volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Como era a primeira vez que saía, muitos criados que ainda não me conheciam me olharam com curiosidade. Na própria entrada do hotel, um jovem groom tirou o boné para me saudar, recolocando-o com presteza. Acreditei que Aimé, segundo sua própria expressão, lhe "passara a senha" para que me cumprimentasse. Mas no mesmo instante percebi que o tirava novamente para outra pessoa que chegava. A verdade era que aquele rapaz não sabia fazer outra coisa na vida senão tirar e pôr o boné, e o fazia extremamente bem. Tendo compreendido que era incapaz de outra coisa e que excedia naquilo, cumpria-o o maior número possível de vezes por dia, o que lhe valia da parte dos hóspedes uma simpatia discreta mas generalizada, uma grande simpatia igualmente da parte do porteiro a quem incumbia o trabalho de contratar os grooms, e que, até achar esse pássaro raro, não pudera encontrar um só que não despedisse em menos de oito dias, para grande espanto de Aimé, que dizia:
- No entanto, nesse ofício só se exige que sejam corteses, não deveria ser tão difícil. -
O gerente também fazia questão de que tivesse o que ele chamava uma bela "presença",
querendo dizer que ali permanecessem, ou porque se referisse mesmo a uma boa “presença."
O aspecto do gramado que se estendia por detrás do hotel fora modificado pela criação de
algumas platibandas floridas e a retirada não só de um arbusto exótico, mas também do groom
que, naquele primeiro ano, decorava exteriormente a entrada com o tronco flexível do seu talhe e
o colorido curioso de sua cabeleira. Havia seguido uma condessa polonesa que o tomara como
secretário, nisso imitando seus dois irmãos mais velhos e a irmã datilógrafa, arrancados ao hotel
por personalidades de regiões e sexos diversos, que haviam se encantado com o charme deles.
Permanecia apenas o irmão caçula ninguém queria por ser estrábico. Sentia-se muito feliz quando
a polonesa e os protetores dos outros dois vinham passar algum tempo hotel de Balbec. Pois,
apesar de invejar os irmãos, amava-os e podia durante algumas semanas, cultivar sentimentos de
família.
A abadessa Fontevrault não tinha por acaso o hábito, deixando as suas monjas
compartilhar a hospitalidade que Luís XIV oferecia àquela outra Mortemantf, amante, à Sra. de
Montespan? Quanto a ele, era o primeiro ano em Balbec; ainda não me conhecia, mas, tendo
ouvido seus companheiros mais antigos, quando me diziam a palavra senhor, acrescentar-lhe ao
nome, imitou-os desde a primeira vez com ar de satisfação, fosse para manifestar o seu
conhecimento relativamente a uma personalidade, que julguei conhecida; fosse para se conformar
a um uso que ignorava cinco minutos antes; mas, ao qual lhe parecia indispensável não faltar. Eu
compreendi muito bem o encanto que aquele grande palácio poderia oferecer às pessoas. Estava
erguido como um teatro, e um compartimento que animava até a curvatura da abóbada. Ainda que
o hóspede não fosse uma espécie de espectador, estava permanentemente mesclado ao
espetáculo; não apenas como nesses teatros em que os atores representem uma cena na plateia;
mas, como se a vida do espectador se desenrolasse em meio às suntuosidades da cena. O
jogador de tênis podia regressar; o casaco de flanela branca, que o porteiro teria vestido; a
casaca azul, com gola de prata para lhe dar a correspondência. Se este jogador de tênis não
desejava subir a pé, nem por isto estava menos misturado aos atores, tendo ao seu lado, para
acionar o elevador, o ascensorista também ricamente uniformizado. Os corredores dos andares
entremostravam uma fuga de camareiras e mensageiras, belas de encontro ao mar como o friso
das Panatenifdb, e até aos seus quartinhos aonde chegavam por sábios desvios os
apresentadores da beleza feminina ancila. Embaixo, dominava o elemento masculino, fazendo
desse hotel, devido à extrema e ociosa juventude dos empregados, como que uma espécie de
tragédia judeu-cristã que se encorpasse fosse perpetuamente representada. Assim, não podia
deixar de dizer aos mesmos, ao vê-los, não certamente os versos de Racine que me vieram ao
espírito na casa da princesa de Guermantes, enquanto o Sr. de Vaugoubest contemplava os
jovens secretários da embaixada que saudavam o Sr. de Charlus, porém outros versos do mesmo
Racine, desta vez não de Esther, mas de Athalie; pois desde o hall, o que no século XVII se
chamava Pórticos, mantinha-se "um povo florescente" de jovens grooms, especialmente à hora
das refeições, como os jovens israelitas dos coros de Racine. Não creio que um só deles pudesse
dar sequer a vaga resposta que Jonas encontra para Atália, quando esta indaga ao príncipe
menino:
"Qual é, pois, o seu emprego?", visto não terem nenhum. Quando muito, se perguntassem
a qualquer deles, como a velha rainha:
“Mas de que se ocupa toda essa gente encerrada neste lugar?" -poderia ter dito:
"Vejo a ordem pomposa destas cerimônias e para elas contribuo."
