quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Platão: O Banquete - Apolodoro e um Companheiro(h)

Apolodoro[1] e um Companheiro


     E eu então:

- Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e mau?

     E ela:

- Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo, é forçoso ser feio? 
- Exatamente. 
- E também se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorância? 
- Que é? 
- O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia me ela, que nem é saber - pois o que é sem razão, como seria ciência? - nem é ignorância - pois o que atinge o ser, como seria ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a opinião certa, um intermediário entre entendimento e ignorância. 
- É verdade o que dizes, tornei-lhe.  
- Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos. 
- E todavia é por todos reconhecido que ele é um grande deus. 
- Todos os que não sabem, é o que estás dizendo, ou também os que sabem? 
- Todos eles, sem dúvida. 

     E ela sorriu e disse:

- E como, ó Sócrates, admitiriam ser um grande deus aqueles que afirmam que nem deus ele é? 
- Quem são estes? 

     Perguntei-lhe. 

- Um és tu - respondeu-me 
- E eu, outra.

     E eu: 

- Que queres dizer com isso?

     E ela: 

- É simples. Dize-me, com efeito, todos os deuses não os afirmas felizes e belos? Ou terias a audácia de dizer que algum deles não é belo e feliz?
- Por Zeus, não eu - retornei-lhe. 
- E os felizes então, não dizes que são os que possuem o que é bom e o que é belo? 
- Perfeitamente. 
- Mas no entanto, o Amor, tu reconheceste que, por carência do que é bom e do que é belo, deseja isso mesmo de que é carente. 
- Reconheci, com efeito. 
- Como então seria deus o que justamente é desprovido do que é belo e bom? 
- De modo algum, pelo menos ao que parece. 
- Estás vendo então - disse - que também tu não julgas o Amor um deus? 
- Que seria então o Amor? - perguntei-lhe. - Um mortal? 
- Absolutamente. 
- Mas o quê, ao cento, ó Diotima? 
- Como nos casos anteriores - disse-me ela - algo entre mortal e imortal. 
- O quê, então, ó Diotima? 
- Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. 
- E com que poder? - perguntei-lhe. 
- O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa, arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor.
- E quem é seu pai - perguntei-lhe - e sua mãe? 
- É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. 
- Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? 
- É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei. 

     E eu lhe disse: 

