Apolodoro[1] e um Companheiro
- Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e
mau?
E ela:
- Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo,
é forçoso ser feio?
- Exatamente.
- E também se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste
que existe algo entre sabedoria e ignorância?
- Que é?
- O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia
me ela, que nem é saber - pois o que é sem razão, como seria
ciência? - nem é ignorância - pois o que atinge o ser, como seria
ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a
opinião certa, um intermediário entre entendimento e
ignorância.
- É verdade o que dizes, tornei-lhe.
- Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio,
nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor,
porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por
isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que
está, dizia ela, entre esses dois extremos.
- E todavia é por todos reconhecido que ele é um grande deus.
- Todos os que não sabem, é o que estás dizendo, ou também
os que sabem?
- Todos eles, sem dúvida.
E ela sorriu e disse:
- E como, ó Sócrates, admitiriam ser um
grande deus aqueles que afirmam que nem deus ele é?
- Quem são estes?
Perguntei-lhe.
- Um és tu - respondeu-me
- E eu, outra.
E eu:
- Que queres dizer com isso?
E ela:
- É simples. Dize-me, com efeito, todos os deuses não os
afirmas felizes e belos? Ou terias a audácia de dizer que algum
deles não é belo e feliz?
- Por Zeus, não eu - retornei-lhe.
- E os felizes então, não dizes que são os que possuem o que é
bom e o que é belo?
- Perfeitamente.
- Mas no entanto, o Amor, tu reconheceste que, por carência do
que é bom e do que é belo, deseja isso mesmo de que é
carente.
- Reconheci, com efeito.
- Como então seria deus o que justamente é desprovido do que
é belo e bom?
- De modo algum, pelo menos ao que parece.
- Estás vendo então - disse - que também tu não julgas o Amor
um deus?
- Que seria então o Amor? - perguntei-lhe. - Um mortal?
- Absolutamente.
- Mas o quê, ao cento, ó Diotima?
- Como nos casos anteriores - disse-me ela - algo entre mortal
e imortal.
- O quê, então, ó Diotima?
- Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo o que é gênio
está entre um deus e um mortal.
- E com que poder? - perguntei-lhe.
- O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos
homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as
súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as
recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos
ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si
mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte
divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos
sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda
adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura,
mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo
dos deuses com os homens, tanto quando despertos como
quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um
homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa,
arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos
e diversos, e um deles é justamente o Amor.
- E quem é seu pai - perguntei-lhe - e sua mãe?
- É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi.
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre
os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso.
Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a
Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o
néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus
e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta
de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado
e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo
de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo
que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é
bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a
condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e
longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas
é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro,
deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque
tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão.
Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom,
e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer
maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a
filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele
germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo
ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre
lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem
enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da
ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou
deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é
sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou
desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da
ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil,
nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto
quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser
preciso.
- Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se
não são nem os sábios nem os ignorantes?
- É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma
criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles
seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a
sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o
Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o
ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é
filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e
pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto
ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que
tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes,
que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo
penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é
que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o
amante, porém é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei.
E eu lhe disse:
- Muito bem, estrangeira! É belo o que dizes!
Sendo porém tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para
os homens?
- Eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te.
Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é
belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é
que é amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou
mais claramente: Ama o amante o que é belo; que é que ele
ama?
- Tê-lo consigo - respondi-lhe.
- Mas essa resposta - dizia-me ela - ainda requer uma pergunta
desse tipo: Que terá aquele que ficar com o que é belo?
- Absolutamente - expliquei-lhe - eu não podia mais responder
lhe de pronto a essa pergunta.
- Mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a questão e,
usando o bom em vez do belo, perguntasse: Vamos, Sócrates,
ama o amante o que é bom; que é que ele ama?
- Tê-lo consigo - respondi-lhe.
- E que terá aquele que ficar com o que é bom?
- Isso eu posso - disse-lhe - mais facilmente responder: ele será
feliz.
- É com efeito pela aquisição do que é bom, disse ela, que os
felizes são felizes, e não mais é preciso ainda perguntar: E para
que quer ser feliz aquele que o quer? Ao contrário, completa
parece a resposta.
- É verdade o que dizes - tornei-lhe.
- E essa vontade então e esse amor, achas que é comum a
todos os homens, e que todos querem ter sempre consigo o que
é bom, ou que dizes?
- Isso - respondi-lhe - é comum a todos.
