quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(2)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção VII

DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA

SEGUNDA PARTE

     Mas apressemo-nos a concluir esta argumentação, que já se tem feito demasiado extensa. Temos procurado em vão uma ideia de poder ou de conexão necessária em todas as fontes de onde pudesse originar. Parece que em casos isolados da atividade dos corpos não podemos jamais, pelo exame mais escrupuloso, descobrir outra coisa a não ser um evento acompanhando outro, sem que sejamos capazes de apreender a força ou o poder que faz agir a causa, ou alguma conexão entre ela e seu suposto efeito. A mesma dificuldade ocorre quando se consideram as atividades do espírito sobre o corpo, nas quais notamos que o movimento do último segue a vontade do primeiro, mas não somos capazes de vislumbrar, ou conceder o laço que liga o movimento e a vontade, ou a energia pela qual o espírito produz o seu efeito. A autoridade da vontade sobre suas próprias faculdades e ideias não é nem um pouco mais compreensível. De modo que, resumindo, não aparece, em toda a natureza, um único exemplo de conexão passível de nossa concepção. Todos os eventos parecem inteiramente soltos e separados. Um evento segue outro, porém jamais podemos observar um laço entre eles. Parecem estar em conjunção, mas jamais em conexão. E como não podemos jamais formar ideia de uma coisa que nunca se revelou aos nossos sentidos externos ou sentido interno, a conclusão necessária parece ser que não temos, definitivamente, ideia de conexão ou de poder, e que estes termos nada significam quando utilizados nos raciocínios filosóficos ou na vida diária.
     Entretanto, resta ainda um método para evitar esta conclusão, e uma fonte que ainda não examinamos. Quando um objeto ou evento natural se revela, não há sagacidade ou penetração que nos permita descobrir, ou mesmo conjeturar, sem o auxílio da experiência, qual evento resultará dele ou de levar-nos a antever além do objeto presente imediatamente à memória e aos sentidos. Mesmo depois de averiguarmos que num caso ou experimento um evento específico acompanha outro, não julgamos lícito formular uma regra geral ou predizer o que ocorrerá em situações análogas, pois seria temeridade imperdoável julgar de todo o curso da natureza partindo de um único experimento, por mais exato e seguro que fosse. Mas quando determinada espécie de eventos se mostra sempre e em todas as situações conjuntada a outra, não sentimos escrúpulos de predizer um ao surgir o outro, utilizando-nos, pois, do único tipo de raciocínio que pode assegurar-nos sobre as questões de fato e de existência. Denominamos, então, um dos objetos causa e o outro efeito. Supomos que há alguma conexão entre eles; algum poder em um deles pelo qual infalivelmente produz o outro e atua com a máxima certeza e a mais forte necessidade. 
     Parece, pois, que a ideia de uma conexão necessária entre os eventos surge de vários casos semelhantes em que ocorre a conjunção constante destes eventos; já que nenhum destes casos pode nos suscitar esta ideia, embora fossem examinados sob todos os ângulos e posições possíveis. No entanto, apesar de não haver em determinado número de casos algo a diferenciá-lo de um caso singular — suposto exatamente semelhante aos outros — destacamos apenas que, depois da repetição de casos semelhantes, o espírito é impelido pelo hábito, devido à aparição de um evento, a aguardar aquele que usualmente o acompanha e em acreditar em sua existência. Portanto, esta conexão que sentimos no espírito, esta transição costumeira da imaginação de um objeto para o seu acompanhante usual, é o sentimento ou a impressão que origina a ideia de poder ou de conexão necessária. Não há nada a mais na ocorrência. Considerai o assunto de todos os ângulos, jamais encontrareis outra origem desta ideia. Eis a única diferença entre um caso singular, do qual jamais podemos inferir a ideia de conexão, e vários casos semelhantes originando esta ideia. Uma pessoa que observa pela primeira vez, por exemplo, o movimento comunicado pelo impulso quando duas bolas se chocam não poderia afirmar que os eventos estavam em conexão, apenas poderia asseverar que entre eles havia conjunção. Observando em seguida vários exemplos de natureza semelhante, poderia então concluir afirmando que os fatos estão em conexão. Que tipo de alteração ocorreu originando esta nova ideia de conexão? Nenhuma, exceto que agora ela sente que estes eventos estão em conexão em sua imaginação, podendo facilmente antever a existência de um pelo aparecimento do outro. Afirmando, portanto, que um objeto está em conexão com outro, apenas queremos dizer que estes objetos têm adquirido uma conexão em nosso pensamento e provocam a inferência através da qual se chega a comprovar a existência de outro: conclusão um tanto extraordinária, porém baseada em número suficiente de evidências. Esta evidência não será enfraquecida tanto pela desconfiança total em relação ao entendimento como pelas dúvidas céticas levantadas contra toda conclusão nova e extraordinária. Nenhuma conclusão agrada mais ao ceticismo do que a que revela a debilidade e estreiteza da esfera racional e das capacidades humanas.  
