Apolodoro[1] e um Companheiro
- Em parte - respondeu-lhe Erixímaco - parece-me profético o
que disseste, que Agatão falaria bem; mas quanto a te
embaraçares, não creio.
- E como, ditoso amigo - disse Sócrates - não vou embaraçar
me, eu e qualquer outro, quando devo falar depois de proferido
um tão belo e colorido discurso? Não é que as suas demais
partes não sejam igualmente admiráveis; mas o que está no
fim, pela beleza dos termos e das frases, quem não se teria
perturbado ao ouvi-lo? Eu por mim, considerando que eu
mesmo não seria capaz de nem de perto proferir algo tão belo,
de vergonha quase me retirava e partia, se tivesse algum meio.
Com efeito, vinha-me à mente o discurso de Górgias, a porto de
realmente eu sentir o que disse Homero: temia que, concluindo,
Agatão em seu discurso enviasse ao meu a cabeça de Górgias,
terrível orador, e de mim mesmo me fizesse uma pedra, sem
voz. Refleti então que estava evidentemente sendo ridículo,
quando convosco concordava em fazer na minha vez, depois de
vós, o elogio ao Amor, dizendo ser terrível nas questões de
amor, quando na verdade nada sabia do que se tratava, de
como se devia fazer qualquer elogio. Pois eu achava, por
ingenuidade, que se devia dizer a verdade sobre tudo que está
sendo elogiado, e que isso era fundamental, da própria verdade
se escolhendo as mais belas manifestações para dispô-las o
mais decentemente possível; e muito me orgulhava então,
como se eu fosse falar bem, como se soubesse a verdade em
qualquer elogio. No entanto, está aí, não era esse o belo elogio
ao que quer que seja, mas o acrescentam o máximo é coisa, e o
mais belamente possível, quer ela seja assim quer não; quanto
a ser falso, não tinha nenhuma importância. Foi com efeito
combinado como cada um de nós entenderia elogiar o Amor,
não como cada um o elogiaria. Eis por que, pondo em ação todo
argumento, vós o aplicais ao Amor, e dizeis que ele é tal e
causa de tantos bens, a fim de aparecer ele como o mais belo e
o melhor possível, evidentemente aos que o não conhecem -
pois não é aos que o conhecem - e eis que fica belo, sim, e
nobre o elogio. Mas é que eu não sabia então o modo de
elogiar, e sem saber concordei, também eu, em elogiá-lo na
minha vez: “a língua jurou, mas o meu peito não”; que ela se
vá então. Não vou mais elogiar desse modo, que não o poderia,
é certo, mas a verdade sim, se vos apraz, quero dizer à minha maneira, e não em competição com os vossos discursos, para
não me prestar ao riso. Vê então, Fedro, se por acaso há ainda
precisão de um tal discurso, de ouvir sobre o Amor dizer a
verdade, mas com nomes e com a disposição de frases que por
acaso me tiver ocorrido.
Fedro então, disse Aristodemo, e os demais presentes pediram
lhe que, como ele próprio entendesse que devia falar, assim o
fizesse.
- Permite-me ainda, Fedro - retornou Sócrates - fazer umas
perguntinhas a Agatão, a fim de que tendo obtido o seu acordo,
eu já possa assim falar.
- Mas sim, permito - disse Fedro. - Pergunta!
- E então, disse
Aristodemo, Sócrates começou mais ou menos por esse ponto:
- Realmente, caro Agatão, bem me pareceste iniciar teu
discurso, quando dizias que primeiro se devia mostrar o próprio
Amor, qual a sua natureza, e depois as suas obras. Esse
começo, muito o admiro. Vamos então, a respeito do Amor, já
que em geral explicaste bem e magnificamente qual é a sua
natureza, dize-me também o seguinte: é de tal natureza o Amor
que é amor de algo ou de nada? Estou perguntando, não se é
de uma mãe ou de um pai - pois ridícula seria essa pergunta, se
Amor é amor de um pai ou ele uma mãe - mas é como se, a
respeito disso mesmo, de “pai”, eu perguntasse: “Porventura o
pai é pai de algo ou não? Ter-me-ias sem dúvida respondido, se
me quisesses dar uma bela resposta, que é de um filho ou de
uma filha que o pai é pai ou não?”
- Exatamente - disse Agatão.
- E também a mãe não é assim?
- Também - admitiu ele.
- Responde-me ainda, continuou Sócrates, mais um pouco, a
fim de melhor compreenderes o que quero. Se eu te
perguntasse: “E irmão, enquanto é justamente isso mesmo que
é, é irmão de algo ou não?”
- É, sim, disse ele.
- De um irmão ou ele uma irmã, não é? - Concordou.
- Tenta então, continuou Sócrates, também a respeito do Amor
dizer-me: o Amor é amor de nada ou de algo?
- De algo, sim.
- Isso então, continuou ele, guarda contigo, lembrando-te de
que é que ele é amor; agora dize-me apenas o seguinte: Será
que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não?
- Perfeitamente - respondeu o outro.
- E é quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele então
deseja e ama, ou quando não tem?
