sábado, 22 de novembro de 2025

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Captura e Incorporação(b)

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     Captura e Incorporação

      Todo espaço livre que o detentor de poder cria em torno de si serve a esse segundo propósito. Todos, mesmo a criatura mais inferior, buscam impedir uma aproximação demasiada por parte de outrem. Onde quer que se tenha estabelecido entre os homens uma forma qualquer de convivência, ela se expressa em distâncias, distâncias estas que os livram desse medo incessante de serem apanhados e agarrados. O simétrico, que tanto chama a atenção em algumas civilizações antigas, deriva também dessa distância uniforme que, em todas as direções, o homem cria em torno de si. Nessas civilizações, a segurança é dada pela distância, e assim ela se expressa também plasticamente. O detentor de poder, de cuja existência depende a dos outros, compraz-se da maior e mais nítida distância possível; é nisso, e não apenas em seu brilho, que ele se equipara ao sol, ou, mais ainda, ao céu, como ocorre entre os chineses. O acesso a ele é dificultado. Palácios com um número cada vez maior de cômodos são construídos em torno dele. Cada portão, cada porta é vigiada com a máxima atenção; contra a sua vontade, é impossível entrar. De sua distante segurança, ele pode mandar agarrar quem quer que seja, esteja onde estiver. Mas como agarrar a ele, cem vezes isolado?
     A incorporação propriamente dita da presa começa na boca. Para ela conduzia originalmente o caminho de tudo quanto se comia: da mão para a boca. Em muitas criaturas que não possuem braços para agarrar, isso é feito com a própria boca, com seus dentes ou com um bico a ela anteposto.
     O instrumento de poder que mais chama a atenção, à disposição do homem e de muitos animais, são os dentes. A leira na qual estão ordenados e sua fulgurante lisura não são comparáveis a nenhuma outra coisa presente no corpo ou neste vista em ação. Podem-se caracterizar os dentes como a primeira de todas as ordens, uma ordem que literalmente grita por reconhecimento geral; uma ordem que atua exteriormente como uma ameaça, nem sempre visível, mas visível sempre que se abre a boca, o que é frequente. O material de que se compõem os dentes difere dos demais componentes do corpo que despertam atenção; ele impressionaria mesmo que se tivessem apenas dois dentes. Estes são lisos, duros, não cedem; pode-se comprimi-los sem que seu volume se altere; a impressão que causam é a de pedras incrustadas e muito bem polidas.
     Desde muito cedo o homem empregou todos os tipos de pedras como armas e ferramentas, mas um longo tempo se passou até que ele fosse capaz de poli-las tão bem a ponto de conferir-lhes a lisura dos dentes. É provável que estes lhe tenham servido de modelo nesse aperfeiçoamento de suas ferramentas. Dentes de animais maiores já lhe haviam sido, desde sempre, úteis. Pode ser que, em sua captura, ele tenha corrido risco de vida, e esses dentes pareciam-lhe ainda encerrar algo do poder do animal que o ameaçara com eles. O homem os pendurava no corpo, como troféus e talismãs; os dentes podiam transmitir a outros o pavor que ele próprio sentira diante deles. As cicatrizes que lhe haviam sido provocadas por dentes, ele as trazia orgulhoso no corpo; eram tidas por distinções e tão cobiçadas que, mais tarde, passou-se a produzi-as artificialmente.
     Rico e múltiplo é, pois, o efeito que os dentes provocam no homem, tanto os de outros animais, mais fortes, quanto os seus próprios. Em conformidade com seu caráter, eles se situavam a meio caminho entre um componente inato do corpo e uma ferramenta; o fato de eles caírem ou de se poder quebrá-los fê-los ainda mais semelhantes a uma ferramenta.
