OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
Nova fase da luta
Preliminares
I. Queimadas. Uma ficção geográfica. Fora da pátria. Diante de uma criança. Na estrada de Monte Santo. Novas animadoras. Uma vaia entusiástica... Trincheira Sete de Setembro. Estrada de Calumbi.II. Marcha da divisão auxiliar. Medo glorioso. Aspecto do acampamento. Em busca de uma meia ração de glória. O charlatanismo da coragem.III. Embaixada ao céu. Complemento do assédio.
I -
Queimadas
Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-se um acampamento ruidoso O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arado pelos enxurros — um claro no matagal bravio que o rodeia — e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas.
Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-se um acampamento ruidoso O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arado pelos enxurros — um claro no matagal bravio que o rodeia — e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas.
Prendiam-se-lhe, ademais, recordações penosas. Ali tinham parado todas as forças
anteriormente envolvidas na luta, no mesmo prolongamento do largo aberto para a caatinga
cujos tons pardos e brancacentos, de folhas requeimadas, sugeriam a denominação da vila.
Acervos repugnantes de farrapos e molambos; trapos multicores e imundos, de fardamentos
velhos; botinas e coturnos acalcanhados; quepes e bonés; cantis estrondados; todos os
rebotalhos de caserna, esparsos em área extensa, em que branqueavam restos de fogueiras,
delatavam a passagem dos lutadores, que lá armaram as tendas, a partir da expedição
Febrônio. Naquele chão batido dos rastros de 10 mil homens, haviam turbilhonado na vozeria
dos bivaques — paixões, ansiedades, esperanças, desalentos indescritíveis.
Páginas demoníacas
Transposta acessível ondulação, via -se, recortando o cerrado dos arbustos, um sulco largo de
roçada, retilíneo e longo, que um alvo extremava — a linha de tiro, onde se exercitara a
divisão Artur Oscar. Perto, ao lado, a capela exígua e baixa, como um barracão murado. E nas
suas paredes, cabriolando doidamente, a caligrafia manca e a literatura bronca do soldado.
Todos os batalhões haviam colaborado nas mesmas páginas, escarificando-as a ponta de sabre
ou tisnando-as a carvão, no gravarem as impressões do momento. Eram páginas demoníacas
aqueles muros sacrossantos: períodos curtos, incisivos, arrepiadores; blasfêmias fulminantes;
imprecações, e brados, e vivas calorosos, rajavam-nas em todo o sentido, profanando-as,
mascarando-as, em caracteres negros espetados em pontos de admiração, compridos como
lanças.
Dali para baixo, no descair de insensível descida, uma vereda estreita e mal afamada — a
estrada de Monte Santo, por onde tinham abalado, esperançosas, três expedições sucessivas, e
de onde chegavam, agora, sucessivamente, bandos miserandos de foragidos. Vadeado o
Jacurici, volvendo águas rasas e mansas, ela enfiava, inflexa, pelas chapadas fora, ladeada, em
começo, por uma outra que demarcavam os postes da linha telegráfica recentemente
estabelecida.
Uma ficção geográfica
A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por ali, inútil,
sem atenuar sequer o caráter genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõe-se
poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça — o
sertão...
Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O vaqueiro
encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o "campeão" junto
aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que o não conhecem.
Fora da pátria
Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta. Discordância
absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra
tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba a unidade nacional. Viam-se em
terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada
em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra
externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância
geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.
Além disto, a missão que ali os conduzia frisava, mais fundo, o antagonismo. O inimigo lá
estava, para leste e para o norte, homiziado nos sem-fins das chapadas, e no extremo delas, ao
longe, se desenrolava um drama formidável...
Convinha-se em que era terrivelmente paradoxal uma pátria que os filhos procuravam
armados até os dentes, em som de guerra, despedaçando as suas entranhas a disparos de
Krupps, desconhecendo-a de todo, nunca a tendo visto, surpreendidos ante a própria forma da
terra árida, e revolta, e brutal, esvurmando espinheiros, tumultuando em pedregais,
esboroando em montanhas derruídas, escanceladas em grotões, ondeando em tabuleiros secos,
estirando-se em planuras nuas, de estepes...
O que ia fazer-se era o que haviam feito as tropas anteriores — uma invasão — em território
estrangeiro. Tudo aquilo era uma ficção geográfica. A realidade, tangível, enquadrada por
todos os sucessos, ressaltando à observação mais simples, era aquela. Os novos campeadores
sentiam-na dominadoramente. E como aquele povo desconhecido de matutos lhes devolvia,
dia a dia, mutilados e abatidos, os companheiros que meses antes tinham avançado robustos e
altaneiros, não havia ânimo varonil que atentasse impassível para as bandas do sertão
misterioso e agro...
Em Canudos
Felizmente tiveram ao chegar o contrachoque de notícias animadoras recém-vindas do campo
de operações.
