sábado, 15 de novembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn - Continuação (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn

(continuação)
...
     A essa altura, Naphta pediu licença para dar uma estrondosa gargalhada. Falava-se de um niilismo da Igreja! Do niilismo do sistema de governo mais realista de toda a história universal! O Sr. Settembrini, acaso, nunca sentira o sopro da ironia humana mediante a qual a Igreja constantemente fazia concessões ao mundo e à carne, ocultando, com prudente transigência, as derradeiras consequências do princípio, e deixando reinar o espírito como influência reguladora, sem tratar a natureza com excessivo rigor? Não ouvira tampouco falar desse elegante conceito eclesiástico que era a indulgência, a qual incluía até mesmo um sacramento, o do matrimônio, que, ao contrário dos demais sacramentos, não era um bem positivo, senão apenas uma proteção contra o pecado, outorgada unicamente para restringir os desejos sensuais e a intemperança, de maneira que se conservava o princípio ascético, o ideal da castidade, sem que se opusesse à carne uma severidade pouco política?
     Diante disso, o Sr. Settembrini não podia deixar de protestar contra essa concepção abominável da “política” e contra o gesto presunçoso de condescendência e sisudez que se arrogava o espírito, ou melhor, aquilo que nesse caso se julgava por tal, e que era usado com relação ao seu contrário. Pretendia-se que esse contrário era pejado de culpa e tinha de ser tratado “politicamente”; mas em realidade não precisava daquela indulgência peçonhenta. A seguir, o humanista investiu contra o maldito dualismo de uma interpretação do mundo, que diabolizava o universo, a vida tanto como o seu imaginário oposto, a saber, o espírito. Pois, desde que aquela era ruim, necessariamente o era também este, por ser a mera negação. E ele quebrou lanças em defesa da inocência da volúpia – o que fez Hans Castorp pensar naquele cubículo de humanista, no sótão, com a papeleira, as cadeiras de palha e a garrafa de água. Naphta, por sua vez, afirmou que a volúpia jamais podia ser livre de culpa, e exigiu da natureza que em face do espírito ela sentisse um peso na consciência. Definiu a política eclesiástica e a indulgência do espírito como sendo “o amor”, a fim de refutar o niilismo do princípio ascético (e Hans Castorp teve a impressão de que a palavra “amor” formava um estranho contraste com a cara daquele homem magrinho e sutil que era o pequeno Naphta...).
     A discussão prosseguia nesse tom. Conhecemos o jogo, e também Hans Castorp o conhecia. E nós, como ele, escutamos por alguns instantes, para observar as formas que assumia tal luta peripatética à sombra da personalidade que passeava ao lado dos digladiantes, e de que maneira mal perceptível essa presença emasculava os debates. Era como se uma secreta coação os obrigasse a relacionar-se com ela e apagasse assim a faísca que saltava de um a outro interlocutor; impunha-se a reminiscência daquela sensação de desanimadora falta de vida que experimentamos, quando está interrompida a corrente elétrica. Era mesmo assim. As contradições já não produziam nem crepitação, nem chispas, nem contato; a presença neutralizava o espírito, ao invés de ser neutralizada por ele; Hans Castorp verificou esse fato com surpresa e curiosidade.
