David Hume
Seção VI
DA PROBABILIDADE[1]
Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa ignorância da causa real de qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento gerando equivalente tipo de crença ou opinião.
Há certamente uma probabilidade que resulta de uma superioridade de possibilidades a
favor de uma das partes e, à medida que esta superioridade aumenta excedendo as
possibilidades opostas, a probabilidade recebe um aumento proporcional gerando maior grau
de crença ou assentimento à parte em que descobrimos a superioridade. Se um dado fosse
marcado com um algarismo ou mesmo número de pontos em quatro faces e com outro
algarismo ou mesmo número de pontos nas duas restantes, seria mais provável que saísse
uma daquelas do que destas faces; todavia, se mil faces fossem marcadas de modo idêntico e
apenas uma diferente, a probabilidade seria muito maior, e nossa crença ou expectativa do
evento seria mais firme e mais segura. Este processo do pensamento ou raciocínio pode
parecer sem importância e evidente; porém, para quem o examina com mais cuidado, pode,
talvez, constituir assunto de curiosa especulação.
Parece evidente que, quando o espírito se antecipa para desvendar o evento que
resultará do lançamento de tal dado, considera como igualmente provável que saia qualquer
uma das faces, pois é inerente ao acaso tornar inteiramente iguais todos os eventos
particulares compreendidos nele. Mas, verificando que maior número de faces aparece mais
em um evento que no outro, o espírito converge com mais frequência para ele e o encontra
muitas vezes ao considerar as várias possibilidades das quais depende o resultado definitivo.
Esta afluência de várias inspeções sobre um único evento particular gera imediatamente, por
uma inexplicável disposição natural, o sentimento da crença, dando primazia a este evento
sobre seu antagonista, que é apoiado por pequeno número de inspeções e recorre com menos
frequência ao espírito. Se concordamos que a crença nada mais é do que uma concepção de
um objeto, mais firme e mais forte do que aquela que acompanha as ficções da imaginação,
podemos, talvez, explicar até certo ponto esta operação. A confluência de várias inspeções ou
de olhadas rápidas imprime a ideia com mais força em nossa imaginação, dá-lhe força e vigor
superiores, torna mais sensível sua influência sobre as paixões e inclinações e, numa palavra,
origina esta confiança e segurança que constituem a natureza da crença e da opinião.
Com a probabilidade das causas ocorre o mesmo que com a dos acasos. Há algumas
causas que são inteiramente uniformes e constantes na produção de determinado efeito e não
apresentam nenhum exemplo de falha ou irregularidade em seu procedimento. O fogo e a
água têm sempre queimado ou asfixiado a todo ser humano; a produção do movimento pelo
impulso e gravidade é uma lei universal que até agora se tem admitido sem exceção. Há,
contudo, outras causas que têm sido consideradas mais irregulares e incertas, por exemplo, o
ruibarbo nem sempre se tem mostrado purgativo, nem o ópio soporífero, a todas as pessoas
que têm tomado esses remédios. Em verdade, quando uma causa deixa de produzir seu efeito
habitual, os filósofos não atribuem esta falha a uma irregularidade na natureza, pelo contrário,
supõem que algumas causas desconhecidas, situadas na estrutura dos elementos, têm
impedido a operação. Contudo, nossos raciocínios e conclusões sobre o evento permanecem
os mesmos como se este prin cípio não existisse. Como o costume nos determina a transferir o
passado para o futuro em todas as nossas inferências, esperamos — se o passado tem sido
inteiramente regular e uniforme — o mesmo evento com a máxima segurança e não
toleramos qualquer suposição contrária. Mas, se temos encontrado que diferentes efeitos
acompanham causas que em aparência são exatamente similares, todos estes efeitos variados
devem apresentar-se ao espírito ao transferir o passado para o futuro, e devemos considerá
los quando determinamos a probabilidade do evento. Embora damos preferência ao efeito que
tem sido mais usual e creiamos que ele existirá, não devemos descuidar dos outros efeitos,
porém devemos assinalar para cada um deles uma autoridade e peso específicos, em
proporção à maior ou menor frequência em que os temos encontrado. E mais provável — na
maioria dos países europeus — que geará em algum dia de janeiro, e é improvável que
durante este mês não geará: embora esta probabilidade varie de acordo com os diferentes
climas, ela aproxima-se da certeza nos países nórdicos. Parece, pois, evidente que, quando
transferimos o passado para o futuro, a fim de determinarmos o efeito que resultará de
alguma causa, transferimos todos os diferentes eventos na mesma proporção em que têm
aparecido no passado e consideramos que um se tem revelado cem vezes, por exemplo,
essoutro dez vezes e aqueloutro, uma só vez. Como um grande número de inspeções afluem
aqui sobre um único evento, elas o fortificam e o confirmam na imaginação, engendrando
este sentimento que denominamos crença; e confere ao seu objeto preferência sobre o evento
oposto que não é apoiado pelo mesmo número de experimentos e não retorna com tanta
frequência ao pensamento quando transferimos o passado para o futuro. Se alguém tentar
explicar este processo do espírito em qualquer um dos sistemas filosóficos existentes, sentir-se-á consciente da dificuldade. De minha parte, dar-me-ei por satisfeito se as presentes
indicações incitarem a curiosidade dos filósofos e os fizerem ver quão deficientes são todas
as teorias vigentes quando discorrem sobre objetos tão curiosos e sublimes.
_________________
Notas:
[1] Locke divide todos os argumentos em demonstrativos e prováveis. Segundo este
ponto de vista, devemos afirmar que é apenas provável que todos os homens devem morrer
ou que o sol nascerá amanhã. Mas para conformar nossa linguagem ao uso corrente, devemos
dividir os argumentos em demonstrações, provas e probabilidades. Por prova, entendemos
aqueles argumentos derivados da experiência que não deixam lugar à dúvida ou à oposição
(Hume).
A discriminação entre vários graus de certeza, correspondentes respectivamente ao
conhecimento, provas e probabilidades, estabelece de maneira mais categórica a dicotomia
entre conhecimento e crença. Sugere-nos, assim, que podemos estabelecer, como escreve
acertadamente Mossner, a seguinte classificação: 1) o conhecimento dotado de certeza
absoluta, atingível através da demonstração e enquadrável pela esfera do a priori; 2) a crença,
alcançável em dois níveis no primeiro, denominado provas, em que não havendo experiência
contra experiência a crença opera com todo o vigor. Trata-se, portanto, dos argumentos da
experiência isentos de dúvida e incerteza, a saber, o “nascimento do sol” ou que “todos os
homens morrem”. No segundo nível, situam-se as probabilidades ou argumentos da
experiência suscetíveis de dúvidas, em que a crença pode variar da relativamente baixa para a
relativamente alta. (Veja-se de Mossner, “Introduction to Modernity”, p. 49, in A Symposion
on Eighteenth Centuny, Mollenauer (org.), Austin, 1965.) Devemos todavia, evitar de
interpretar erroneamente o sentido de “probabilidades” na filosofia humeana. Não se trata de
cálculo matemático de probabilidades. Em nenhum de seus textos Hume faz qualquer
referência ao emprego das probabilidades em sentido técnico. Ao contrário, trata-se apenas de
mostrar o mecanismo psicológico pelo qual a crença se fixa na imaginação. [N. do T.]
continua página 44...
____________________
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VI
Nenhum comentário:
Postar um comentário