sábado, 26 de outubro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: VIII - Colaboradores prosaicos demais

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Quarta expedição 

VIII - 

Colaboradores prosaicos demais 

     Um estrategista superior, atraído pela forma técnica e alta da questão, gizaria rasgos estupendos de tática e não a resolveria. Um lidador brilhante idearia novas arrancadas impetuosas, que esmagassem de vez a rebeldia, e extenuar-se-ia, inútil, a marche-marche pelas caatingas. O marechal Bittencourt, indiferente a tudo isto — impassível dentro da impaciência geral —, organizava comboios e comprava muares...
     De feito, aquela campanha cruenta e na verdade dramática só tinha uma solução, e esta singularmente humorística.
     Mil burros mansos valiam na emergência por 10 mil heróis. A luta com todo o seu cortejo de combates sangrentos descambava, deploravelmente prosaica, a um plano obscuro.
Dispensava o heroísmo, desdenhava o gênio militar, excluía o arremesso das brigadas, e queria tropeiros e azêmolas. Esta maneira de ver implicava com o lirismo patriótico e doía, feito um epigrama malévolo da História, mas era a única. Era forçada a intrusão pouco lisonjeira de tais colaboradores em nossos destinos. O mais caluniado dos animais ia assentar, dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e esmagá-la...
     Ademais, somente eles podiam dar às operações a celeridade exigida pelas circunstâncias. É o caso que a guerra só podia delongar-se por mais dois meses, no máximo. Mais três meses seriam — e não havia remover a conclusão inabalável — a derrota, o abandono de quanto se havia feito, a paralisação obrigada.
     Ia entrar, em novembro, sobre aquela zona, o regímen torrencial e dele decorreriam conseqüências insanáveis.
     Nos leitos, até então secos, dos regatos, acachoariam rios de águas barrentas, e o Vaza-Barris, intumescido de repente, transmudar-se-ia em onda enorme e dilatada, rolando transbordante, intransponível, cortando todas as comunicações.
     Depois, quando as caudais se extinguissem, rápidas — porque o turbilhão das águas, derivando para o S. Francisco e para o mar, se esgota com a mesma celeridade com que se forma — despontariam entraves mais graves. Sob a adustão dos dias ardentíssimos, cada banhado, cada lagoa efêmera, cada caldeirão encovado nas pedras, cada poça de água — é um laboratório infernal, destilando a febre que irradia latente nos germens do impaludismo, profusamente disseminados nos ares, ascendendo em número infinito de cada ponto em que bata um raio de sol e descendo sobre as tropas, milhares de organismos em que as fadigas criavam receptividade mórbida funesta.
     Era preciso liquidar a pendência antes dessa quadra perigosa, dispondo as coisas para um sítio real e firme determinando a rendição imediata. E, vencido o inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o inimigo invencível e eterno — a terra desolada e estéril. Mas para tal era indispensável garantir-se a subsistência do exército que, com os recentes reforços, montaria cerca de 8 mil homens.
     Conseguiu-o o ministro da Guerra.
     De sorte que ao partir, em começo de setembro, para Queimadas — estavam dispostos todos os elementos para desenlace próximo: aguardavam-no, concentradas em Monte Santo, as brigadas da Divisão Auxiliar; seguiam, ainda que raros, os primeiros comboios regulares para Canudos.