     Revolução e conservação! E os olhares fixavam-se em Peeperkorn; via-se como ele avançava a passo lerdo. Não era bom marchador, com o seu andar oscilante para os lados, e com o chapéu desabado na testa. Moviam-se os lábios amplos, irregulares e gretados, e ouvia-se como ele, apontando humoristicamente com a cabeça em direção aos adversários, dizia: “Pois é, pois é... Cerebrum, cerebral; compreendem? Isso é... Nisso se manifesta...” E vejam só: não havia corrente na chave de luz. Os antagonistas faziam nova tentativa; lançavam mão de exorcismos mais fortes; começavam a falar do “problema aristocrático”, da popularidade e da distinção. Não saltava nenhuma faísca. Como por influência magnética, a conversa tomava um caráter pessoal. Vinha então a Hans Castorp a imagem do companheiro de viagem de Clávdia, estendido sobre a cama, debaixo da colcha vermelha, na sua camisola de malha, desprovida de gola, metade operário velho, metade busto de um rei – e numa convulsão débil extinguia-se a vida da discussão. Outras tensões mais fortes! De um lado a negativa, o culto do nada, e do outro o eterno “sim”, a inclinação afetuosa do espírito para a vida! Mas onde ficavam a vida, a chispa, a corrente, quando se encarava Peeperkorn, o que sucedia inevitavelmente, mercê de uma secreta atração? Numa palavra, elas permaneciam ausentes, e isto era, para empregar o termo de Hans, nada mais nada menos que um mistério. Para o seu livro de aforismos podia ele anotar que se deve expressar um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo. Quem fizesse uma vaga tentativa de formulá-lo poderia afirmar exclusiva, mas decididamente, que Pieter Peeperkorn, com sua máscara enrugada de soberano e sua boca dolorosamente gretada, era sempre ambas as coisas, que ambas as coisas se aplicavam à sua pessoa e nela pareciam anuladas a todos os que o viam; era isto e aquilo, um e outro. Pois sim, esse velho estúpido, esse zero majestoso! Ele é que paralisava a energia dos argumentos, não, porém, por meio de confusões e chicanas como Naphta. Peeperkorn não era ambíguo à maneira do jesuíta; era-o de modo totalmente oposto, positivo – ele, esse mistério cambaleante, patentemente ultrapassara os limites não só da estupidez e da argúcia, mas também os de muitos outros binômios, aos quais recorriam Settembrini e Naphta, a fim de produzir a alta tensão necessária para os seus fins pedagógicos. A personalidade – tinha-se essa impressão – carecia de caráter educador, e contudo, quantas oportunidades não oferecia a quem viajava em busca de formação! Que coisa estranha observar essa ambiguidade na figura de um rei, na ocasião em que os digladiantes começavam a falar do casamento e do pecado, do sacramento da indulgência, da culpabilidade e da inocência da volúpia! Peeperkorn inclinava a cabeça para o ombro e o peito; descerravam-se-lhe os lábios doloridos; numa expressão de langoroso lamento fendia-se-lhe a boca, enquanto as narinas se distendiam e alargavam como sob o efeito de alguma dor; as rugas da fronte subiam e os olhos assim dilatados lançavam olhares incertos, cheios de sofrimento; era a imagem perfeita da amargura. Mas, eis que num instante o semblante de mártir se abria, se tornava sensual! A inclinação oblíqua da cabeça modificava o seu sentido, começava a significar malícia; os lábios, ainda entreabertos, esboçavam um sorriso pouco pudico; a covinha de sibarita, que conhecemos em outras ocasiões, ressurgia numa das bochechas; e já estava ali o sacerdote pagão a dançar. Enquanto a cabeça apontava humoristicamente para o lado daqueles homens cerebrais, ouvia-se como ele dizia: “Ah, sim! Pois é, pois é. Perfeitamente. Isto é... Isto são... Nesse caso manifesta se... O sacramento da volúpia; compreendem?...”
