David Hume
Seção VII
DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA
SEGUNDA PARTE
Entretanto, resta ainda um método para evitar esta conclusão, e uma fonte que ainda
não examinamos. Quando um objeto ou evento natural se revela, não há sagacidade ou
penetração que nos permita descobrir, ou mesmo conjeturar, sem o auxílio da experiência,
qual evento resultará dele ou de levar-nos a antever além do objeto presente imediatamente à
memória e aos sentidos. Mesmo depois de averiguarmos que num caso ou experimento um
evento específico acompanha outro, não julgamos lícito formular uma regra geral ou predizer
o que ocorrerá em situações análogas, pois seria temeridade imperdoável julgar de todo o
curso da natureza partindo de um único experimento, por mais exato e seguro que fosse. Mas
quando determinada espécie de eventos se mostra sempre e em todas as situações conjuntada
a outra, não sentimos escrúpulos de predizer um ao surgir o outro, utilizando-nos, pois, do
único tipo de raciocínio que pode assegurar-nos sobre as questões de fato e de existência.
Denominamos, então, um dos objetos causa e o outro efeito. Supomos que há alguma
conexão entre eles; algum poder em um deles pelo qual infalivelmente produz o outro e atua
com a máxima certeza e a mais forte necessidade.
Parece, pois, que a ideia de uma conexão necessária entre os eventos surge de vários
casos semelhantes em que ocorre a conjunção constante destes eventos; já que nenhum destes
casos pode nos suscitar esta ideia, embora fossem examinados sob todos os ângulos e
posições possíveis. No entanto, apesar de não haver em determinado número de casos algo a
diferenciá-lo de um caso singular — suposto exatamente semelhante aos outros —
destacamos apenas que, depois da repetição de casos semelhantes, o espírito é impelido pelo
hábito, devido à aparição de um evento, a aguardar aquele que usualmente o acompanha e em
acreditar em sua existência. Portanto, esta conexão que sentimos no espírito, esta transição
costumeira da imaginação de um objeto para o seu acompanhante usual, é o sentimento ou a
impressão que origina a ideia de poder ou de conexão necessária. Não há nada a mais na
ocorrência. Considerai o assunto de todos os ângulos, jamais encontrareis outra origem desta
ideia. Eis a única diferença entre um caso singular, do qual jamais podemos inferir a ideia de
conexão, e vários casos semelhantes originando esta ideia. Uma pessoa que observa pela
primeira vez, por exemplo, o movimento comunicado pelo impulso quando duas bolas se
chocam não poderia afirmar que os eventos estavam em conexão, apenas poderia asseverar
que entre eles havia conjunção. Observando em seguida vários exemplos de natureza
semelhante, poderia então concluir afirmando que os fatos estão em conexão. Que tipo de
alteração ocorreu originando esta nova ideia de conexão? Nenhuma, exceto que agora ela
sente que estes eventos estão em conexão em sua imaginação, podendo facilmente antever a
existência de um pelo aparecimento do outro. Afirmando, portanto, que um objeto está em
conexão com outro, apenas queremos dizer que estes objetos têm adquirido uma conexão em
nosso pensamento e provocam a inferência através da qual se chega a comprovar a existência
de outro: conclusão um tanto extraordinária, porém baseada em número suficiente de
evidências. Esta evidência não será enfraquecida tanto pela desconfiança total em relação ao
entendimento como pelas dúvidas céticas levantadas contra toda conclusão nova e
extraordinária. Nenhuma conclusão agrada mais ao ceticismo do que a que revela a
debilidade e estreiteza da esfera racional e das capacidades humanas.
Que exemplo é mais poderoso do que o presente para mostrar a surpreendente
ignorância e debilidade do entendimento? De fato, porque, se há alguma relação entre os
objetos que visamos a apreender com perfeição, é aquela de causa e efeito. Nela se
fundamentam todos os nossos raciocínios sobre as questões de fato ou de existência. Apenas
por meio desta relação podemos ter alguma segurança sobre os objetos distanciados do atual
testemunho de nossa memória e dos sentidos. Esclarecer-nos como controlar e regular os
eventos futuros através de suas causas é a única e imediata utilidade de todas as ciências.
Portanto, nossos pensamentos e inquirições convergem em todo momento para esta relação,
embora as ideias que formamos a seu respeito sejam tão imperfeitas que é impossível definir
com exatidão a causa, a não ser aquela derivada de algo que lhe é exterior e alheio. Objetos
semelhantes sempre estão conjuntados a objetos semelhantes. Disto temos experiência. De
acordo com esta experiência, portanto, podemos definir uma causa como um objeto seguido
por outro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos de objetos
semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras: se o primeiro objeto não houvesse existido,
o segundo nunca haveria existido. A aparição de uma causa sempre faz convergir o espírito,
por uma transição costumeira, à ideia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos,
pois, de acordo com esta experiência, formular uma outra definição de causa e denominá-la
um objeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre para aquele
outro.[1] Embora estas duas definições sejam formuladas de circunstâncias alheias à causa, não
podemos remediar este inconveniente ou elaborar definição mais perfeita que possa indicar
na causa a circunstância que lhe dá uma conexão com seu efeito. Não temos nenhuma noção
desta conexão, nem mesmo nenhuma ideia distinta da natureza daquilo que desejamos saber,
quando nos esforçamos em concebê-la. Dizemos, por exemplo, que a vibração desta corda é a
causa deste som particular. Mas, o que queremos dizer com esta afirmação? Ou queremos
dizer que esta vibração é seguida deste som e que todas as vibrações semelhantes têm sido
acompanhadas de sons semelhantes, ou que esta vibração é seguida deste som, e que, pela
aparição de uma, o espírito se antecipa aos sentidos e forma imediatamente a ideia da outra.
