Elias Canetti
AS ENTRANHAS DO PODER
Captura e Incorporação
Todo espaço livre que o detentor de poder cria em torno de si serve a
esse segundo propósito. Todos, mesmo a criatura mais inferior, buscam
impedir uma aproximação demasiada por parte de outrem. Onde quer
que se tenha estabelecido entre os homens uma forma qualquer de
convivência, ela se expressa em distâncias, distâncias estas que os livram
desse medo incessante de serem apanhados e agarrados. O simétrico,
que tanto chama a atenção em algumas civilizações antigas, deriva
também dessa distância uniforme que, em todas as direções, o homem
cria em torno de si. Nessas civilizações, a segurança é dada pela
distância, e assim ela se expressa também plasticamente. O detentor de
poder, de cuja existência depende a dos outros, compraz-se da maior e
mais nítida distância possível; é nisso, e não apenas em seu brilho, que
ele se equipara ao sol, ou, mais ainda, ao céu, como ocorre entre os
chineses. O acesso a ele é dificultado. Palácios com um número cada vez
maior de cômodos são construídos em torno dele. Cada portão, cada
porta é vigiada com a máxima atenção; contra a sua vontade, é
impossível entrar. De sua distante segurança, ele pode mandar agarrar
quem quer que seja, esteja onde estiver. Mas como agarrar a ele, cem
vezes isolado?
A incorporação propriamente dita da presa começa na boca. Para ela
conduzia originalmente o caminho de tudo quanto se comia: da mão
para a boca. Em muitas criaturas que não possuem braços para agarrar,
isso é feito com a própria boca, com seus dentes ou com um bico a ela
anteposto.
O instrumento de poder que mais chama a atenção, à disposição do
homem e de muitos animais, são os dentes. A leira na qual estão
ordenados e sua fulgurante lisura não são comparáveis a nenhuma outra
coisa presente no corpo ou neste vista em ação. Podem-se caracterizar
os dentes como a primeira de todas as ordens, uma ordem que
literalmente grita por reconhecimento geral; uma ordem que atua
exteriormente como uma ameaça, nem sempre visível, mas visível
sempre que se abre a boca, o que é frequente. O material de que se
compõem os dentes difere dos demais componentes do corpo que
despertam atenção; ele impressionaria mesmo que se tivessem apenas
dois dentes. Estes são lisos, duros, não cedem; pode-se comprimi-los
sem que seu volume se altere; a impressão que causam é a de pedras
incrustadas e muito bem polidas.
Desde muito cedo o homem empregou todos os tipos de pedras
como armas e ferramentas, mas um longo tempo se passou até que ele
fosse capaz de poli-las tão bem a ponto de conferir-lhes a lisura dos
dentes. É provável que estes lhe tenham servido de modelo nesse
aperfeiçoamento de suas ferramentas. Dentes de animais maiores já lhe
haviam sido, desde sempre, úteis. Pode ser que, em sua captura, ele
tenha corrido risco de vida, e esses dentes pareciam-lhe ainda encerrar
algo do poder do animal que o ameaçara com eles. O homem os
pendurava no corpo, como troféus e talismãs; os dentes podiam
transmitir a outros o pavor que ele próprio sentira diante deles. As
cicatrizes que lhe haviam sido provocadas por dentes, ele as trazia
orgulhoso no corpo; eram tidas por distinções e tão cobiçadas que, mais
tarde, passou-se a produzi-as artificialmente.
Rico e múltiplo é, pois, o efeito que os dentes provocam no homem,
tanto os de outros animais, mais fortes, quanto os seus próprios. Em
conformidade com seu caráter, eles se situavam a meio caminho entre
um componente inato do corpo e uma ferramenta; o fato de eles caírem
ou de se poder quebrá-los fê-los ainda mais semelhantes a uma
ferramenta.
A lisura e a ordem, propriedades manifestas dos dentes, transferiram-se
para a essência do poder de um modo geral. São inseparáveis dele, e a
primeira característica que se verifica em qualquer forma de poder.
Tudo começou com as ferramentas primitivas; com o crescimento do
poder, no entanto, cresceram também essas suas antigas propriedades.
O salto dado da pedra para o metal foi, talvez, o maior salto que se deu
no sentido de uma crescente lisura. Por mais bem lapidada que fosse a
pedra, a espada — primeiro de bronze, depois de ferro — era mais lisa.