     Mas, como já mencionamos, os amigos e mentores de Hans Castorp, embora prejudicados, achavam-se numa situação relativamente favorável, sempre que podiam discutir. Nessas ocasiões estavam no seu elemento, ao passo que o contrário se dava com a “grande envergadura”, e quanto ao papel que Peeperkorn então representava, podia, afinal de contas, haver opiniões diferentes. Era, entretanto, indiscutível que a posição dos dois adversários se tornava menos favorável, quando já não se tratava de engenho, de palavras, de spiritus, senão de objetos reais, de assuntos terrenos, práticos, numa palavra, de questões e de coisas diante das quais uma natureza de soberano costuma ser posta à prova. Quando isso sucedia, estavam liquidados, sumiam-se na sombra, pareciam insignificantes, e Peeperkorn apossava-se do cetro, determinava, resolvia, dava ordens, encomendava, delegava... Não é de admirar que se empenhasse em obter esse estado de coisas e em sair da logomaquia para chegar a ele. Sofria enquanto ele perdurava, ou, pelo menos, quando se prolongava. Mas o que o fazia sofrer não era vaidade; disso Hans Castorp tinha certeza. A vaidade não possui grande envergadura, e a grandeza não é vaidosa. Não, o desejo de realidade que experimentava o holandês brotava de fontes muito diversas: do “medo”, para dizê-lo de forma grosseira e exagerada; daquele senso do dever e daquela mania do pundonor, que Hans Castorp procurara explicar ao Sr. Settembrini e considerara uma espécie de traço militar. 

– Meus senhores – dizia o holandês, erguendo a mão de capitão com as unhas pontudas, num gesto imperioso e insistente. – Muito bem, senhores, perfeitamente, ótimo! A ascese, a indulgência, o prazer dos sentidos. Quanto a isso, eu queria... Absolutamente. Muitíssimo importante! Bem discutível! Mas permitam... Receio que estejamos a ponto de cometer... Esquivamo-nos, senhores, esquivamo-nos de um modo imperdoável ao mais sagrado... – E respirando profundamente acrescentou: – Esse ar, senhores, o ar característico deste dia de Föhn, com sua dose de aroma primaveril, cheio de pressentimentos e de recordações, que delicadamente nos entibia... Não deveríamos aspirá-lo, só para soltá-lo em forma de... Insisto, senhores, não deveríamos fazer isso. É um insulto. É unicamente a ele que se deveria dedicar toda a nossa... a suprema e a mais intensa... Basta, senhores! E o nosso peito que o respira deveria louvar irrestritamente... Detenho-me, senhores, detenho-me em homenagem a esse... – Detinha se; inclinava-se para trás, com o chapéu dando sombra aos olhos, e todos lhe imitavam o exemplo. – Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto negro, no meio desse delicado azul que puxa para o preto... É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina. É, se não me engano muito... Meus senhores, e você, minha filha, é uma águia. É sobre ela que chamo decididamente... Olhem! Isto não é nem gavião nem abutre... Se os senhores fossem tão presbitas como eu, na minha avançada... Pois sim, minha filha, na minha avançada... Meus cabelos são brancos; como não? Bem, os senhores veriam tão nitidamente como eu, pela curva obtusa das asas... Uma águia, senhores. Uma águia real. Diretamente acima de nós descreve os seus círculos. Sem bater as asas adeja em alturas grandiosas por cima das nossas... Decerto nos espia com seus olhos poderosos, que enxergam ao longe, sob os ossos salientes das órbitas... A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um bico de ferro, curvo na ponta, e tem garras de uma força incrível, dobradas para dentro, de maneira que as traseiras, muito compridas, passam por cima das dianteiras como um gancho férreo. Olhem, é assim! – E a mão de capitão com as unhas compridas esforçava-se por representar as garras da águia. – Compadre, por que andas girando e espiando? – continuava, voltando-se para a ave. – Desce! Crava o bico de aço na cabeça e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela criatura que Deus te... Perfeitamente! Basta! Tuas garras devem enredar-se nas entranhas, e o sangue, gotejar do teu bico...

