasmo pela ignomínia da tortura me desarranja como a cera das velas – que, por certo, algum devoto ou distraído das próprias culpas irá lhe acender –, azar o meu que odeio velas
tenho asma
por que a surpresa? a história é uma sucessão permanente de crises
Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...
eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo e passar para o outro lado, já o senhor não pode mais renunciar, morreu
a vida desobrigou-se do dominador, mas o que o senhor sabe da vida além de querer obrigar o seu jeito de pensar, querer e fazer, para tudo e todos? relaxa, a vida não tem sentido, é preciso ir vivendo com entusiasmo e alegria enquanto se apaga no tempo, chega de querer matar
e no fim, veja no que deu, no seu caso, já sabemos no que deu, né? muita porrada e desaparecidos nos porões, foram lhe deixar solto para fazer todo o mal possível do jeito que bem entendesse, perderam o controle
acredito que desta vida só levamos as lágrimas da saudade pela nossa ausência
no seu caso, o senhor vai carregar o pesar dos bêbados que ficaram órfãos apoiados no balcão e a consternação das putas
essas não mentem, já sabemos quanto nos custará o serviço de acolhimento. não aceitam violência, mas negociam algumas extravagâncias, aceitam relutantes seus carinhos e beijinhos, mas tudo muito rápido, tudo tem um preço para entrar e sair – não perdem tempo, afinal, tempo é dinheiro –, mas antes de abrir a porta de fuga é preciso agarrar o preço acomodado na cômoda, a bem da verdade, é nessa hora que o senhor dorme com um pequeno sorriso nos lábios
não é necessário dar adeusinho nem fazer biquinho na despedida, basta um simples obrigado e virar para o lado
hoje, quem sabe, venham derramar uma ou duas lágrimas no peito do defunto parceiro que encostava no balcão e ordenava, aos gritos, Essa rodada é por minha conta! Pode servir, Xupa-racha!
o puteiro inteiro levantava e saudava o senhor, lembra?
eu sei que lembra, essa umidade nas vistas lhe denunciaram, nunca lhe vi chorar, nem naquela vez que a rapariga comunistinha levou tanto choque nos biquinhos dos peitos que cuspiu a criança longe, lembra? nenhum nervosismo ou pressa
mas sempre tem uma primeira vez para tudo
A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...
os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar, ninguém virá chorar. afirmam que com um pouco de sorte, talvez, veja bem, talvez lhe reste o silêncio dos desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho
adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades, nada o impedia de descansar as próprias mãos nos destroços
Toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...
não é um ótimo dia, mas é um bom dia. afinal, tem dia para tudo... até para morrer
Vão em Paz e que o Senhor vos acompanhe.
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Leia também:
tempo e história: Calçacurta: 2A - o dever do ofício
mas enfim, as suas ações não recaíram sobre o senhor, não é? morreu dormindo dentro do seu pijama
seu velho safado, apostou que não se incomodava com porra de justiça alguma
mas ela chegou...
esse é o despejo do seu corpo, tudo acaba, Nem tudo, Xupa-racha!
eu sei, nem tudo. os canalhas e seus desmandos já devem ter outros canalhas iguais ou piores, prontos para assumirem seu posto de abusos e devassidão em nome da família e dos bons costumes deles
isso é rebuliço que passa do infame para o sem-vergonha e o que aconteceu pode retornar com mais descaso e mais trágico, gente assim não se importa com quem sofre desde que não sejam elas, por isso o senhor manteve essa arrogância e impunidade, quem não quer sujar as mãos compra os seus serviços, é fácil, basta virar a cara e dizer que não acredita, É tudo mentira, Nem tudo, senhor, às vezes, demora para a história e o tempo se encontrarem, mas se encontram
essa sua história não é só de ontem, ou hoje, ela é de amanhã. a repetição das maldades e desmandos não tem fim, é preciso estarmos atentos e fortes mesmo temendo à morte
todos se vão, mas até a crise da perda pode ser um avanço, as histórias de amanhã não estão escritas, isso é uma oportunidade para renovar o guarda-roupa da compaixão, humanidade, benfazer ou sucumbir mais uma vez ao anúncio da modernidade com novas novidades e maldades
os únicos e as únicas que não voltam são os desaparecidos, mas as suas memórias não desaparecem, essas feridas da história são as sangrias do passado, a carne morta nas suas mãos, sob às suas ordens, essa busca não tem descanso para acabar com o sofrimento da impunidade
não pedi, mas fui testemunha de tudo aquilo, o senhor nunca acreditou que seria derrotado, e não foi, apenas se afastou lenta e gradualmente
sabia que o tempo e o vento vai espalhando e varrendo tudo para baixo do tapete do esquecimento, mas acaba-se corroído por dentro como as traças atacam no guarda-roupa
o seu plano para defender o quarto de despejos foi queimar o guarda-roupa com tudo dentro e jogar no mar
mas não se enterra ou afoga a memória da história: sou um abismo que não afunda, flutuo acordada, explicando as realidades que se vive fora da prisão nas escolas das crianças e academias dos doutores
o tempo de outro canalha vai surgir, mas o seu acabou
queria morrer dormindo, vestindo o seu pijama
e conseguiu, torturou quem quis, mandou matar quem quis matar e morreu de pijama na sua cama, como dizem alguns, A justiça de Deus tarda, mas não falha, no seu caso, ela chegou bem tarde, mas pelo menos chegou, já que a justiça dos homens e mulheres nunca se interessou pelo seu caso
a mesma sorte – ou destino? ou proteção? ou interesse... – não tiveram os seus prisioneiros e prisioneiras desconhecidas e invisíveis, morreram como passageiros nas suas prisões, o senhor lambuzou a memória daqueles que morreram lutando, frente à frente, no campo das batalhas, nunca foi o primeiro homem no campo das lutas e jamais o último que saiu, mas o primeiro no início de cada choque, apertão, tapa, Lembra da sua ordem favorita?, Não, Faça uma forcinha para lembrar, Não lembro, Tira a roupa!