O que verdadeiramente atrai e seduz no metal é o fato de ele ser liso
como nada mais o é. Nas máquinas e veículos de nosso mundo
moderno, essa lisura intensificou-se; ela se transformou numa lisura da
própria função. A linguagem é o que expressa mais claramente esse fato:
diz-se que alguma coisa caminha ou funciona sem tropeços [glatt]. O
que se quer dizer com isso é que se tem controle total e imperturbado
sobre um determinado processo, seja este de que natureza for. Na vida
moderna, a predileção pela lisura tomou conta de áreas nas quais, no
passado, buscava-se evitá-la. As casas e os móveis eram, na maioria das
vezes, adornados como o corpo e os membros humanos. O adorno
modificou-se, mas estava sempre presente; as pessoas aferravam-se
obstinadamente a ele, mesmo estando já perdido o seu significado
simbólico. Hoje, a lisura conquistou também as casas, seus muros, suas
paredes e os objetos que se colocam em seu interior. Desprezam-se os
adornos e enfeites, considerados de mau gosto. Fala-se em função,
clareza e utilidade, mas o que realmente triunfou foi a lisura e seu
inerente prestígio secreto do poder.
Nesse exemplo, extraído da nova arquitetura, torna-se já evidente
quão difícil seria separar aí a lisura da ordem. A história comum de
ambas é antiga, tão antiga quanto os dentes. A igualdade de toda uma
leira de dentes frontais, as distâncias perfeitas que os separam, serviram
de modelo para muitas ordenações. Pode-se supor que derivem
originalmente daí os grupos regulares de toda sorte que hoje nos
parecem naturais. A disposição ordenada dos destacamentos militares,
conforme a cria artificialmente o próprio homem, é vinculada pelo
mito aos dentes. Os soldados de Cadmo a brotar do chão foram
semeados sob a forma de dentes de dragão.
Decerto, o homem encontrou já na natureza outras ordenações — a
da grama, por exemplo, e a das árvores, mais rigorosa. Mas,
contrariamente à dos dentes, não as encontrou em si próprio; elas não
se vinculavam tão direta e incessantemente a sua absorção dos
alimentos, tampouco estavam tão ao alcance da mão. Foi sua atividade
como órgãos da mastigação o que tão enfaticamente chamou a atenção
do homem para a disposição ordenada dos dentes. E foi a queda de
muitos deles, e as dolorosas consequências desta, que o conscientizou
do significado dessa ordem.
Os dentes são os guardiões armados da boca. Esta, sendo um espaço
realmente exíguo, constitui o modelo de todas as prisões. Tudo o que cai
nela está perdido, e muitos seres vão parar vivos em seu interior. Um
grande número de animais mata sua presa somente na boca; alguns, nem
mesmo nela. A presteza com que a boca se abre, quando não permanece
já aberta à espreita, e a forma definitiva como ela, uma vez fechada,
assim permanece lembram as temidas características principais da
prisão. Não constituirá equívoco supor que esta última tenha realmente
sofrido uma influência sombria do modelo oferecido pela boca. Para os
primeiros homens, certamente não era apenas na boca das baleias que se
dispunha de espaço suficiente. Nesse lugar terrível, nada é capaz de florescer, ainda que fosse habitado por tempo suficiente. Ele é seco e
não permite a semeadura. Quando se tinham já quase exterminado as
bocas enormes e os dragões, achou-se um sucedâneo simbólico para
ambos: as prisões. No passado, quando eram ainda câmaras de tortura,
assemelhavam-se em muitos detalhes à boca hostil. O inferno tem ainda
hoje esse aspecto. Já as prisões propriamente ditas, pelo contrário,
tornaram-se puritanas: a lisura dos dentes conquistou o mundo; as
paredes das celas são inteiramente lisas, e reduzidíssima é a fresta por
onde entra a luz. Para o prisioneiro, a liberdade é todo espaço para
além dos dentes cerrados que as paredes nuas de uma cela hoje
representam.
A estreita garganta pela qual tem, então, de passar o que foi capturado
constitui o último de todos os pavores para aqueles poucos que ainda
permanecem vivos por tanto tempo. A fantasia humana sempre se
ocupou dessas etapas da incorporação. A boca obstinadamente aberta
das grandes feras que ameaçavam o homem perseguiu-o até em seus
sonhos e mitos. Viagens exploratórias por suas goelas abaixo não lhe
eram menos importantes do que aquelas pelos mares, e, certamente,
eram tão perigosas quanto estas. Alguns, já sem esperanças, foram
resgatados ainda com vida da boca dessas feras, e carregaram consigo
pela vida inteira as cicatrizes de seus dentes.