     Falava com entusiasmo. Sumira o interesse dos companheiros pelas antinomias de Naphta e Settembrini. Além disso, a visão da águia continuou influenciando silenciosamente as decisões e as iniciativas que se seguiram, sob a direção de Mynheer. Entraram num restaurante, comeram e beberam, completamente fora de hora, mas com um apetite inflamado pela tácita recordação da águia. Houve um banquete e uma bebedeira daquele tipo que Mynheer frequentemente organizava, também fora do Berghof, onde quer que se encontrassem, em Platz ou na “aldeia”, ou numa estalagem de Glaris ou de Kloters aonde haviam ido num trenzinho de excursão. Sob as suas ordens de soberano, consumiam então dádivas clássicas, como café com creme, acompanhado de pães rústicos, de suculentos queijos e da aromática manteiga dos Alpes, que conservava o mesmo sabor excelente quando servida com castanhas assadas. Tudo isso era regado a vinho tinto de Valtelina, que se tomava à vontade. Peeperkorn temperava os manjares improvisados com grandiosos e abruptos discursos, ou convidava Anton Karlovitch Ferge a falar, esse sofredor bonachão, alheio a quaisquer assuntos sublimes, mas que sabia contar coisas realísticas sobre a fabricação de galochas na Rússia: a massa de borracha era mesclada de enxofre e de outras substâncias, e os sapatos acabados, cobertos de uma camada de verniz, eram “vulcanizados” a uma temperatura de cem graus. Também tratava do círculo polar, onde estivera diversas vezes no decorrer das suas viagens de negócios. O sol da meia-noite e o inverno constante da região do cabo Norte eram descritos em palavras que brotavam da garganta nodosa, de sob o bigode hirsuto. Ali – narrava Ferge – o vapor aparecia minúsculo em confronto com os imensos rochedos e a vastidão do mar azul-ferrete. Zonas amareladas de luz estendiam-se por sobre o céu; a luz da aurora boreal. E tudo isso causara a ele, Anton Karlovitch, uma impressão fantasmagórica, tanto a paisagem como a sua própria presença no meio dela.
     Assim falava o Sr. Ferge, a única personagem do nosso pequeno grupo que se achava fora da rede de relações que ligavam os outros entre si. Quanto a estas relações, porém, convém relatar dois breves diálogos, duas conversas estranhas que, a essa altura dos acontecimentos, o nosso herói pouco heroico manteve com Clávdia Chauchat e com o seu companheiro de viagem, cada qual em separado; uma no vestíbulo, à noite, enquanto o “obstáculo” se achava acamado com febre, no seu quarto, e a outra, de tarde, à cabeceira do leito de Mynheer...
     Àquela noite, o vestíbulo achava-se envolto em penumbra. A costumeira reunião tinha sido breve e pouco animada. Já muito cedo os pensionistas se haviam recolhido aos compartimentos de sacada, para o repouso noturno, exceção feita daqueles que trilhavam caminhos proibidos pelo regulamento, em direção ao “mundo”, onde se dançasse ou jogasse. Uma lâmpada solitária continuava acesa em qualquer parte do teto do recinto abandonado, e também as saletas contíguas estavam quase completamente escuras. Hans Castorp sabia, porém, que Mme. Chauchat, depois de ter jantado sem a companhia do seu senhor, ainda não regressara ao primeiro andar, mas se demorava na sala de leitura. Por esse motivo também ele hesitara em subir. Encontrava-se na parte dos fundos do vestíbulo, um degrau mais alta do que o resto, e separada do recinto principal por alguns arcos brancos, que repousavam sobre pilares forrados de madeira. Estava sentado junto à lareira revestida de azulejos, numa cadeira de balanço igual àquela na qual se embalara Marusja, enquanto Joachim conversava com ela a primeira e única vez. Fumava um cigarro, o que a essa hora era a rigor permitido.
     Ela vinha chegando. Hans Castorp ouviu-lhe os passos, ouviu atrás de si o farfalhar do vestido. Abanando-se com uma carta que segurava num canto, Mme. Chauchat pôs-se ao lado do jovem e disse naquela sua voz de Pribislav: 

– O concierge já se foi. Dê-me um timbre-poste.

