quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Prefácio - 3)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Prefácio
     3 - 
          Mencionei antes o processo de destotalitarização que se seguiu à morte de Stálin. Em 1958, eu ainda não estava certa de que o "degelo" fosse mais que um relaxamento temporário, uma espécie de medida de emergência devida à crise de sucessão, não muito diferente do afrouxamento dos controles totalitários durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje não podemos saber se este processo é final e irreversível, mas já não podemos chamá-lo de temporário ou provisório. Pois, como quer que interpretemos a linha sinuosa e frequentemente desnorteante da política soviética desde 1953, é inegável que o enorme império policial foi liquidado, que a maioria dos campos de concentração foi dissolvida, que não houve mais expurgos de "inimigos objetivos", e que os conflitos entre os membros da nova "liderança coletiva" são agora resolvidos pela remoção e pelo exílio, e não por julgamentos ostensivos, confissões e assassinatos. É verdade que os métodos usados pelos governantes, nos anos que se seguiram à morte de Stálin, ainda obedeciam aos padrões estabelecidos por este após a morte de Lênin: surgiu novamente um triunvirato chamado de "liderança coletiva", termo cunhado por Stálin em 1925 e, após quatro anos de intrigas e de luta pelo poder, houve uma repetição do coup d'état de Stálin em 1929, ou seja, a tomada do poder por Nikita Khrushchev em 1957. Tecnicamente, o golpe de Khrushchev seguiu muito de perto os métodos do seu falecido e denunciado mestre. Ele também precisou de uma força externa para galgar o poder na hierarquia do partido, e usou o apoio do marechal Zhukov e do Exército exatamente do mesmo modo como Stálin havia usado suas relações com a polícia secreta na luta sucessória de trinta anos antes.[25] Tal como no caso de Stálin, quando o poder supremo depois do golpe continuou a residir no partido, e não na polícia, também no caso de Khrushchev "em fins de 1957 o Partido Comunista da União Soviética havia alcançado uma posição de supremacia inconteste em todos os aspectos da vida soviética";[26] porque, do mesmo modo como Stálin jamais hesitara em expurgar os seus escalões policiais e liquidar o seu chefe, também Khrushchev havia imitado suas manobras intrapartidárias removendo Zhukov do Presidium e do Comitê Central do Partido, ao qual havia sido eleito após o golpe, além de afastá-lo do posto de mais alto comandante do Exército.
     É verdade que, quando Khrushchev recorreu ao apoio de Zhukov, a ascendência do Exército sobre a polícia era um fato consumado na União Soviética. Essa havia sido uma das consequências automáticas da destruição do império policial, cujo domínio sobre enorme parte das indústrias, minas e propriedades imobiliárias soviéticas fora herdado pelo grupo administrativo, que de súbito se viu livre do seu mais sério concorrente econômico. A ascendência automática do Exército foi ainda mais decisiva: possuía agora um claro monopólio dos instrumentos de violência com que decidir os conflitos intrapartidários. O fato de Khrushchev haver percebido, mais depressa que os seus colegas, as consequências do que presumivelmente haviam feito em conjunto mostra a sua perspicácia. Mas, quaisquer que tenham sido os seus motivos, essa transferência de ênfase da polícia para os militares no jogo do poder teve grandes consequências. É verdade que a ascendência da polícia secreta sobre o aparelho militar é a marca de muitas tiranias, e não somente das tiranias totalitárias; mas, no caso do governo totalitário, a preponderância da polícia não apenas atende à necessidade de suprimir a população em casa, como se ajusta à pretensão ideológica de domínio global. Pois é evidente que os que veem toda a terra como seu futuro território darão destaque ao órgão de violência doméstica e governarão os territórios conquistados com as medidas e o pessoal da polícia, e não com o Exército. Assim, os nazistas usaram as suas tropas SS, essencialmente uma força policial, para governar e até conquistar territórios estrangeiros, visando ulteriormente a uma fusão do exército com a polícia sob a liderança da SS. Além do mais, a importância dessa mudança no balanço do poder havia sido evidente antes, por ocasião da supressão da Revolução Húngara pela força. A sangrenta repressão da revolução, terrível e eficaz como foi, havia sido obra das unidades do Exército regular e não das tropas policiais e, conseqüentemente, não representou uma solução tipicamente stalinista. Embora a operação militar fosse seguida da execução dos líderes e da prisão de milhares de pessoas, não houve nenhuma deportação em massa; de fato, não houve qualquer tentativa de despovoar o país. E, como se tratava de uma operação militar, e não de uma ação policial, os soviéticos puderam mandar para o país derrotado o auxílio necessário para evitar a fome em massa e adiar um completo colapso da economia no ano que se seguiu à revolução. Certamente, nada estaria mais longe do espírito de Stálin em circunstâncias semelhantes.