Podemos considerar a relação de causa e efeito em quaisquer destas duas maneiras; mas além
dessas não temos ideia dela.[2]
Recapitulemos, portanto, os raciocínios desta seção: toda ideia é copiada de uma
impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemos localizar a impressão, podemos
assegurar-nos de que não há ideia. Em todos os casos isolados da atividade dos corpos ou
espíritos, não há nada que produza uma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir
uma ideia de poder ou de conexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes,
e o mesmo objeto é sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção
de causa e de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou seja,
uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objeto e o seu
acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da ideia que procuramos.[3] Com efeito,
como esta ideia nasce de vários casos semelhantes, e não de um caso isolado, ela deve nascer
da circunstância que faz diferir vários casos de cada caso individual. Ora, esta conexão ou
transição costumeira da imaginação é a única circunstância que os faz diferir. Em todos os
outros aspectos eles são semelhantes. O primeiro caso que vimos do movimento comunicado
pelo choque de duas bolas de bilhar — para retomar este exemplo evidente — é exatamente
semelhante a não importa que caso que pode, no presente, se apresentar a nós; excetuando
apenas que, a princípio, não podíamos inferir um evento do outro, o que somos capazes de
fazer agora, depois de tão extensa série de experiências uniformes. Não sei se o leitor
apreenderá facilmente este raciocínio. Temeria tomá-lo mais obscuro e complicado se
multiplicasse as palavras e o considerasse sob vários aspectos. Em todos os raciocínios
abstratos há um ponto de vista que, se afortunadamente o alcançamos, nos ilustra mais acerca
do assunto que mediante toda a eloquência do mundo. Devemos aspirar a este ponto de vista
e reservar os floreios da retórica para oportunidade mais adequada.
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(1)
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Notas:
[1] É provável que as duas definições de causa sejam alternativas baseadas em “distintos
pontos de vista acerca de um mesmo objeto” (Tratado, I, iii, XIV, p. 170), ou seja, podemos
entender a relação de causa e efeito como “relação filosófica e como relação natural; ou
como comparação de ideias, ou como associação entre elas [isto é, ideias]”(Idem). Julgamos
que a primeira definição de causa pode ser classificada como uma relação filosófica: trata-se
de uma conjunção constante entre eventos, ou classes de eventos, inteiramente separados de
qualquer processo associativo. Enquanto isso, a segunda definição é uma relação natural:
fundamenta-se em relações de ideias unidas pelos princípios associativos do entendimento
humano. (vejam-se de Flew, ob. cit ., p. 120, e de Robinson, “Hume’s Two Defiitions of
Cause”, pp. 143-4, in Hume, A Collecion of critical Essays, ed. Chappel, 1966) [N. do T.]
[2] Segundo estas explicações e definições, a ideia de poder é tão relativa como a de
causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outro evento unido constantemente ao
primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e
determina o grau e a quantidade de seu efeito, denominamo-la seu poder. E é do consenso
geral entre os filósofos que o efeito é a medida do poder. Mas se eles tivessem uma ideia de
poder, tal como é e em si mesmo, por que não poderiam medi-lo por si mesmo? Discutir para
saber se a força de um corpo em movimento é proporcional à sua velocidade ou ao quadrado
de sua velocidade não conduziria a nada se apenas se comparassem os efeitos em tempos
iguais ou desiguais, mas, sim, mediante medida e comparação diretas.
A frequência com que se usam termos como “força”, “poder”, “energia” etc., em
todos os momentos da vida diária e em filosofia, não é uma prova que conhecemos em
quaisquer dos casos o princípio de conexão entre a causa e o efeito ou que podemos dar uma
explicação conclusiva da produção de uma coisa pela outra. Estes termos — tais como são
geralmente empregados — têm sentido muito vago e suas ideias são bastante incertas e
confusas. Nenhum ser animado pode mover corpos externos sem o sentimento do nisus ou de
um esforço, e todo ser animado tem um sentimento ou sensação de uma batida ou do choque
de um corpo externo em movimento. Estas sensações, meramente animais e das quais jamais
podemos inferir algo a priori, podem ser transferidas por nós a objetos inanimados e supô-los
dotados de tais sensações, quer quando recebem ou comunicam o movimento. Com
referência às energias que se exercem sem que nós lhes anexemos a ideia de comunicação de
um movimento, consideramos apenas a conjunção constante dos eventos que experienciamos;
como sentimos uma conexão costumeira entre as ideias, transferimos este sentimento aos
objetos, pois não há nada mais usual do que aplicar aos corpos externos toda sensação interna
por eles ocasionada (Hume).
[3] Esta passagem enquadra-se harmoniosamente com a análise da inferência causal e a
origem da crença, como também indica que a nova impressão, fonte da ideia de conexão
necessária, é ocasionada pelo mesmo tipo de associação habitual. [N. do T.]
continua página 57...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(2)
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