David Hume
Seção VIII
DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE[1]
PRIMEIRA PARTE
Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão da liberdade e da
necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos que todos os homens, tanto eruditos
como ignorantes, sempre têm sustentado idêntica opinião acerca do assunto a ponto de fazer
crer que algumas definições inteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia.
Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas as partes e que tem arrastado
os filósofos a tal labirinto de sofismas obscuros que não espanta se um leitor amante da
tranquilidade queira fazer-se de surdo sobre ela, já que não espera do debate instrução ou
entretenimento. Contudo, o tipo de argumentação proposto aqui poderá, talvez, servir para
renovar sua curiosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma solução
parcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade com raciocínios
complicados e obscuros.
Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estado concordes com as
doutrinas da necessidade e da liberdade —segundo qualquer significado razoável que se
possa atribuir a estes termos — e que até agora toda a controvérsia tem girado em torno de
meras palavras.[2]
Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se acha animada por
uma força necessária, e que todo efeito natural está determinado com exatidão pela energia de
sua causa, de forma que nenhum outro efeito poderia resultar dela em tais condições
particulares. O grau e a direção de cada movimento estão prescritos pelas leis da natureza
com tal exatidão, que seria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se
produz em realidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos. Portanto,
se quisermos conceber uma ideia justa e exata da necessidade, devemos examinar a origem
dessa ideia quando a aplicarmos às ações corporais.
Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor ideia de necessidade ou de
conexão entre os objetos naturais, se todas as cenas da natureza estivessem continuamente
mudando, de modo que não houvesse dois eventos semelhantes e se cada objeto fosse
completa mente novo, sem nenhuma similitude com qualquer coisa que foi antes vista.
Poderíamos dizer, em tal suposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um
foi produzido pelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida dos
homens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobre as operações
naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias de acesso do espírito na apreensão
de uma existência real. Portanto, nossa ideia de necessidade e de causa surge inteiramente da
uniformidade verificada nas operações da natureza, na qual os objetos semelhantes estão
constantemente conjuntados e o espírito é determinado pelo costume a inferir um pelo
aparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidade que
atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos semelhantes e da consequente
inferência de um para o outro, não temos nenhuma ideia de qualquer necessidade ou
conexão.[3]
Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido —sem nenhuma dúvida ou
hesitação — que estas duas circunstâncias ocorrem em suas ações voluntárias e .nas
operações do espírito; conclui-se daqui que todos os homens sempre têm estado de acordo
com a doutrina da necessidade e que, até o presente, têm discutido simplesmente por não se
terem entendido entre si.
Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circunstância, isto é, da
conjunção constante e regular dos eventos similares, com as seguintes considerações. Toda a
gente reconhece que há grande uniformidade nas ações humanas em todas as nações e em
todas as épocas, e que a natureza humana sempre permanece igual em seus princípios e em
suas operações.[4] Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos eventos
resultam das mesmas causas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, a
generosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus e distribuídas pela
sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e
empreendimentos que se têm sempre observado entre os homens. Quereis conhecer os
sentimentos, as inclinações e o modo de viver dos gregos e dos romanos? Estudai bem o
temperamento e as ações dos franceses e dos ingleses: não estareis muito equivocado se
transferirdes aos primeiros a maioria das observações que fizestes sobre os segundos. A
humanidade é bastante parecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa
de novo ou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir os
princípios universais e constantes da natureza humana, mostrando-nos os homens em
variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quais podemos formar
nossas observações e ficarmos familiarizados com as fontes regulares da ação e da conduta
humana. Os relatos de guerras, intrigas, partidos políticos e revoluções são outras tantas
coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou o filósofo moral fixa os princípios
de sua ciência, do mesmo modo que o médico ou o filósofo da natureza se familiariza com a
natureza das plantas, dos minerais e de outros objetos externos, pelas experiências que fazem
sobre eles. A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates são
tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, como os homens
descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens que governam atualmente o
mundo.
Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descrevesse a existência de
homens totalmente diferentes daqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de
avareza, de ambição ou de espírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, da
generosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a falsidade do relato e lhe
demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesse acumulado sua
narrativa com contos de centauros e dragões, milagres e prodígios. E se quisermos
desacreditar alguma falsificação histórica, não devemos usar argumentos mais adequados do
que os que provam que as ações atribuídas a uma pessoa são diretamente contrárias à ordem
natural das coisas, e que nenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la
induzido a tal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descreve
a coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinho multidões, e
quando descreve sua força e sua atividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes.
Deste modo, admitimos facilmente a uniformidade nos motivos e ações humanas, como
também nas operações do corpo.
Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiência adquirida por uma longa
vida, pela variedade de ocupações e convivência, instruindo-nos acerca dos princípios da
natureza humana e regrando tanto nossa conduta fritura como nossa especulação. Por meio
deste guia, elevamo-nos ao conhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de
suas ações, de suas manifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a
interpretação de suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. As
observações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutor
da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações. Nem os pretextos e
nem as aparências voltam a enganar-nos. Supõe-se que as declarações feitas em público são
especiosos disfarces de uma causa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio
peso e autoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta frequência proclamado, jamais
se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seus condutores e apenas, às vezes,
de indivíduos de qualquer posição ou categoria. Mas, se não houvesse uniformidade nas
ações humanas, e se todo experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e
anômalo, seria impossível coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma
experiência, por mais que a reflexão a houvesse assimilado, serviria para algum fim. Porque o
velho agricultor é mais hábil em sua profissão do que o jovem principiante, apenas porque há
uma certa uniformidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, e porque
a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras que governam e dirigem estas
operações.
Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanas se estenda de
tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias, sempre agirão exatamente da
mesma maneira, sem fazer nenhuma concessão à diversidade dos caracteres, dos preconceitos
e das opiniões. Semelhante uniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma
parte da natureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferentes homens,
tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, sem dúvida, ainda
supõem um grau de uniformidade e regularidade.[5]
Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países diferentes? Daqui
aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam o espírito humano
desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. O comportamento e a conduta de
um sexo são muito diferentes dos do outro? Deste modo é que chegamos a conhecer os
diferentes caracteres que a natureza tem imprimido nos sexos e que ela mantém com
regularidade e constância. As ações de uma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes
períodos de sua vida, desde sua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias considerações
gerais acerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentes
máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres
peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; de outro modo, nosso
conhecimento das pessoas e nossa observação de sua conduta jamais nos poderiam ensinar
acerca de suas disposições ou servir para dirigir nosso comportamento diante delas.
Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexão regular com
quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regras de conduta que se
estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemos saber que juízo devemos
formar das ações tão irregulares e extraordinárias, poderíamos considerar as opiniões que
nutrimos comumente com respeito a eventos irregulares, que aparecem na ordem natural das
coisas e nas operações dos objetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos
efeitos usuais com igual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte pode
fracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seres sensatos e
inteligentes.
O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas, atribui a
incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo das últimas as frequentes falhas
em sua influência habitual, embora não encontrem obstáculos impedindo sua ação. Mas os
filósofos, verificando que na maioria dos fenômenos naturais há uma enorme variedade de
fontes e princípios ocultos em razão de sua pequenez ou de seu afastamento, consideram que,
pelo menos, é possível que a oposição dos eventos não proceda de uma contingência da
causa, mas da operação desconhecida de causas contrárias. Esta possibilidade se converte em
certeza, quando observam posteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma
contrariedade de efeitos sempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua
mútua oposição. Um camponês, não encontrando melhor explicação, para a parada de um
relógio, diz que geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente que
igual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre as engrenagens,
não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão de poeira que detém todo o
movimento. Observando vários casos paralelos, os filósofos estabelecem como um princípio
que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e que sua aparente
incerteza em certos casos decorre da desconhecida oposição de causas contrárias.
Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomas usuais de
saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando os medicamentos não atuam com
seus poderes habituais; quando eventos irregulares resultam de uma causa determinada, o
filósofo e o médico não se surpreendem com isto, nem são jamais tentados a negar — em sua
totalidade — a necessidade e a uniformidade daqueles princípios que regulam a organização
corporal. Entendem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que
várias forças desconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que
devemos sempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, os
eventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de que as leis
naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções e movimentos
internos.
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[1] Os dois níveis explicativos da causalidade (veja-se nota 50, seção VII) são
circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo
fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade, como todas as disciplinas compreendidas
pela ciência da natureza humana. E deste modo que a causalidade se instala como princípio
explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade insita-nos fenômenos naturais (base de
toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de
descortinar a ideia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É
com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da ideia de conexão necessária,
a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade: deu continuidade lógica aos argumentos
baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da ideia de “necessidade’, pois dela
irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da ideia de “liberdade”. [N.
do T.]
[2] Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na
segunda seção: busca da impressão originária da ideia de necessidade. [N. do T.]
[3] O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma
uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas
“operações dos corpos” e, de outro lado, em consequência desta constatação, podemos
levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]
[4] O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e
dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos — do fim do século XVI
ao fim do século XVII" (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of
Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das ideias
centrais de sua filosofia. [N. do T.]
[5] Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das
ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações
semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais,
devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VII(1)
continua página 57...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.a)
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