- E por que então, ó Sócrates, não são todos que dizemos que
amam, se é que todos desejam a mesma coisa e sempre, mas
sim que uns amam e outros não?
- Também eu - respondi-lhe - admiro-me.
- Mas não! Não te admires! - retrucou ela; - pois é porque
destacamos do amor um certo aspecto e, aplicando-lhe o nome
do todo, chamamos-lhe de amor, enquanto para os outros
aspectos servimo-nos de outros nomes.
- Como, por exemplo? - perguntei-lhe.
- Como o seguinte. Sabes que "poesia" é algo de múltiplo; pois
toda causa de qualquer coisa passar do não-ser ao ser é
“poesia”, de modo que as confecções de todas as artes são
“poesias”, e todos os seus artesãos poetas.
- É verdade o que dizes.
- Todavia continuou ela - tu sabes que estes não são
denominados poetas, mas tem outros nomes, enquanto que de
toda a “poesia” uma única parcela foi destacada, a que se refere
à música e aos versos, e com o nome do todo é denominada.
Poesia é com efeito só isso que se chama, e os que têm essa
parte da poesia, poetas.
- É verdade - disse-lhe.
- Pois assim também é com o amor. Em geral, todo esse desejo
do que é bom e de ser feliz, eis o que é “o supremo e insidioso
amor, para todo homem”, no entanto, enquanto uns, porque se
voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou
pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam
nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e
empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo, de
amor, de amar e de amantes.
- É bem provável que estejas dizendo a verdade - disse-lhe eu.
- E de fato corre um dito, continuou ela, segundo o qual são os
que procuram a sua própria metade os que amam; o que eu
digo porém é que não é nem da metade o amor, nem do todo;
pelo menos, meu amigo, se não se encontra este em bom
estado, pois até os seus próprios pés e mãos querem os homens
cortar, se lhes parece que o que é seu está ruim. Não é com
efeito o que é seu, penso, que cada um estima, a não ser que
se chame o bem de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois
nada mais há que amem os homens serão o bem; ou te parece
que amam?
- Não, por Zeus - respondi-lhe.
- Será então - continuou - que é tão simples assim, dizer que os
homens amam o bem?
- Sim - disse-lhe.
- E então? Não se deve acrescentar que é ter consigo o bem que
eles amam?
- Deve-se.
- E sem dúvida - continuou - não apenas ter, mas sempre ter?
- Também isso se deve acrescentar.
- Em resumo então - disse ela - é o amor amor de consigo ter
sempre o bem.
- Certíssimo - afirmei-lhe - o que dizes.
- Quando então - continuou ela - é sempre isso o amor, de que
modo, nos que o perseguem, e em que ação, o seu zelo e
esforço se chamaria amor? Que vem a ser essa atividade? Podes
dizer-me?
- Eu não te admiraria então, ó Diotima, por tua sabedoria, nem
te frequentaria para aprender isso mesmo.
- Mas eu te direi - tornou-me. - É isso, com efeito, um parto em
beleza, tanto no corpo como na alma.
- É um adivinho - disse-lhe eu - que requer o que estás
dizendo: não entendo.
- Pois eu te falarei mais claramente, Sócrates, disse-me ela.
Com efeito, todos os homens concebem, não só no corpo como
também na alma, e quando chegam a certa idade, é dar à luz
que deseja a nossa natureza. Mas ocorrer isso no que é
inadequado é impossível. E o feio é inadequado a tudo o que é
divino, enquanto o belo é adequado. Moira então e Ilitia do
nascimento é a Beleza. Por isso, quando do belo se aproxima o
que está em concepção, acalma-se, e de júbilo transborda, e dá
à luz e gera; quando porém é do feio que se aproxima, sombrio
e aflito contrai-se, afasta-se, recolhe-se e não gera, mas,
retendo o que concebeu, penosamente o carrega. Daí é que ao
que está prenhe e já intumescido é grande o alvoroço que lhe
vem à vista do belo, que de uma grande dor liberta o que está
prenhe. É com efeito, Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
amor, como pensas.
- Mas de que é enfim?
- Da geração e da parturição no belo.
- Seja - disse-lhe eu.
- Perfeitamente - continuou. - E por que assim da geração?
Porque é algo de perpétuo e mortal para um mortal, a geração.
E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja,
pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter
consigo o bem. É de fato forçoso por esse argumento que
também da imortalidade seja o amor.
continua página 41...
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Apolodoro e um Companheiro(h)
Apolodoro e um Companheiro(g)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão.
De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara.
Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas.
Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)
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