     Que exemplo é mais poderoso do que o presente para mostrar a surpreendente ignorância e debilidade do entendimento? De fato, porque, se há alguma relação entre os objetos que visamos a apreender com perfeição, é aquela de causa e efeito. Nela se fundamentam todos os nossos raciocínios sobre as questões de fato ou de existência. Apenas por meio desta relação podemos ter alguma segurança sobre os objetos distanciados do atual testemunho de nossa memória e dos sentidos. Esclarecer-nos como controlar e regular os eventos futuros através de suas causas é a única e imediata utilidade de todas as ciências. Portanto, nossos pensamentos e inquirições convergem em todo momento para esta relação, embora as ideias que formamos a seu respeito sejam tão imperfeitas que é impossível definir com exatidão a causa, a não ser aquela derivada de algo que lhe é exterior e alheio. Objetos semelhantes sempre estão conjuntados a objetos semelhantes. Disto temos experiência. De acordo com esta experiência, portanto, podemos definir uma causa como um objeto seguido por outro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos de objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras: se o primeiro objeto não houvesse existido, o segundo nunca haveria existido. A aparição de uma causa sempre faz convergir o espírito, por uma transição costumeira, à ideia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos, pois, de acordo com esta experiência, formular uma outra definição de causa e denominá-la um objeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre para aquele outro.[1] Embora estas duas definições sejam formuladas de circunstâncias alheias à causa, não podemos remediar este inconveniente ou elaborar definição mais perfeita que possa indicar na causa a circunstância que lhe dá uma conexão com seu efeito. Não temos nenhuma noção desta conexão, nem mesmo nenhuma ideia distinta da natureza daquilo que desejamos saber, quando nos esforçamos em concebê-la. Dizemos, por exemplo, que a vibração desta corda é a causa deste som particular. Mas, o que queremos dizer com esta afirmação? Ou queremos dizer que esta vibração é seguida deste som e que todas as vibrações semelhantes têm sido acompanhadas de sons semelhantes, ou que esta vibração é seguida deste som, e que, pela aparição de uma, o espírito se antecipa aos sentidos e forma imediatamente a ideia da outra. Podemos considerar a relação de causa e efeito em quaisquer destas duas maneiras; mas além dessas não temos ideia dela.[2]
     Recapitulemos, portanto, os raciocínios desta seção: toda ideia é copiada de uma impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemos localizar a impressão, podemos assegurar-nos de que não há ideia. Em todos os casos isolados da atividade dos corpos ou espíritos, não há nada que produza uma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir uma ideia de poder ou de conexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes, e o mesmo objeto é sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção de causa e de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou seja, uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objeto e o seu acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da ideia que procuramos.[3] Com efeito, como esta ideia nasce de vários casos semelhantes, e não de um caso isolado, ela deve nascer da circunstância que faz diferir vários casos de cada caso individual. Ora, esta conexão ou transição costumeira da imaginação é a única circunstância que os faz diferir. Em todos os outros aspectos eles são semelhantes. O primeiro caso que vimos do movimento comunicado pelo choque de duas bolas de bilhar — para retomar este exemplo evidente — é exatamente semelhante a não importa que caso que pode, no presente, se apresentar a nós; excetuando apenas que, a princípio, não podíamos inferir um evento do outro, o que somos capazes de fazer agora, depois de tão extensa série de experiências uniformes. Não sei se o leitor apreenderá facilmente este raciocínio. Temeria tomá-lo mais obscuro e complicado se multiplicasse as palavras e o considerasse sob vários aspectos. Em todos os raciocínios abstratos há um ponto de vista que, se afortunadamente o alcançamos, nos ilustra mais acerca do assunto que mediante toda a eloquência do mundo. Devemos aspirar a este ponto de vista e reservar os floreios da retórica para oportunidade mais adequada.