     O sinal mais evidente de que a União Soviética já não se pode mais chamar totalitária no estrito sentido do termo é, naturalmente, a espantosamente rápida e fecunda recuperação das artes durante a última década. É verdade que, de vez em quando, surgem esforços para reabilitar Stálin e refrear as crescentes exigências de liberdade de expressão e de pensamento por parte de estudantes, escritores e artistas, mas nenhum desses esforços tem sido muito bem-sucedido, nem pode ser bem-sucedido sem um completo restabelecimento do terror e do domínio policial. Sem dúvida, o povo da União Soviética não tem qualquer forma de liberdade política; falta-lhe não apenas a liberdade de associação, mas também a liberdade de pensamento, opinião e expressão pública. Nada parece ter mudado; mas, de fato, tudo mudou. Quando Stálin morreu, as gavetas dos escritores e dos artistas estavam vazias; hoje, existe toda uma literatura que circula em forma de manuscrito, e toda forma de pintura moderna é experimentada nos estúdios dos pintores e se torna conhecida, embora não possa ser exibida. Não pretendemos minimizar a diferença entre a censura tirânica e a liberdade das artes, mas apenas acentuar o fato de que a diferença entre uma literatura clandestina e nenhuma literatura é igual à diferença entre um e zero.
     Ademais, o próprio fato de que os membros da oposição intelectual são levados a julgamento (mesmo que não seja um julgamento aberto), podem fazer-se ouvir nos tribunais e contar com apoio fora das cortes de justiça, nada confessam e declaram-se inocentes demonstra que já não estamos mais lidando com o domínio total. O que sucedeu a Sinyavsky e Daniel, os dois escritores que, em fevereiro de 1966, foram julgados por haverem publicado no exterior livros que não poderiam ter sido publicados na União Soviética, e foram condenados a sete e cinco anos de trabalho forçado respectivamente, foi, sem dúvida, um absurdo, do ponto de vista dos critérios da justiça de um governo constitucional; mas o que tinham a dizer foi ouvido em todo o mundo e não será facilmente esquecido. Não desapareceram no poço do esquecimento que os governantes totalitários abrem para os seus oponentes. Menos divulgado e talvez ainda mais importante é o fato de que a ambiciosa tentativa de Khrushchev de reverter o processo de destotalitarização foi um completo fracasso. Em 1957, ele introduziu uma nova "lei contra os parasitas sociais" que poderia ter dado ao regime o poder de retornar às deportações em massa, reinstituir o trabalho escravo em grande escala e — o que era mais importante para o domínio total — desencadear nova onda de denúncias em massa, pois os "parasitas" seriam selecionados pelo próprio povo em comícios maciços. A "lei", porém, foi obstada pelos juristas soviéticos e abolida antes que pudesse ser posta em prática.[27] Em outras palavras, o povo da União Soviética emergiu do pesadelo do governo totalitário para as muitas privações, perigos e injustiças da ditadura unipartidária; e, embora seja perfeitamente verdadeiro que essa moderna forma de tirania não oferece nenhuma das seguranças do governo constitucional, que, "mesmo aceitando os pressupostos da ideologia comunista, todo poder na URSS é, em última análise, ilegítimo",[28] e que, portanto, o país pode voltar ao totalitarismo da noite para o dia sem grandes convulsões, também é verdade que a mais horrível forma de governo, cujos elementos e origens históricas me propus analisar, terminou na Rússia com a morte de Stálin, da mesma forma como o totalitarismo terminou na Alemanha com a morte de Hitler.