Nenhum outro desastre ocorrera. Guardavam-se, mau grado tiroteios diários, as posições
conquistadas. A Brigada Girard e o Batalhão Paulista tinham ido a tempo de preencher os
claros da linha rarefeita do sítio. Com este reforço coincidiam os primeiros sintomas de
desanimo entre os rebeldes: não batia mais com a sua serenidade gloriosa o sino da igreja
velha, que caíra; não mais se ouviam ladainhas melancólicas entre os intervalos das fuzilarias;
cessavam os ataques atrevidos às linhas; e à noite, sem o bruxulear de uma luz, o arraial
mergulhava silenciosamente nas sombras. Reproduzia-se a atoarda de que o Conselheiro lá
estava, agora, coacto, preso pelos próprios sequazes, revoltados pelo intento, que manifestara,
de se entregar, dispondo-se ao martírio.
E citavam-se pormenores incidindo todos no denunciar o afrouxamento rápido da
conflagração.
Prisioneiros
Os novos combatentes imaginaram-na extinta antes de chegarem a Canudos. Tudo o indicava.
Por fim os próprios prisioneiros que chegavam, e eram, no fim de tantos meses de guerra, os
primeiros que apareciam. Notou-se apenas, sem que se explicasse a singularidade, que entre
eles não surgia um único homem feito. Os vencidos, varonilmente ladeados de escoltas, eram
fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao colo crianças engelhadas como fetos, seguidas
dos filhos maiores, de seis a dez anos. Passavam pelo arraial, entre compactas alas de curiosos
em que se apertavam fardas de todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste.
As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam olhares
insaciáveis, entraram pelo largo, mal conduzindo pelo braço os filhos pequeninos, arrastados.
Eram como animais raros num divertimento de feira.
Em volta cruzavam-se, em todos os tons, comentários de toda a sorte, num burburinho de
vozes golpeadas de interjeições vivíssimas, de espanto. O agrupamento miserando foi por
algum tempo um derivativo, uma variante feliz aligeirando as horas enfadonhas do
acampamento.
Mas acirrou a curiosidade geral, sem abalar os corações.
Diante de uma criança
Um dos pequenos — franzino e cambaleante — trazia à cabeça, ocultando-a inteiramente,
porque descia até aos ombros, um velho quepe reúno, apanhado no caminho. O quepe largo e
grande demais, oscilava grotescamente, a cada passo, sobre o busto esmirrado que ele
encobria por um terço. E alguns espectadores tiveram a coragem singular de rir. A criança
alçou o rosto, procurando vê-los. Os risos extinguiram-se: a boca era um chaga aberta de lado
a lado por um tiro!
As mulheres eram, na maioria, repugnantes. Fisionomias ríspidas, de viragos, de olhos
zanagas e maus.
Destacava-se, porém, uma. A miséria escavara-lhe a face, sem destruir a mocidade. Uma
beleza olímpica ressurgia na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os
traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontando duramente no rosto emagrecido e
pálido, aclarado de olhos grandes e negros, cheios de tristeza soberana e profunda.
Esta satisfez a ânsia contando uma história simples. Uma tragédia em meia dúzia de palavras.
Um drama a bem dizer trivial, então, com o epílogo invariável de uma bala ou de um estilhaço
de granada.
Postas na saleta térrea de casebre comprimido, junto ao largo, as infelizes, rodeadas pelos
grupos insistentes, foram vítimas de perguntas intermináveis.
Estas deslocaram-se por fim às crianças. Procurava-se a sinceridade na ingenuidade infantil.
Outra criança
Uma delas, porém, menor de nove anos, figurinha entroncada de atleta em embrião, face
acobreada e olhos escuríssimos e vivos, surpreendeu-os pelo desgarre e ardileza precoce.
Respondia entre baforadas fartas de fumo de um cigarro, que sugava com a bonomia satisfeita
de velho viciado. E as informações caíam, a fio, quase todas falsas, denunciando astúcias de
tratante consumado. Os inquiridores registravam-nas religiosamente. Falava uma criança.
Num dado momento, porém, ao entrar um soldado sobraçando a Comblain, a criança
interrompeu a algaravia. Observou, convicto, entre o espanto geral, que a "comblé" não
prestava. Era uma arma à toa, "xixilada": fazia um "zoadão danado", mas não tinha força.
Tomou-a: manejou-a com perícia de soldado pronto; e confessou, ao cabo, que preferia a
manulixe, um clavinote de "talento". Deram-lhe, então, uma mannlicher. Desarticulou-lhe
agilmente os fechos, como se fosse aquilo um brinco infantil predileto.
Perguntaram-lhe se havia atirado com ela, em Canudos.
Teve um sorriso de superioridade adorável:
"E por que não ! Pois se havia tribuzana velha!. . . Havera de levar pancada, como boi
acuado, e ficar quarando à toa, quando a cabrada fechava o samba desautorizando as praças
?!"
Aquela criança era, certo, um aleijão estupendo. Mas um ensinamento. Repontava, bandido
feito, à tona da luta, tendo sobre os ombros pequeninos um legado formidável de erros. Nove
anos de vida em que se adensavam três séculos de barbaria.
Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à
função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo
mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um
crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma
propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à
nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.
Mas, sob a pressão de dificuldades exigindo solução imediata e segura, não havia lugar para
essas visões longínquas do futuro. O ministro da Guerra, depois de se demorar quatro dias em
Queimadas removendo os últimos entraves à mobilização das forças, seguiu para Monte
Santo.
continua na página 302...
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Leia também:
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OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
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OS SERTÕES - Nova fase da luta: I - Queimadas
OS SERTÕES - Nova fase da luta: I - Na estrada de Monte Santo
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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