      A lisura e a ordem, propriedades manifestas dos dentes, transferiram-se para a essência do poder de um modo geral. São inseparáveis dele, e a primeira característica que se verifica em qualquer forma de poder. Tudo começou com as ferramentas primitivas; com o crescimento do poder, no entanto, cresceram também essas suas antigas propriedades. O salto dado da pedra para o metal foi, talvez, o maior salto que se deu no sentido de uma crescente lisura. Por mais bem lapidada que fosse a pedra, a espada — primeiro de bronze, depois de ferro — era mais lisa. O que verdadeiramente atrai e seduz no metal é o fato de ele ser liso como nada mais o é. Nas máquinas e veículos de nosso mundo moderno, essa lisura intensificou-se; ela se transformou numa lisura da própria função. A linguagem é o que expressa mais claramente esse fato: diz-se que alguma coisa caminha ou funciona sem tropeços [glatt]. O que se quer dizer com isso é que se tem controle total e imperturbado sobre um determinado processo, seja este de que natureza for. Na vida moderna, a predileção pela lisura tomou conta de áreas nas quais, no passado, buscava-se evitá-la. As casas e os móveis eram, na maioria das vezes, adornados como o corpo e os membros humanos. O adorno modificou-se, mas estava sempre presente; as pessoas aferravam-se obstinadamente a ele, mesmo estando já perdido o seu significado simbólico. Hoje, a lisura conquistou também as casas, seus muros, suas paredes e os objetos que se colocam em seu interior. Desprezam-se os adornos e enfeites, considerados de mau gosto. Fala-se em função, clareza e utilidade, mas o que realmente triunfou foi a lisura e seu inerente prestígio secreto do poder.
     Nesse exemplo, extraído da nova arquitetura, torna-se já evidente quão difícil seria separar aí a lisura da ordem. A história comum de ambas é antiga, tão antiga quanto os dentes. A igualdade de toda uma leira de dentes frontais, as distâncias perfeitas que os separam, serviram de modelo para muitas ordenações. Pode-se supor que derivem originalmente daí os grupos regulares de toda sorte que hoje nos parecem naturais. A disposição ordenada dos destacamentos militares, conforme a cria artificialmente o próprio homem, é vinculada pelo mito aos dentes. Os soldados de Cadmo a brotar do chão foram semeados sob a forma de dentes de dragão.
     Decerto, o homem encontrou já na natureza outras ordenações — a da grama, por exemplo, e a das árvores, mais rigorosa. Mas, contrariamente à dos dentes, não as encontrou em si próprio; elas não se vinculavam tão direta e incessantemente a sua absorção dos alimentos, tampouco estavam tão ao alcance da mão. Foi sua atividade como órgãos da mastigação o que tão enfaticamente chamou a atenção do homem para a disposição ordenada dos dentes. E foi a queda de muitos deles, e as dolorosas consequências desta, que o conscientizou do significado dessa ordem.
     Os dentes são os guardiões armados da boca. Esta, sendo um espaço realmente exíguo, constitui o modelo de todas as prisões. Tudo o que cai nela está perdido, e muitos seres vão parar vivos em seu interior. Um grande número de animais mata sua presa somente na boca; alguns, nem mesmo nela. A presteza com que a boca se abre, quando não permanece já aberta à espreita, e a forma definitiva como ela, uma vez fechada, assim permanece lembram as temidas características principais da prisão. Não constituirá equívoco supor que esta última tenha realmente sofrido uma influência sombria do modelo oferecido pela boca. Para os primeiros homens, certamente não era apenas na boca das baleias que se dispunha de espaço suficiente. Nesse lugar terrível, nada é capaz de florescer, ainda que fosse habitado por tempo suficiente. Ele é seco e não permite a semeadura. Quando se tinham já quase exterminado as bocas enormes e os dragões, achou-se um sucedâneo simbólico para ambos: as prisões. No passado, quando eram ainda câmaras de tortura, assemelhavam-se em muitos detalhes à boca hostil. O inferno tem ainda hoje esse aspecto. Já as prisões propriamente ditas, pelo contrário, tornaram-se puritanas: a lisura dos dentes conquistou o mundo; as paredes das celas são inteiramente lisas, e reduzidíssima é a fresta por onde entra a luz. Para o prisioneiro, a liberdade é todo espaço para além dos dentes cerrados que as paredes nuas de uma cela hoje representam.
      A estreita garganta pela qual tem, então, de passar o que foi capturado constitui o último de todos os pavores para aqueles poucos que ainda permanecem vivos por tanto tempo. A fantasia humana sempre se ocupou dessas etapas da incorporação. A boca obstinadamente aberta das grandes feras que ameaçavam o homem perseguiu-o até em seus sonhos e mitos. Viagens exploratórias por suas goelas abaixo não lhe eram menos importantes do que aquelas pelos mares, e, certamente, eram tão perigosas quanto estas. Alguns, já sem esperanças, foram resgatados ainda com vida da boca dessas feras, e carregaram consigo pela vida inteira as cicatrizes de seus dentes.