     Este livro trata do totalitarismo, suas origens e elementos. As consequências do totalitarismo na Alemanha ou na Rússia são pertinentes apenas na medida em que possam esclarecer o que sucedeu no passado. Assim, é relevante em nosso contexto não o período após a morte de Stálin, mas a era do seu governo no pós-guerra. E esses oito anos, de 1945 a 1953, confirmam e desenrolam diante dos nossos olhos, sem contradizer nem acrescentar novos elementos, o que havia se tornado evidente desde meados da década de 30. Os acontecimentos que se seguiram à vitória, as medidas tomadas para reafirmar o domínio total após o temporário relaxamento do período da guerra na União Soviética, bem como aquelas através das quais o governo totalitário fora introduzido nos países satélites, todos seguem as regras do jogo que viemos a conhecer. A bolchevização dos países satélites começou com as táticas da frente popular e um falso sistema parlamentar; passou rapidamente ao franco estabelecimento de ditaduras unipartidárias nas quais os líderes e os membros dos partidos, que eram tolerados antes, foram liquidados; e depois atingiu o estágio final quando os líderes comunistas nativos, dos quais Moscou suspeitava com ou sem razão, foram brutalmente incriminados, humilhados em julgamentos ostensivos, torturados e mortos sob o domínio dos mais corruptos e desprezíveis elementos do partido, ou seja, aqueles que eram fundamentalmente, não comunistas, mas agentes de Moscou. Foi como se Moscou repetisse apressadamente todos os estágios da Revolução de Outubro até o surgimento da ditadura totalitária. A história, portanto, embora indescritivelmente horrível, não tem, por si mesma, muito interesse, e muda pouco: o que sucedeu a um país satélite ocorreu quase ao mesmo tempo a todos os outros, do Báltico ao Adriático. Os acontecimentos diferiram em regiões não incluídas no sistema de satélites. Os Estados bálticos foram diretamente incorporados à União Soviética, e sofreram muito mais que os satélites; mais de meio milhão de pessoas foram deportadas dos três pequenos países e um "enorme influxo de colonizadores russos" começou a ameaçar as populações nativas, transformadas em minoritárias em seus próprios países.[29] Até a Alemanha Oriental, após a construção do muro de Berlim, acabou sendo inteiramente incorporada ao sistema dos satélites, tendo sido tratada antes como mero território ocupado, governado por um quisling.
     Para o nosso contexto, são mais importantes os acontecimentos da União Soviética, especialmente depois de 1948 — o ano da misteriosa morte de Zhdanov e do processo de Leningrado. Pela primeira vez depois do Grande Expurgo, Stálin mandou executar grande número de altos e altíssimos funcionários, e sabemos sem sombra de dúvida que isso foi planejado como início de outro expurgo de dimensões nacionais. Este teria sido deflagrado pela "conspiração dos médicos", se a morte de Stálin não viesse antes. Um grupo de médicos, a maioria dos quais judeus, foi acusado de haver tramado "eliminar os escalões superiores da URSS".[30] Tudo o que sucedeu na Rússia entre 1948 e janeiro de 1953, quando a "conspiração dos médicos" estava sendo "descoberta", tinha uma notável e ominosa semelhança com os preparos do Grande Expurgo dos anos 30: a morte de Zhdanov e o expurgo de Leningrado correspondiam à não menos misteriosa morte de Kirov em 1934, que foi imediatamente seguida de uma espécie de expurgo preparatório "de todos os antigos opositores que ainda existiam no Partido".[31] Além do mais, o próprio conteúdo da absurda acusação contra os médicos — que iriam matar pessoas em posição de destaque em todo o país — deve ter enchido de temerosos presságios todos os que conheciam o método de Stálin, de acusar um inimigo fictício do crime que ele mesmo ia cometer. (O melhor exemplo conhecido é, naturalmente, a acusação de que Tukhachévski conspirava junto com a Alemanha, no próprio momento em que Stálin pensava em aliar-se aos nazistas.) É claro que, em 1952, o séquito de Stálin conhecia muito melhor o real significado de suas palavras do que nos anos 30, e o próprio fraseado da acusação deve ter semeado o pânico entre todos os altos funcionários do regime. Esse pânico pode ainda ter sido a explicação mais plausível da morte de Stálin, das misteriosas circunstâncias em que ocorreu e do rápido cerrar de fileiras nos altos escalões do partido, notoriamente minado por conflitos e intrigas, durante os primeiros meses da crise de sucessão. Por menos que conheçamos os detalhes da história, sabemos mais do que o suficiente para confirmar a minha convicção original, de que "operações de desmonte" como o Grande Expurgo não eram episódios isolados, não eram excessos do regime motivados por circunstâncias raras, mas constituíam uma instituição do terror e deviam ser esperadas a intervalos regulares — a não ser, naturalmente, que mudasse a própria natureza do regime.