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Notas:
[1] É provável que as duas definições de causa sejam alternativas baseadas em “distintos pontos de vista acerca de um mesmo objeto” (Tratado, I, iii, XIV, p. 170), ou seja, podemos entender a relação de causa e efeito como “relação filosófica e como relação natural; ou como comparação de ideias, ou como associação entre elas [isto é, ideias]”(Idem). Julgamos que a primeira definição de causa pode ser classificada como uma relação filosófica: trata-se de uma conjunção constante entre eventos, ou classes de eventos, inteiramente separados de qualquer processo associativo. Enquanto isso, a segunda definição é uma relação natural: fundamenta-se em relações de ideias unidas pelos princípios associativos do entendimento humano. (vejam-se de Flew, ob. cit ., p. 120, e de Robinson, “Hume’s Two Defiitions of Cause”, pp. 143-4, in Hume, A Collecion of critical Essays, ed. Chappel, 1966) [N. do T.]
[2] Segundo estas explicações e definições, a ideia de poder é tão relativa como a de causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outro evento unido constantemente ao primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e determina o grau e a quantidade de seu efeito, denominamo-la seu poder. E é do consenso geral entre os filósofos que o efeito é a medida do poder. Mas se eles tivessem uma ideia de poder, tal como é e em si mesmo, por que não poderiam medi-lo por si mesmo? Discutir para saber se a força de um corpo em movimento é proporcional à sua velocidade ou ao quadrado de sua velocidade não conduziria a nada se apenas se comparassem os efeitos em tempos iguais ou desiguais, mas, sim, mediante medida e comparação diretas.
     A frequência com que se usam termos como “força”, “poder”, “energia” etc., em todos os momentos da vida diária e em filosofia, não é uma prova que conhecemos em quaisquer dos casos o princípio de conexão entre a causa e o efeito ou que podemos dar uma explicação conclusiva da produção de uma coisa pela outra. Estes termos — tais como são geralmente empregados — têm sentido muito vago e suas ideias são bastante incertas e confusas. Nenhum ser animado pode mover corpos externos sem o sentimento do nisus ou de um esforço, e todo ser animado tem um sentimento ou sensação de uma batida ou do choque de um corpo externo em movimento. Estas sensações, meramente animais e das quais jamais podemos inferir algo a priori, podem ser transferidas por nós a objetos inanimados e supô-los dotados de tais sensações, quer quando recebem ou comunicam o movimento. Com referência às energias que se exercem sem que nós lhes anexemos a ideia de comunicação de um movimento, consideramos apenas a conjunção constante dos eventos que experienciamos; como sentimos uma conexão costumeira entre as ideias, transferimos este sentimento aos objetos, pois não há nada mais usual do que aplicar aos corpos externos toda sensação interna por eles ocasionada (Hume).
[3] Esta passagem enquadra-se harmoniosamente com a análise da inferência causal e a origem da crença, como também indica que a nova impressão, fonte da ideia de conexão necessária, é ocasionada pelo mesmo tipo de associação habitual. [N. do T.]
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(2)

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