     Trajava, àquela noite, um vestido leve, de seda escura, com um decote redondo e com mangas amplas, cujos punhos abotoados se estreitavam em torno dos pulsos. Era um vestido de que Hans Castorp gostava especialmente. Clávdia se adornara com o colar de pérolas que esplendia palidamente no crepúsculo. Ele ergueu os olhos, e fitando o rosto de quirguiz, disse: 

– Timbre? Não tenho. 
– Mas como? Não tem? Tant pis pour vous. Não está preparado para ser útil a uma senhora? – Fez uma careta de desdém e deu de ombros. – Isso me decepciona. Vocês, pelo menos, deveriam ser pessoas eficientes a quem se pudesse sempre recorrer. Eu imaginava que o senhor tivesse, numa repartição da sua carteira, uns blocos bem dobrados de todos os tipos de selos, classificados segundo os valores. 
– Não. Para quê? – respondeu ele. – Nunca escrevo cartas. A quem as dirigiria? Às vezes, mas só raramente, mando um cartão-postal que já se compra selado. A quem poderia eu remeter uma carta? Não tenho mais nenhuma relação com a planície. Perdi o contato. No nosso cancioneiro popular temos uma canção que diz: “Estou perdido para o mundo”. É o meu caso. 
– Bem, então dê-me um cigarro, seu homem perdido – disse ela. Sentou-se à sua frente, ao pé da lareira, num banquinho coberto com uma almofada. Cruzou as pernas e estendeu uma das mãos. – Parece que o senhor tem. – E displicentemente, sem dizer “obrigada”, tirou da caixinha de prata o cigarro que Hans Castorp lhe oferecia, e do mesmo modo serviu-se do isqueiro dele, cuja chama se levantava próxima do seu rosto inclinado para a frente. Na indolência desse “dê-me” e nesse jeito de aceitar sem agradecer revelaram-se a incúria da mulher mimada e, ao mesmo tempo, o senso da camaradagem humana e da propriedade comum, a naturalidade enérgica e todavia meiga dos atos de dar e de receber. Hans Castorp criticou essa atitude na sua alma amorosa. Depois disse em voz alta: 

– Sim, cigarros tenho sempre. Realmente, nunca deixo de andar munido deles. É coisa que se precisa ter. Como seria possível passar sem fumar? Isso se chama uma paixão, não é? Francamente, não sou um homem passional, mas tenho algumas paixões, paixões fleumáticas. 
– Tranquiliza-me extraordinariamente – disse ela, soltando, ao falar, uma baforada – saber que o senhor não é homem passional. Aliás, como poderia ser? Do contrário, o senhor seria diferente dos outros da sua espécie. Paixão é viver por amor à vida. Mas é coisa sabida que vocês vivem por amor à experiência. Paixão significa esquecer-se de si próprio. Mas tudo o que vocês desejam é enriquecer. C’est ça. E o senhor absolutamente não se dá conta de que isso constitui um egoísmo abominável que um dia fará de vocês os inimigos da humanidade? 
– Ora, ora! Logo os inimigos da humanidade? Que é que dizes aí, Clávdia, de uma forma tão generalizada? Em que coisas concretas e pessoais estás pensando, ao afirmar que nós não nos empenhamos em viver, mas só em enriquecer? Vocês, mulheres, não costumam pregar moral assim a esmo. Ah, essa história da moral! Isto é antes um tema de discussão para Naphta e Settembrini. Isso nos leva ao terreno da grande confusão. Nem a própria pessoa sabe se vive por amor a si própria ou por amor à vida, e ninguém pode dizê-lo com precisão e com certeza. Eu acho que os limites são móveis. Existe uma abnegação egoística e um egoísmo abnegado... Creio que é mais ou menos a mesma coisa como no caso do amor. Indiscutivelmente é contrário à moral que eu seja incapaz de prestar atenção ao que me dizes a respeito dela, mas me sinto antes de mais nada feliz por estarmos reunidos, assim como nos achamos uma única vez, e como nunca nos encontramos desde o teu regresso. E que eu te possa dizer que esses punhos justos te assentam às mil maravilhas, e essa seda transparente que flutua ampla ao redor dos teus braços... desses braços que eu conheço... 