     O elemento novo mais dramático desse último expurgo planejado por Stálin, nos últimos anos de sua vida, foi uma importante mudança de ideologia: a introdução de uma conspiração mundial judaica. Durante anos, os fundamentos para essa mudança haviam sido cuidadosamente elaborados numa série de julgamentos nos países satélites — o julgamento de Rajk na Hungria, o caso Ana Pauker na Romênia e, em 1952, o julgamento de Slansky na Tchecoslo-váquia. Nessas medidas preparatórias, altos funcionários do partido foram escolhidos por suas origens "burgueses-judaicas" e acusados de sionismo; aos poucos, essa acusação foi alterada para implicar agências notoriamente não-sionistas (especialmente o Comitê Judaico-Americano — JOINT), insinuando que todos os judeus eram sionistas e que todos os grupos sionistas eram "assalariados do imperialismo norte-americano". Naturalmente, nada havia de novo no "crime" do sionismo; mas, à medida que a campanha progredia e começava a concentrar-se nos judeus da União Soviética, outra mudança importante ocorreu: os judeus eram agora acusados de "cosmopolitismo" e não de sionismo, e o tipo de acusação que derivava desse slogan seguia cada vez mais de perto o modelo nazista de uma conspiração mundial judaica ao estilo dos sábios do Sião. Ficou surpreendentemente claro como fora profunda a impressão que esse fundamento da ideologia nazista deve ter causado a Stálin; a primeira indicação disso tornara-se evidente desde o pacto Hitler-Stálin. É verdade que, em parte, isso se devia ao seu óbvio valor propagandístico na Rússia, bem como em todos os países satélites, onde o sentimento antijudaico era corrente e a propaganda anti-judaica sempre fora popular, mas também em parte porque esse tipo de conspiração mundial fictícia era um pano de fundo ideologicamente mais adequado às pretensões totalitárias de domínio mundial do que Wall Street, capitalismo e imperialismo. A adoção franca e despudorada do que se havia tornado para o mundo inteiro o sinal mais evidente do nazismo foi a última homenagem que Stálin prestou ao seu falecido colega e rival no domínio total, com quem, muito a contragosto, não pudera chegar a um acordo duradouro.
     Stálin, como Hitler, morreu sem terminar o horror que havia planejado. E, quando isso aconteceu, a história que este livro vai contar e os eventos que procura interpretar e compreender chegaram a um fim pelo menos provisório.

Hannah Arendt Junho de 1966 

Parte III Totalitarismo (Prefácio - 3)
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[25] Armstrong, op. cit., p. 319, afirma que a importância da intervenção do marechal Zhukov na luta intrapartidária foi "extremamente exagerada", e sustenta que Khrushchev^ "triunfou sem qualquer necessidade de intervenção militar", porque era "apoiado pelo aparato do partido". Isso não parece ser verdade. Mas é verdade que "muitos observadores estrangeiros", por causa do papel do Exército no apoio a Khrushchev contra o aparato partidário, chegaram à conclusão equivocada de um aumento duradouro do poder dos militares às expensas do partido, como se a União Soviética estivesse para passar de uma ditadura partidária para uma ditadura militar.
[26] /Wd.,p.320.
[27] Ibid.,p. 325.
[28] Ibid., pp. 339 ss.
[29] Ver Stanley Vardys, "How the Baltic republics fare in the Soviet Union", em Foreign Affairs, abril de 1966.
[30] Armstrong, op. cit., pp. 235 ss.
[31] Fainsod, op. cit., p. 56.

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