Às vezes, uma das jovens figurantes caminhava na direção de algum personagem mais
importante, porém logo essa jovem beldade voltava para o coro e, a menos que não fosse o
instante de uma pausa contemplativa, todos entrelaçavam suas evoluções inúteis, respeitosas,
decorativas e cotidianas. Pois, a não ser em seus "dias de folga", longe do mundo educado e não
franqueando o vestíbulo, levavam a mesma existência eclesiástica dos levitas em Athalie, e diante
desse "grupo jovem e fiel"," representando ao pé dos degraus cobertos de magníficos tapetes, eu
podia indagar-me se penetrava no Grande Hotel de Balbec ou no templo de Salomão.
Subia diretamente para o quarto. Meus pensamentos estavam ligados habitualmente aos
últimos dias da enfermidade de minha avó, a seus sofrimentos, que eu revivia, acrescentando-lhes
esse elemento, ainda mais difícil de suportar que o próprio sofrimento alheio e aos quais é
ajuntado por nossa piedade cruel; quando julgamos estar apenas recriando as dores de um ser
querido, nossa piedade as exagera; mas talvez seja ela que detenha a verdade, mais do que a
consciência que têm dessas dores aqueles que as sofrem, e aos quais é oculta essa tristeza de
suas vidas, que a piedade vê e com que se desespera. Todavia, a minha piedade teria, num novo
impulso, ultrapassado os sofrimentos de minha avó se eu então tivesse sabido aquilo que ignorei
por muito tempo; que, na véspera de sua morte, num instante de consciência e assegurando-se
de que eu não me achava ali, ela pegara a mão de mamãe e, depois de lhe ter colado os lábios
febris, lhe dissera:
"Adeus, minha filha, adeus para sempre."
Talvez também seja essa lembrança que minha mãe nunca mais deixou de encarar tão
fixamente. Depois, voltavam-me as doces recordações. Ela era a minha avó e eu o seu neto. As
expressões de sua fisionomia pareciam escritas só para mim; ela estava em toda a minha vida, os
outros só existiam relativamente a ela, no julgamento que ela me fazia a seu respeito; mas nossas
relações foram por demais fugidias para não terem sido acidentes. Ela já não me conhece, eu
jamais voltarei a vê-la. Não tínhamos sido quase exclusivamente um para o outro, tratava-se de
uma estranha. Essa estranha, eu a contemplava na fotografia tirada por Saint-Loup. Mamãe
encontrara Albertine, insistira comigo para que a visse, por causa das amabilidades que dissera a
respeito de minha avó e de mim. Marquei-lhe um encontro. Preveni o gerente para que a fizesse
esperar no salão. Disse-na que já a conhecia de muito, a ela e a suas amigas, bem antes que
houvessem atingido a “Idade da pureza", mas que estava aborrecido, devido às coisas que tinham
dito sobre o hotel.
- Não devem ser muito "ilustradas" para falarem assim. A menos que as tenham caluniado.
Compreendi facilmente que "pureza" fora dito em vez de "puberdade" .
Esperando a hora de ir ao encontro de Albertine, mantinha os olhos fixos; como sobre um
desenho que a gente acaba por não ver mais, de tanto olhar, na fotografia tirada por Saint-Loup,
quando subitamente pensei novo:
"É a avó, sou seu neto", como um amnésico redescobre seu nome, como um doente muda
de personalidade.