     É longo o caminho que a presa percorre pelo corpo. Nesse caminho, ela é lentamente consumida; tudo quanto nela tem uma aplicação é-lhe retirado. O que sobra é lixo e fedor.
      Tal processo, no qual culmina toda conquista animal, é instrutivo no que se refere à essência do poder em si. Quem quer que queira reinar sobre os homens busca rebaixá-los, surrupiar-lhes a resistência e os direitos, até tê-los impotentes diante de si, feito animais. E é como animais que os usa; ainda que não lhes diga, tem sempre claro para si próprio quão pouco os homens significam para ele; para os íntimos, dirá deles que são ovelhas ou gado. Sua meta última é sempre incorporá-los e consumi-los. É-lhe indiferente o que restará deles. Quanto pior os tiver tratado, tanto mais os desprezará. E quando não forem mais de valia alguma, livrar-se-á deles, cuidando para que não empesteiem o ar de sua casa.
     Não ousará, porém, identificar para si próprio todos os estágios desse processo. É possível que, se for um amante das afirmações ousadas, ainda admita para os íntimos a degradação dos homens à condição de animais que conseguiu. Como, no entanto, não manda abater seus súditos em matadouros, nem os emprega para alimentar de fato o próprio corpo, negará que os consome e digere. É, pelo contrário, ele quem lhes dá de comer. Bastante fácil é, pois, não enxergar o cerne de tais processos, uma vez que o homem também mantém animais que não mata de imediato, ou não mata nunca, pois eles lhe são mais úteis para outras coisas.
     Independentemente, porém, do detentor de poder, capaz de concentrar tanto em suas mãos, a relação de todo homem com seu próprio excremento pertence também à esfera do poder. Nada pertenceu em maior medida a uma pessoa do que aquilo que se transformou em excremento. A pressão constante sob a qual se encontra a presa transformada em comida, durante todo o longo tempo que peregrina pelo corpo; sua dissolução e a íntima conexão que estabelece com aquele que a digere; o completo e definitivo desaparecimento primeiramente de todas as funções e, depois, de todas as formas que um dia compuseram sua existência; a equiparação ou assimilação ao corpo já existente desse que a digere — tudo isso pode muito bem ser visto como o fenômeno mais central, ainda que mais recôndito também, do poder. Trata-se de um fenômeno tão óbvio, automático e tão além de todo o consciente, que se lhe subestima o significado. Tende-se a enxergar apenas os milhares de divertimentos do poder, os quais se desenrolam na superfície; estes, porém, compõem-lhe a porção mais minúscula. Mais abaixo, o que se faz é tão somente digerir e digerir, dia após dia. Algo estranho é apanhado, reduzido, incorporado e, a partir de dentro, assimilado àquele que o digeriu e que vive graças unicamente a esse processo. Se tal processo é interrompido, ele logo encontrará o seu m; disso, tem sempre consciência. Claro está, porém, que todas as fases desse processo — e não apenas as exteriores e semiconscientes — hão de deixar suas marcas psíquicas. Encontrar-lhes as correspondências nesse terreno não é coisa fácil; no curso desta investigação, alguns vestígios importantes oferecer-se-ão como que por si sós à pesquisa. Destes, particularmente instrutivos revelar-se-ão, como se verá, as manifestações patológicas da melancolia.
     O excremento, que é o que resta de tudo, apresenta-se carregado de nossas culpas. Nele deixa-se reconhecer tudo quanto matamos. Ele é a soma comprimida de todos os indícios existentes contra nós. Na qualidade de nosso pecado cotidiano, constante, ininterrupto, ele fede e clama aos céus. Chama a atenção o modo como as pessoas se isolam com seus excrementos. Livram-se deles em cômodos próprios, que servem unicamente a esse propósito; tal isolamento constitui seu momento mais íntimo; verdadeiramente sozinhas, as pessoas só ficam com seus excrementos. É evidente que se envergonham deles. Eles são o selo antiquíssimo daquele fenômeno do poder que se chama digestão, um fenômeno que se desenrola às escondidas e que, sem esse selo, permaneceria oculto.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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