É longo o caminho que a presa percorre pelo corpo. Nesse caminho,
ela é lentamente consumida; tudo quanto nela tem uma aplicação é-lhe
retirado. O que sobra é lixo e fedor.
Tal processo, no qual culmina toda conquista animal, é instrutivo no
que se refere à essência do poder em si. Quem quer que queira reinar
sobre os homens busca rebaixá-los, surrupiar-lhes a resistência e os
direitos, até tê-los impotentes diante de si, feito animais. E é como
animais que os usa; ainda que não lhes diga, tem sempre claro para si
próprio quão pouco os homens significam para ele; para os íntimos, dirá
deles que são ovelhas ou gado. Sua meta última é sempre incorporá-los e
consumi-los. É-lhe indiferente o que restará deles. Quanto pior os tiver
tratado, tanto mais os desprezará. E quando não forem mais de valia
alguma, livrar-se-á deles, cuidando para que não empesteiem o ar de sua
casa.
Não ousará, porém, identificar para si próprio todos os estágios desse
processo. É possível que, se for um amante das afirmações ousadas,
ainda admita para os íntimos a degradação dos homens à condição de
animais que conseguiu. Como, no entanto, não manda abater seus
súditos em matadouros, nem os emprega para alimentar de fato o
próprio corpo, negará que os consome e digere. É, pelo contrário, ele
quem lhes dá de comer. Bastante fácil é, pois, não enxergar o cerne de
tais processos, uma vez que o homem também mantém animais que não
mata de imediato, ou não mata nunca, pois eles lhe são mais úteis para
outras coisas.
Independentemente, porém, do detentor de poder, capaz de
concentrar tanto em suas mãos, a relação de todo homem com seu
próprio excremento pertence também à esfera do poder. Nada
pertenceu em maior medida a uma pessoa do que aquilo que se
transformou em excremento. A pressão constante sob a qual se encontra
a presa transformada em comida, durante todo o longo tempo que
peregrina pelo corpo; sua dissolução e a íntima conexão que estabelece
com aquele que a digere; o completo e definitivo desaparecimento
primeiramente de todas as funções e, depois, de todas as formas que um
dia compuseram sua existência; a equiparação ou assimilação ao corpo
já existente desse que a digere — tudo isso pode muito bem ser visto
como o fenômeno mais central, ainda que mais recôndito também, do
poder. Trata-se de um fenômeno tão óbvio, automático e tão além de
todo o consciente, que se lhe subestima o significado. Tende-se a
enxergar apenas os milhares de divertimentos do poder, os quais se
desenrolam na superfície; estes, porém, compõem-lhe a porção mais
minúscula. Mais abaixo, o que se faz é tão somente digerir e digerir, dia
após dia. Algo estranho é apanhado, reduzido, incorporado e, a partir
de dentro, assimilado àquele que o digeriu e que vive graças unicamente
a esse processo. Se tal processo é interrompido, ele logo encontrará o
seu m; disso, tem sempre consciência. Claro está, porém, que todas as
fases desse processo — e não apenas as exteriores e semiconscientes —
hão de deixar suas marcas psíquicas. Encontrar-lhes as correspondências
nesse terreno não é coisa fácil; no curso desta investigação, alguns
vestígios importantes oferecer-se-ão como que por si sós à pesquisa.
Destes, particularmente instrutivos revelar-se-ão, como se verá, as
manifestações patológicas da melancolia.
O excremento, que é o que resta de tudo, apresenta-se carregado de
nossas culpas. Nele deixa-se reconhecer tudo quanto matamos. Ele é a
soma comprimida de todos os indícios existentes contra nós. Na
qualidade de nosso pecado cotidiano, constante, ininterrupto, ele fede e
clama aos céus. Chama a atenção o modo como as pessoas se isolam
com seus excrementos. Livram-se deles em cômodos próprios, que
servem unicamente a esse propósito; tal isolamento constitui seu
momento mais íntimo; verdadeiramente sozinhas, as pessoas só ficam
com seus excrementos. É evidente que se envergonham deles. Eles são o
selo antiquíssimo daquele fenômeno do poder que se chama digestão,
um fenômeno que se desenrola às escondidas e que, sem esse selo,
permaneceria oculto.
continua página 317...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(b)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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