Françoise entrou para me dizer que Albertine já chegara e, vendo a fotografia:
- Pobre Senhora, é realmente ela, até no sinalzinho do rosto; no dia em que o marquês a
fotografou, ela tinha estado bem doente, por duas vezes passou mal. "Principalmente Françoise",
tinha me dito, "é preciso que meu neto não o saiba" - ela o escondia bem, estava sempre alegre
em sociedade. Unicamente, por exemplo, eu achava que às vezes ela parecia ter o espírito um
pouco monótono . Mas isso passava depressa. E depois ela me disse assim: "Se um dia me
acontecer alguma coisa, é preciso que ele tenha um retrato meu. Nunca mandei tirar nenhum."
Então, mandou-me perguntar ao senhor, mas recomendando-lhe que não contasse ao patrão que
fora ela que o pediu se ele não poderia lhe tirar a foto. Mas, quando voltei para dizer se ela não
queria mais, porque se achava com aparência muito ruim. "É aí pior", disse-me, "do que não ter
fotografia nenhuma." Mas, como ela era boba, acabou por se arrumar tão bem, pondo um grande
chapéu de abas largas, que já não parecia mais desfigurada do que quando se achava " em pleno
dia claro. Estava bem satisfeita com sua fotografia, pois naquele momento não acreditava que
fosse voltar de Balbec. Por mais que lhe dissesse: "Patroa, não deve falar desse jeito, não gosto
de ouvi-la falar assim", aquilo estava na sua cabeça. E, diabos, fazia vários dias que ela não podia
comer. Era por isso que deixava o patrão ir jantar bem longe com o senhor marquês. Então, em
vez de ir para a mesa, fingia estar lendo e, logo que o carro do marquês saía, ela subia para se
deitar. Havia dias em que desejava prevenir a patroa para que viesse vê-la ainda. E depois tinha
medo de assustá-la, já que não lhe dissera nada. "É melhor que ela fique com o marido, não é
mesmo, Françoise?" - Olhando-me, Françoise perguntou bruscamente se me "sentia indisposto".
Disse-lhe que não; e ela:
- E depois me prende aqui para conversar. Talvez sua visita já tenha chegado. Preciso
descer. Não é uma pessoa para aqui. E estabanada como é, poderia ter ido embora. Ela não
gosta de esperar. Ah, agora a senhorita Albertine é alguém.
- Está enganada, Françoise, ela está muito bem, está até bem demais para aqui. Mas vá
avisá-la de que não poderei vê-la hoje.
Quantas exclamações apiedadas eu teria despertado em Françoise, caso ela me tivesse
visto chorar! Ocultei-me cuidadosamente. Sem isto, eu teria tido a sua simpatia. Mas dei-lhe a
minha. Não nos colocamos bastante no coração dessas pobres camareiras que não podem nos
ver chorar, como se chorar nos fizesse mal; ou talvez lhes fizesse mal; Françoise me dissera
quando eu era pequeno:
- Não chore assim, não gosto de vê-lo chorar desse jeito. -
Não apreciamos as grandes frases, as declarações, e erramos; assim, fechamos o coração
ao patético rural, à lenda que a pobre criada, despedida talvez injustamente por furto, muito
pálida, subitamente mais humilde como se se tratasse de um crime a ser acusada, desenrola,
invocando a honestidade do pai, os princípios da mãe, os conselhos da avó. É claro que essas
mesmas criadas que não podem suportar nossas lágrimas, sem escrúpulo, nos farão apanhar um
resfriado porque a camareira do andar de baixo gosta das correntes de ar e não seria cortês
suprimi-las. Pois é necessário que mesmo aqueles que têm razão, como Françoise, também
estejam errados, para fazer da justiça uma coisa impossível. Até os humildes prazeres das criadas
provocam ou a recusa ou a zombaria dos patrões. Pois é sempre um nada, mas ingenuamente
sentimental, anti-higiênico. Assim, elas podem dizer:
- Como, a mim que só peço isso o ano inteiro, eles me negam! -
E no entanto os patrões concordariam com muito mais, desde que não seja estúpido e
perigoso para elas ou para eles. Certamente, à humildade da pobre camareira trêmula, prestes a
confessar o que não praticara, dizendo "partirei esta noite, se preciso for", não é possível resistir.
Mas também é preciso saber não permanecer insensível, apesar da banalidade solene e
ameaçadora das coisas que ela diz, sua herança materna e a dignidade da "roça", diante de uma
velha cozinheira, criada na vida e numa ascendência honrosas, empunhando a vassoura como
mastro, levando o seu papel para o trágico, entrecortando-o de choros, instigando-se
majestosamente.