- Quando não tem, como é bem provável - disse Agatão.
- Observa bem, continuou Sócrates, se em vez de uma
probabilidade não é uma necessidade que seja assim, o que
deseja deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja,
se não for carente. É espantoso como me parece, Agatão, ser
uma necessidade; e a ti?
- Também a mim - disse ele.
- Tens razão. Pois porventura desejaria quem já é grande ser
grande, ou quem já é forte ser forte?
- Impossível, pelo que foi admitido.
- Com efeito, não seria carente disso o que justamente é isso.
- É verdade o que dizes.
- Se, com efeito, mesmo o forte quisesse ser forte, continuou
Sócrates, e o rápido ser rápido, e o sadio ser sadio - pois talvez
alguém pensasse que nesses e em todos os casos semelhantes
os que são tais e têm essas qualidades desejam o que
justamente têm, e é para não nos enganarmos que estou
dizendo isso - ora, para estes, Agatão, se atinas bem, é forçoso
que tenham no momento tudo aquilo que tem, quer queiram,
quer não, e isso mesmo, sim, quem é que poderia desejá-lo?
Mas quando alguém diz: “Eu, mesmo sadio, desejo ser sadio, e mesmo rico, ser rico, e desejo isso mesmo que tenho”,
poderíamos dizer-lhe: “O homem, tu que possuis riqueza, saúde
e fortaleza, o que queres é também no futuro possuir esses
bens, pois no momento, quer queiras quer não, tu os tens;
observa então se, quando dizes “desejo o que tenho comigo”,
queres dizer outra coisa senão isso: “quero que o que tenho
agora comigo, também no futuro eu o tenha.” Deixaria ele de
admitir?
Agatão, dizia Aristodemo, estava de acordo.
Disse então Sócrates:
- Não é isso então amar o que ainda não
está à mão nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso
que se tem conservado consigo e presente?
- Perfeitamente - disse Agatão.
- Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não
está a mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele
próprio e o de que é carente; tais são mais ou menos as coisas
de que há desejo e amor, não é?
- Perfeitamente - disse Agatão.
- Vamos então, continuou Sócrates, recapitulemos o que foi
dito. Não é certo que é o Amor, primeiro de certas coisas, e
depois, daquelas de que ele tem precisão?
- Sim - disse o outro.
- Depois disso então, lembra-te de que é que em teu discurso
disseste ser o Amor; se preferes, eu te lembrarei. Creio, com
efeito, que foi mais ou menos assim que disseste, que aos
deuses foram arranjadas suas questões através do amor do que
é belo, pois do que é feio não havia amor. Não era mais ou
menos assim que dizias?
- Sim, com efeito - disse Agatão.
- E acertadamente o dizes, amigo, declarou Sócrates; e se é
assim, não é certo que o Amor seria da beleza, mas não da
feiura? - Concordou.
- Não está então admitido que aquilo de que é carente e que
não tem é o que ele ama?
- Sim - disse ele.
- Carece então de beleza o Amor, e não a tem?
- É forçoso.
- E então? O que carece de beleza e de modo algum a possui,
porventura dizes tu que é belo?
- Não, sem dúvida.
- Ainda admites por conseguinte que o Amor é belo, se isso é
assim?
E Agatão:
- É bem provável, ó Sócrates, que nada sei do que
então disse?
- E no entanto, prosseguiu Sócrates, bem que foi belo o que
disseste, Agatão. Mas dize-me ainda uma pequena coisa: o que
é bom não te parece que também é belo?
- Parece-me, sim. - Se portanto o Amor é carente do que é belo, e o que é bom é
belo, também do que é bom seria ele carente.
- Eu não poderia, ó Sócrates, disse Agatão, contradizer-te; mas
seja assim como tu dizes.
- É a verdade, querido Agatão, que não podes contradizer, pois
a Sócrates não é nada difícil. E a ti eu te deixarei agora; mas o discurso que sobre o Amor eu
ouvi um dia, de uma mulher de Mantinéia, Diotima, que nesse
assunto era entendida e em muitos outros — foi ela que uma
vez, porque os atenienses ofereceram sacrifícios para conjurar a
peste, fez por dez anos recuar a doença, e era ela que me
instruía nas questões de amor — o discurso então que me fez
aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a partir do que foi
admitido por mim e por Agatão, com meus próprios recursos e
como eu puder. É de fato preciso, Agatão, como tu indicaste, primeiro discorrer sobre o próprio Amor, quem é ele e qual a
sua natureza e depois sobre as suas obras. Parece-me então
que o mais fácil é proceder como outrora a estrangeira, que
discorria interrogando-me, pois também eu quase que lhe dizia
outras tantas coisas tais quais agora me diz Agatão, que era o
Amor um grande deus, e era do que é belo; e ela me refutava,
exatamente com estas palavras, com que eu estou refutando a
este, que nem era belo segundo minha palavra, nem bom.
continua página 34...
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Apolodoro e um Companheiro(g)
Apolodoro e um Companheiro(h)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão.
De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara.
Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas.
Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)
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