domingo, 16 de novembro de 2025

Crônica: O Lixo

Luis Fernando Veríssimo


     Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

- Bom dia... 
- Bom dia. 
- A senhora é do 610. 
- E o senhor do 612 
- É. 
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente... 
- Pois é... 
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo... 
- O meu quê? 
- O seu lixo. 
- Ah... 
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena... 
- Na verdade sou só eu. 
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata. 
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar... 
- Entendo. 
- A senhora também... 
- Me chame de você. 
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim... 
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra... 
- A senhora... Você não tem família? 
- Tenho, mas não aqui. 
- No Espírito Santo. 
- Como é que você sabe? 
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo. 
- É. Mamãe escreve todas as semanas. 
- Ela é professora? 
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou? 
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora. 
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo. 
- Pois é... 
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado. 
- É. 
- Más notícias? 
- Meu pai. Morreu. 
- Sinto muito. 
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos. 
- Foi por isso que você recomeçou a fumar? 
- Como é que você sabe? 
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. 
- É verdade. Mas consegui parar outra vez. 
- Eu, graças a Deus, nunca fumei. 
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo... 
- Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo? 
- Isso você também descobriu no lixo? 
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel. 
- É, chorei bastante, mas já passou. 
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos... 
- É que eu estou com um pouco de coriza. 
- Ah. 
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. 
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é. 
- Namorada? 
- Não. 
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha. 
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. 
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte. 
- Você já está analisando o meu lixo! 
- Não posso negar que o seu lixo me interessou. 
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia. 
- Não! Você viu meus poemas? 
- Vi e gostei muito. 
- Mas são muito ruins! 
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados. 
- Se eu soubesse que você ia ler... 
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela? 
- Acho que não. Lixo é domínio público. 
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso? 
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que... 
- Ontem, no seu lixo... 
- O quê? 
- Me enganei, ou eram cascas de camarão? 
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei. 
- Eu adoro camarão. 
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... 
- Jantar juntos? 
- É. 
- Não quero dar trabalho. 
- Trabalho nenhum. 
- Vai sujar a sua cozinha? 
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?

VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé. RJ: Objetiva. 2002.






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Luis Fernando Veríssimo (1936 - 2025) foi um escritor gaúcho reconhecido por suas famosas crônicas. Normalmente se utilizando do humor, seus textos curtos trazem histórias que versam sobre o cotidiano e as relações humanas.

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