Naquele dia recordei ou imaginei tais coisas e relacionei-as com a nossa velha criada e,
desde então, apesar de tudo que pôde fazer a Albertine, amei Françoise com uma afeição, é
verdade, intermitente, mas do mais forte gênero, o que tem por base a piedade. Decerto, sofri o
dia inteiro ficando diante da fotografia de minha avó. Ela me torturava. Entretanto, menos do que o
fez a visita do gerente a noite. Como lhe falasse de minha avó e ele me renovasse suas
condolências, ouvi-o dizer-me (pois gostava de empregar os termos que pronunciava mal):
- É como no dia em que a Senhora sua avó teve aqui simécope; quis avisá-lo porque,
devido aos hóspedes, o senhor compreende, podia dar prejuízo à casa. Teria sido preferível que
ela partisse naquela mesma noite. Mas suplicou-me que nada dissesse e me prometeu que não
teria mais simécope ou que, logo à primeira, iria embora. Entretanto, o chefe do andar me
comunicou que ela teve uma outra. Mas, enfim, os senhores eram antigos hóspedes que a gente
procurava satisfazer, e já que ninguém se queixou... -
Portanto, minha avó tivera síncopes e as escondia de mim. Talvez no momento mesmo em
que eu fora menos gentil para com ela, quando era obrigada, sempre sofrendo, a prestar atenção
para mostrar-se de bom humor para não me irritar e parecer estar de boa saúde, a fim de não ser
despejada do hotel. Simécope era uma palavra que, assim pronunciada, eu jamais teria imaginado
que, aplicada a outros, talvez tivesse parecido ridícula, mas que, em sua estranha novidade
sonora, é semelhante à de uma dissonância original, permaneceu sendo, durante muito tempo, o
que era capaz de despertar em mim as mais dolorosas sensações.
No dia seguinte fui, a pedido de mamãe, estender-me um pouco na areia, ou melhor, nas
dunas, ali onde se fica escondido por suas ondulações, e onde sabia que Albertine e suas amigas
não poderiam me encontrar. Minhas pálpebras, abaixadas, só deixavam passar uma única luz,
inteiramente cor-de-rosa, a das paredes internas dos olhos. Depois se fecharam completamente.
Então minha avó me apareceu sentada numa poltrona. Muito fraquinha, parecia viver menos que
qualquer outra pessoa. Entretanto ouvia-a respirar; às vezes, um sinal mostrava que ela
compreendera o que dizíamos, meu pai e eu. Mas, por mais que a beijasse, não conseguia
despertar um olhar de afeição em seus olhos, um pouco de cor em suas faces. Ausente de si
mesma, dava a impressão de não me amar, de não me conhecer, talvez mesmo de não me ver.
Eu não podia adivinhar o segredo de sua indiferença, do seu abatimento, de seu
descontentamento silencioso. Arrastei meu pai à parte.
- Contudo, estás vendo - disse-lhe -, não há o que dizer, ela percebeu perfeitamente cada
coisa. É a ilusão completa da vida. Se se pudesse mandar vir o teu primo que pretende que os
mortos não vivem! Faz mais de um ano que ela está morta e afinal vive sempre. Mas por que não
deseja me beijar? - Olha, sua pobre cabeça cai de novo. - Achas mesmo que isso poderia lhe
fazer mal, que ela poderia morrer ainda mais? Não é possível que já não me ame. Por mais que a
beije, será que ela não me sorrirá nunca mais?
- Que queres, os mortos são os mortos.
Alguns dias depois, a fotografia tirada por Saint-Loup era doce de olhar; já não despertava
a recordação do que me dissera Françoise porque essa recordação não me deixara mais e eu me
habituara a ela. Mas, diante da idéia que eu me fazia de seu estado tão grave e doloroso daquele
dia, a foto, aproveitando ainda as manhas que tivera a minha avó e que logravam enganar-me até
quando me foram reveladas, mostrava-a tão elegante, tão despreocupada, debaixo do chapéu
que ocultava um pouco o seu rosto, que eu a via menos infeliz e de melhor saúde do que
imaginara. E no entanto suas faces, tendo mantido à sua revelia uma expressão própria, algo de
plúmbeo, de esgazeado, como o olhar de um animal que se sentisse já escolhido e designado,
minha avó exibia um ar de condenada à morte, um ar involuntariamente sombrio,
inconscientemente trágico, que me escapava, mas que impedia mamãe de olhar jamais para
aquela fotografia, essa fotografia que lhe parecia menos uma fotografia de sua mãe do que a de
sua doença, de um insulto que essa doença fazia ao rosto brutalmente esbofeteado de minha avó.