- Muito bem, estrangeira! É belo o que dizes! Sendo porém tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para os homens? 
- Eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é que é amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais claramente: Ama o amante o que é belo; que é que ele ama? 
- Tê-lo consigo - respondi-lhe. 
- Mas essa resposta - dizia-me ela - ainda requer uma pergunta desse tipo: Que terá aquele que ficar com o que é belo? 
- Absolutamente - expliquei-lhe - eu não podia mais responder lhe de pronto a essa pergunta. 
- Mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a questão e, usando o bom em vez do belo, perguntasse: Vamos, Sócrates, ama o amante o que é bom; que é que ele ama? 
- Tê-lo consigo - respondi-lhe. 
- E que terá aquele que ficar com o que é bom? 
- Isso eu posso - disse-lhe - mais facilmente responder: ele será feliz. 
- É com efeito pela aquisição do que é bom, disse ela, que os felizes são felizes, e não mais é preciso ainda perguntar: E para que quer ser feliz aquele que o quer? Ao contrário, completa parece a resposta. 
- É verdade o que dizes - tornei-lhe. 
- E essa vontade então e esse amor, achas que é comum a todos os homens, e que todos querem ter sempre consigo o que é bom, ou que dizes? 
- Isso - respondi-lhe - é comum a todos. 
- E por que então, ó Sócrates, não são todos que dizemos que amam, se é que todos desejam a mesma coisa e sempre, mas sim que uns amam e outros não? 
- Também eu - respondi-lhe - admiro-me. 
- Mas não! Não te admires! - retrucou ela; - pois é porque destacamos do amor um certo aspecto e, aplicando-lhe o nome do todo, chamamos-lhe de amor, enquanto para os outros aspectos servimo-nos de outros nomes. 
- Como, por exemplo? - perguntei-lhe.
- Como o seguinte. Sabes que "poesia" é algo de múltiplo; pois toda causa de qualquer coisa passar do não-ser ao ser é “poesia”, de modo que as confecções de todas as artes são “poesias”, e todos os seus artesãos poetas. 
- É verdade o que dizes. 
- Todavia continuou ela - tu sabes que estes não são denominados poetas, mas tem outros nomes, enquanto que de toda a “poesia” uma única parcela foi destacada, a que se refere à música e aos versos, e com o nome do todo é denominada. Poesia é com efeito só isso que se chama, e os que têm essa parte da poesia, poetas. 
- É verdade - disse-lhe.
- Pois assim também é com o amor. Em geral, todo esse desejo do que é bom e de ser feliz, eis o que é “o supremo e insidioso amor, para todo homem”, no entanto, enquanto uns, porque se voltam para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário, procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo, de amor, de amar e de amantes. 
- É bem provável que estejas dizendo a verdade - disse-lhe eu. 
- E de fato corre um dito, continuou ela, segundo o qual são os que procuram a sua própria metade os que amam; o que eu digo porém é que não é nem da metade o amor, nem do todo; pelo menos, meu amigo, se não se encontra este em bom estado, pois até os seus próprios pés e mãos querem os homens cortar, se lhes parece que o que é seu está ruim. Não é com efeito o que é seu, penso, que cada um estima, a não ser que se chame o bem de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois nada mais há que amem os homens serão o bem; ou te parece que amam? 
- Não, por Zeus - respondi-lhe. 
- Será então - continuou - que é tão simples assim, dizer que os homens amam o bem? 
- Sim - disse-lhe.
- E então? Não se deve acrescentar que é ter consigo o bem que eles amam? 
- Deve-se. 
- E sem dúvida - continuou - não apenas ter, mas sempre ter? 
- Também isso se deve acrescentar. 
- Em resumo então - disse ela - é o amor amor de consigo ter sempre o bem. 
- Certíssimo - afirmei-lhe - o que dizes. 
- Quando então - continuou ela - é sempre isso o amor, de que modo, nos que o perseguem, e em que ação, o seu zelo e esforço se chamaria amor? Que vem a ser essa atividade? Podes dizer-me? 
- Eu não te admiraria então, ó Diotima, por tua sabedoria, nem te frequentaria para aprender isso mesmo. 
- Mas eu te direi - tornou-me. - É isso, com efeito, um parto em beleza, tanto no corpo como na alma. 
- É um adivinho - disse-lhe eu - que requer o que estás dizendo: não entendo. 
- Pois eu te falarei mais claramente, Sócrates, disse-me ela. Com efeito, todos os homens concebem, não só no corpo como também na alma, e quando chegam a certa idade, é dar à luz que deseja a nossa natureza. Mas ocorrer isso no que é inadequado é impossível. E o feio é inadequado a tudo o que é divino, enquanto o belo é adequado. Moira então e Ilitia do nascimento é a Beleza. Por isso, quando do belo se aproxima o que está em concepção, acalma-se, e de júbilo transborda, e dá à luz e gera; quando porém é do feio que se aproxima, sombrio e aflito contrai-se, afasta-se, recolhe-se e não gera, mas, retendo o que concebeu, penosamente o carrega. Daí é que ao que está prenhe e já intumescido é grande o alvoroço que lhe vem à vista do belo, que de uma grande dor liberta o que está prenhe. É com efeito, Sócrates, dizia-me ela, não do belo o amor, como pensas. 
- Mas de que é enfim? 
- Da geração e da parturição no belo. 
- Seja - disse-lhe eu. 
- Perfeitamente - continuou. - E por que assim da geração? Porque é algo de perpétuo e mortal para um mortal, a geração. E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É de fato forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor. 

continua página 41...
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Apolodoro e um Companheiro(h)

Platão (428/7-348/7 a.C.)
     Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
     O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
     Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão. 
     De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
     Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara. 
     Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas. 
     Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.  
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)

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