Xupa-racha! Apresente-se!
Sim, Senhor!
as suas últimas ordens
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...
eu sei, ainda não acredita, mas acredite, não sou eu neste ataúde
Estamos aqui para implorarmos que a Tua bondade recaia sobre todos nós...
essa é a sua carcaça cheia de medalhas e condecorações vazias. não tem mais jeito, as mentiras não vão lhe trazer de volta
E na alma desse homem de coração justo. Acolhe, Senhor...
parece que nem luto oficial o senhor ganha, essas coisas de bandeira a meio mastro, um minuto de silêncio
li nos jornais – no assoalho das páginas – pequenas notas do seu passamento, essa gente lembra bem do senhor, mas não querem carregar o fardo da sua memória e da covardia deles, preferem lhe ter no buraco da história, abaixo do tapete do esquecimento
Permite, como a Virgem Maria, abençoada Mãe do Menino Deus...
sou a última voz que escuta enquanto esfria e desmancha a força desta cobertura de ódio e imbecilidade, carne condecorada com as cicatrizes esquecidas dos desaparecidos
isso mesmo, esse seu entusiasmo pela ignomínia da tortura me desarranja como a cera das velas – que, por certo, algum devoto ou distraído das próprias culpas irá lhe acender –, azar o meu que odeio velas
tenho asma
por que a surpresa? a história é uma sucessão permanente de crises
Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...
eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo e passar para o outro lado, já o senhor não pode mais renunciar, morreu
a vida desobrigou-se do dominador, mas o que o senhor sabe da vida além de querer obrigar o seu jeito de pensar, querer e fazer, para tudo e todos? relaxa, a vida não tem sentido, é preciso ir vivendo com entusiasmo e alegria enquanto se apaga no tempo, chega de querer matar
e no fim, veja no que deu, no seu caso, já sabemos no que deu, né? muita porrada e desaparecidos nos porões, foram lhe deixar solto para fazer todo o mal possível do jeito que bem entendesse, perderam o controle
acredito que desta vida só levamos as lágrimas da saudade pela nossa ausência
no seu caso, o senhor vai carregar o pesar dos bêbados que ficaram órfãos apoiados no balcão e a consternação das putas
essas não mentem, já sabemos quanto nos custará o serviço de acolhimento. não aceitam violência, mas negociam algumas extravagâncias, aceitam relutantes seus carinhos e beijinhos, mas tudo muito rápido, tudo tem um preço para entrar e sair – não perdem tempo, afinal, tempo é dinheiro –, mas antes de abrir a porta de fuga é preciso agarrar o preço acomodado na cômoda, a bem da verdade, é nessa hora que o senhor dorme com um pequeno sorriso nos lábios
não é necessário dar adeusinho nem fazer biquinho na despedida, basta um simples obrigado e virar para o lado
hoje, quem sabe, venham derramar uma ou duas lágrimas no peito do defunto parceiro que encostava no balcão e ordenava, aos gritos, Essa rodada é por minha conta! Pode servir, Xupa-racha!
o puteiro inteiro levantava e saudava o senhor, lembra?
eu sei que lembra, essa umidade nas vistas lhe denunciaram, nunca lhe vi chorar, nem naquela vez que a rapariga comunistinha levou tanto choque nos biquinhos dos peitos que cuspiu a criança longe, lembra? nenhum nervosismo ou pressa
mas sempre tem uma primeira vez para tudo
A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...
os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar, ninguém virá chorar. afirmam que com um pouco de sorte, talvez, veja bem, talvez lhe reste o silêncio dos desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho
adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades, nada o impedia de descansar as próprias mãos nos destroços
Toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...
não é um ótimo dia, mas é um bom dia. afinal, tem dia para tudo... até para morrer
Vão em Paz e que o Senhor vos acompanhe.
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