Em Canudos

     Iam ainda a tempo de reanimar a expedição que até àquela data atravessara, presa aos flancos do arraial, quarenta e tantos dias de agitação perigosa e inútil. Definimo-la já, em breve diário, que não alongamos para evitar a mesmice dolorosa de episódios sucedendo-se sem variantes apreciáveis.
     Os mesmos tiroteios improvisos, violentos, instantâneos, em horas incertas; os mesmos armistícios enganadores; a mesma apatia recortada de alarmas; a mesma calma estranha e esmagadora, intermitentemente rota de descargas...
     Combates diários, ora mortíferos rareando as fileiras e desfalcando-as de oficiais prestimosos, ora ruidosos e longos, mas à maneira dos recontros entre os mercenários na Idade Média, esgotando-se num dispêndio de milhares de balas, sem um ferido, sem um escoriado sequer, de lado a lado. Por fim a existência aleatória, a terços de rações, quando as havia, dividindo-se um boi por batalhão e um litro de farinha por esquadra; e, como nos maus dias da Favela, as empresas diárias, em que se escalavam corpos para arrebanharem gado.
     Os comboios eram raros e incertos. Chegavam escassos, extraviando-se parte das cargas pelos caminhos. Diante dos expedicionários se levantou de novo, como perigo único, a fome.
     Metidos nos casebres, ou nas tendas por detrás dos morros, ou colados às escarpas das trincheiras, pouco se temiam do jagunço. Os perigos consistiam, exclusivos, nas caçadas, que estes faziam, de incautos que se afastavam dos abrigos. As duas torres da igreja nova lá estavam sobranceiras na altura, como dois mutãs sinistros sobre o exército. E nada escapava à pontaria dos que as guarneciam e que não as abandonavam no maior fragor dos canhoneios. A travessia para a Favela continuava, por isto, perigosa, tornando-se necessário estacionar uma guarda à margem do rio, no ponto em que ia dar o caminho, a fim de impedir que para lá seguissem soldados imprudentes. Naquele ponto recebiam o batismo de fogo os reforços que chegavam: a Brigada Girard a 15 de agosto, reduzida a 892 praças e 56 oficiais; o Batalhão Paulista a 23, com 424 praças e 21 oficiais; o 37.° de Infantaria, que precedera a Divisão Auxiliar, com 205 praças e 16 oficiais, comandado pelo tenente-coronel Firmino Lopes Rego. Os rudes adversários deixavam-nos descer em paz as últimas abas da montanha, timbrando em Ihes fazer no último passo, embaixo, no álveo do rio, uma recepção retumbante e teatral, de tiros, cortada invariavelmente de estrídulos assovios terrivelmente irônicos.
     É que não os assustavam os novos antagonistas. Permaneciam na mesma atitude desafiadora, inamolgáveis. E pareciam disciplinar-se. Correspondiam-se, de um a outro extremo do povoado, ao través do casario, a disparos combinados de bacamartes. Arrojavam-se mais ordenados e seguros nos assaltos. Recebiam, por sua vez, comboios, entrando pelos caminhos da Várzea da Ema, sem que lhos capturasse a tropa assaltante para não desguarnecer as posições ocupadas ou, consideração mais séria, evitar ciladas perigosas. Porque pelas cercanias, derivando invisíveis pelas colinas do norte e dali para Canabrava e Cocorobó, circulando de longe os batalhões, rondavam rápidas colunas volantes de jagunços, das quais havia sinais iniludíveis. Não raro o soldado inexperto, ao avultar sobre um cerro, baqueava atravessado por uma bala, que partia de fora do arraial, das linhas intangíveis daquele outro assédio abarcando a tropa. Os animais de montaria e tração eram muitas vezes espavoridos a tiro, nas pastagens que se alongavam pelas duas margens do rio; e em certo dia de agosto 20 muares da artilharia foram capturados, apesar de estarem sob a guarda de um batalhão aguerrido, o 5.° de Linha, sobre o qual se fez carga da importância da presa.
     Estes incidentes delatavam raro alento entre os rebeldes.
     Não Ihes davam, entretanto, tréguas os assaltantes. Os três Krupps que desde 19 de julho emparcavam sobre a encosta, tendo no sopé a vanguarda do 25.° sobranceando a praça, batiam-nos noite e dia ateando incêndios a custo debelados e arruinando inteiramente a igreja velha, de madeiramento já todo exposto a ressaltar no telhado abatido em parte e em cujo campanário não se compreendia que ainda subisse à tarde o impávido sineiro, tangendo as notas consagradas da Ave - Maria.


O sino da igreja

     Como se não bastasse aquele bombardeio à queima-roupa, descera, a 23 de agosto, do alto da Favela, o Wíthworth. Naquele dia fora ferido o general Barbosa, quando inspecionava a bateria do centro, próxima ao quartel-general da 1.ª coluna. De sorte que a vinda do monstruoso canhão dava oportunidade a revide imediato. Este realizou-se logo ao amanhecer do dia subsequente. E foi, de fato, formidando. A grande peça detonou: viu-se arrebentar, com estrondo, o enorme schrapnel entre as paredes da igreja, esfarelando-lhe o teto, derrubando os restos do campanário e fazendo saltar pelos ares, revoluteando, estridulamento badalando, como se ainda vibrasse um alarma, o velho sino que chamava ao descer das tardes os combatentes para as rezas...


Fuzilaria

     Mas, tirante este incidente, fora perdida a jornada: quebrara-se uma peça do aparelho obturador do canhão fazendo-o emudecer para sempre. Caíram nas linhas de fogo oito soldados, e uma fuzilaria fechada, estupenda, incomparável, entrou pela noite dentro até ao amanhecer. Reatou-se durante o dia, após ligeiro armistício, vitimando mais quatro soldados, que com seis do 26.°, que aproveitando o tumulto desertaram, elevaram a dez as perdas do dia. Continuou no dia 26, abatendo cinco praças; matando quatro, no dia 27; quatro, no dia 28; no dia 29, quatro soldados e um oficial; e assim por diante na mesma escala inflexível, que exauria a tropa.
     As baixas, somando-se diariamente em parcelas pouco díspares, com os claros abertos em todas as fileiras pelos combates anteriores, tinham já, desde meados de agosto, imposto a reorganização das forças rarescentes. Na diminuição que tivera o número de brigadas, passando de sete a cinco, e no descair das graduações dos comandos, percebia-se, apesar dos reforços recém-vindos, o enfraquecimento da expedição.
     Dos vinte batalhões de infantaria que lá estavam — à parte o 5.° Regimento de Artilharia, o 5.° da Polícia Baiana, uma bateria de tiro rápido e um esquadrão de cavalaria —, quinze eram comandados por capitães e duas brigadas por tenentes-coronéis, não descendo o das companhias aos sargentos por ser maior que o destes o número de alferes.
     Breve, porém, a situação mudaria. Canudos teria em torno, em algarismos rigorosamente exatos, trinta batalhões, excluídos os corpos de outras armas.
     Breve, porém, a situação mudaria. Canudos teria em torno, em algarismos rigorosamente exatos, trinta batalhões, excluídos os corpos de outras armas.

continua na página 298...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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