– Já me vou. 
– Não vás, por favor! Terei em consideração as circunstâncias e as personalidades. 
– É o menos que se pode esperar de um homem sem paixão. 
– Estás vendo? Fazes troça de mim e ralhas comigo, se eu... E queres ir embora, quando eu... 
– Rogo-lhe o favor de falar de forma menos incoerente, se quiser ser compreendido. 
– Então não poderei tirar nenhum proveito da habilidade que tens em adivinhar incoerências? É injusto, diria eu, se não compreendesse que aqui não se trata de justiça... 
– Não, senhor. A justiça é uma paixão fleumática. Ao contrário do ciúme, que torna inevitavelmente ridículas as pessoas fleumáticas. 
– Estás vendo? Ridículas. Então tolera a minha fleuma. Repito: como poderia eu passar sem ela? Sem ela, como poderia ter suportado essa espera? 
– Como disse?! 
– Essa espera por ti. 
Voyons, mon ami. Não quero perder tempo criticando a forma de tratamento de que o senhor, com uma obstinação absurda, se serve para comigo. Acho que há de se cansar disso, e eu, afinal de contas, não me ofendo facilmente, não sou nenhuma burguesa indignada... 
– Não, porque estás enferma. A doença te confere a liberdade. Torna-te... Espera, agora me ocorre uma palavra que nunca ainda empreguei: torna-te genial! 
– Deixemos a genialidade para outra ocasião! Não era isso o que eu queria dizer. Exijo uma única coisa. Não pretenda que eu, de uma forma ou outra, seja culpada da sua espera, se é que realmente esperou; que haja sido encorajado por mim para tal atitude, ou apenas que eu o tenha autorizado a agir assim. O senhor deve admitir, sem rodeios, que se deu precisamente o contrário... 
– Com muito prazer, Clávdia. Como não! Não me mandaste esperar. Esperei por livre e espontânea vontade. Compreendo perfeitamente que ligues importância a isso... 
– Até as suas concessões têm qualquer coisa de impertinente. Geralmente falando, o senhor é homem impertinente, sabe Deus por quê. Não só nas suas relações comigo, mas também noutras circunstâncias. Mesmo na sua admiração e na sua humildade há algo de impertinente. Não pense que não percebo! Nem me convém falar com o senhor, de uma vez por todas, por causa da sua impertinência e também porque se atreve a me falar da sua espera. É imperdoável que ainda se encontre aqui. Há muito tempo que deveria ter voltado para o seu trabalho, sur le chantier, ou onde quer que fosse... 
– Agora estás falando sem genialidade e de modo totalmente convencional, Clávdia. Isso não passa de um lugar-comum. Tu não podes ter a mesma opinião que Settembrini, e que outro sentido poderiam ter as tuas palavras? Tu as disseste sem pensar; não as posso levar a sério. Eu não partirei “em falso” como o coitado do meu primo, que morreu, assim como previste, quando tentava cumprir o seu dever na planície. Talvez soubesse que morreria, mas preferiu a morte ao regime do tratamento. Muito bem, para isso era soldado. Mas eu não sou; sou civil. No meu caso seria deserção se me comportasse como ele e fizesse questão, apesar dá proibição de Radamanto, de me dedicar lá embaixo ao progresso e a outras coisas úteis. Isso seria a mais profunda das ingratidões e a maior infidelidade para com a doença e o gênio, e também para com o meu amor a ti, do qual tenho cicatrizes antigas e feridas recentes, e para com os teus braços que conheço, se bem que deva admitir que foi apenas num sonho, num sonho genial, que travei conhecimento com eles, de maneira que daí não resulta, naturalmente, para ti nenhuma consequência, nenhum compromisso, nenhuma restrição da liberdade...

continua pág 391...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn - Continuação (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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