Depois, um dia decidi-me mandar dizer a Albertine que a receberia em breve. É que, numa
manhã de grande calor prematuro, os milhares de gritos das crianças que brincavam, dos
banhistas que se divertiam, dos jornaleiros, tinham-me descrito em traços de fogo, em labaredas
entrelaçadas, a praia ardente que as pequenas ondas vinham, uma a uma, banhar de seu frescor;
começara então o concerto sinfônico misturado ao barulho das águas, no qual os violinos
vibravam como um enxame de abelhas disperso sobre o mar. E logo eu desejara ouvir novamente
o riso de Albertine, rever suas amigas, aquelas mocinhas que se destacavam contra as ondas e
que tinham ficado em minha lembrança como o encanto inseparável, a flora característica de
Balbec; e resolvera mandar por Françoise um recado a Albertine, para a semana próxima,
enquanto o mar, subindo suavemente a cada rebentar das ondas, cobria inteiramente de
rolamentos de cristal a melodia cujas frases surgiam separadas umas das outras, como aqueles
anjos tocadores de alaúde que, no topo da catedral italiana, erguem-se por entre as cristas de
pórfiro azul e de jaspe espumante. Mas, no dia em que Albertine veio, o tempo se arruinara de
novo, refrescara, e além disso não tinha oportunidade de ouvir sua risada; ela estava de muito
mau humor.
- Basta! Está insuportável este ano - disse ela. - Vou tratar de não mexer muito. Sabe que
estou aqui desde a Páscoa, já faz mais de um mês não há ninguém. Se acha que é bem divertido
isso...
Apesar da chuva e do céu que mudava a cada instante, depois de ter acompanhado
Albertine até Épreville, pois ela fazia, segundo sua expressão, "o vai-vem'' entre essa pequena
praia, onde estava a vivenda da Sra. Bontemps-Incarville, onde fora "tomada em pensão" pelos
pais de Rosemonde, saí para passear sozinho por aquela grande estrada pela qual tomava o
carro da Sra. de Villeparisis quando íamos passear com minha avó; poças d'água, que o sol que
brilhava não havia secado, tornavam o solo um verdadeiro lamaçal, e eu pensava em minha avó,
que outrora não podia dar dois passos sem se enlamear. Mas, quando cheguei à estrada, foi um
deslumbramento. Ali onde eu não vira com minha avó, no mês de agosto, mais do que folhas
cortadas; que a localização das macieiras, estavam elas agora em plena floração a perder de
vista, de um luxo inaudito, os pés na lama e em vestido de baile sem tomar precauções para não
estragar o cetim róseo mais maravilhoso que já se viu e que o sol fazia brilhar; o horizonte remoto
do mar fornecia às macieiras uma espécie de pano de fundo de estampa japonesa; se eu erguia a
cabeça para contemplar o céu por entre as flores, que faziam parecer quase violento o seu azul
tranquilo; elas pareciam afastar-se para mostrar a profundidade daquele paraíso. Sob esse azul,
uma brisa leve, porém fria, fazia tremular ligeiramente os ramos avermelhados. Borboletas azuis
vinham pousar nos ramos e saltitavam por entre as flores, indulgentes, como se um amador de
exotismos e de cores houvesse criado artificialmente aquela beleza viva. Mas emocionava até às
lágrimas porque, embora fosse bem longe em seus efeitos de arte refinada, sentia-se que era
natural, que aquelas macieiras estavam ali, em pleno campo, como camponeses numa estrada
real da França. Depois, aos raios de sol sucederam da chuva; riscaram todo o horizonte e
encerraram a fila de macieiras em sua rede cinzenta. Mas estas continuavam a erguer a sua
beleza, florida, rósea, ao vento que se tornara glacial sob o aguaceiro que caía: era um dia de
primavera.
continua na página 79...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Como era a primeira vez que saía)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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