sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.a)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção VIII

DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE[1]
PRIMEIRA PARTE

     Seria razoável esperar que acerca das questões que têm sido examinadas e discutidas cuidadosamente desde os primórdios da ciência e da filosofia houvesse, ao menos, acordo entre os disputantes sobre o significado de todos os termos e, transcorridos dois mil anos de inquirições, houvessem passado das palavras para o objetivo verdadeiro e real da controvérsia. Pois não seria mais fácil definir com exatidão os termos empregados no raciocínio e não considerar as definições um mero reflexo de palavras, mas objeto de exame e investigações futuras? Mas se considerarmos o assunto mais de perto, seremos obrigados a tirar uma conclusão oposta, fundada nesta única circunstância: visto que uma controvérsia perdura e continua ainda sem decisão, deve-se presumir que há alguma ambiguidade conceitual e que os adversários atribuem ideias diferentes para os termos empregados na controvérsia. Com efeito, supondo-se que as faculdades espirituais são naturalmente semelhantes em todos os indivíduos —de outro modo nada seria mais infrutífero do que raciocinar e discutir juntos — seria impossível, se os homens atribuíssem as mesmas ideias para os seus termos, que continuassem por tanto tempo a formular opiniões diferentes sobre o mesmo objeto, especialmente se comunicam seus pareceres e cada uma das facções busca argumentos em toda parte a fim de obter a vitória sobre seus antagonistas. Certamente, se os homens enveredam por problemas inteiramente afastados da capacidade humana, tais como os referentes à origem do mundo, à organização do sistema intelectual ou ao reino dos espíritos, podem longa e infrutiferamente discutir sem atingir uma solução conclusiva. Mas, se o problema diz respeito a qualquer objeto da vida diária e da experiência, pensar-se-ia que nada poderia manter o debate indecidido por tanto tempo, exceto algumas expressões ambíguas, que mantêm ainda os adversários à distância, impedindo-os de se porem em íntimo contato.
     Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão da liberdade e da necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos que todos os homens, tanto eruditos como ignorantes, sempre têm sustentado idêntica opinião acerca do assunto a ponto de fazer crer que algumas definições inteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia. Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas as partes e que tem arrastado os filósofos a tal labirinto de sofismas obscuros que não espanta se um leitor amante da tranquilidade queira fazer-se de surdo sobre ela, já que não espera do debate instrução ou entretenimento. Contudo, o tipo de argumentação proposto aqui poderá, talvez, servir para renovar sua curiosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma solução parcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade com raciocínios complicados e obscuros.  
     Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estado concordes com as doutrinas da necessidade e da liberdade —segundo qualquer significado razoável que se possa atribuir a estes termos — e que até agora toda a controvérsia tem girado em torno de meras palavras.[2]
     Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se acha animada por uma força necessária, e que todo efeito natural está determinado com exatidão pela energia de sua causa, de forma que nenhum outro efeito poderia resultar dela em tais condições particulares. O grau e a direção de cada movimento estão prescritos pelas leis da natureza com tal exatidão, que seria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se produz em realidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos. Portanto, se quisermos conceber uma ideia justa e exata da necessidade, devemos examinar a origem dessa ideia quando a aplicarmos às ações corporais.
     Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor ideia de necessidade ou de conexão entre os objetos naturais, se todas as cenas da natureza estivessem continuamente mudando, de modo que não houvesse dois eventos semelhantes e se cada objeto fosse completa mente novo, sem nenhuma similitude com qualquer coisa que foi antes vista. Poderíamos dizer, em tal suposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um foi produzido pelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida dos homens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobre as operações naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias de acesso do espírito na apreensão de uma existência real. Portanto, nossa ideia de necessidade e de causa surge inteiramente da uniformidade verificada nas operações da natureza, na qual os objetos semelhantes estão constantemente conjuntados e o espírito é determinado pelo costume a inferir um pelo aparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidade que atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos semelhantes e da consequente inferência de um para o outro, não temos nenhuma ideia de qualquer necessidade ou conexão.[3]
     Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido —sem nenhuma dúvida ou hesitação — que estas duas circunstâncias ocorrem em suas ações voluntárias e .nas operações do espírito; conclui-se daqui que todos os homens sempre têm estado de acordo com a doutrina da necessidade e que, até o presente, têm discutido simplesmente por não se terem entendido entre si.
     Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circunstância, isto é, da conjunção constante e regular dos eventos similares, com as seguintes considerações. Toda a gente reconhece que há grande uniformidade nas ações humanas em todas as nações e em todas as épocas, e que a natureza humana sempre permanece igual em seus princípios e em suas operações.[4] Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos eventos resultam das mesmas causas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, a generosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus e distribuídas pela sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e empreendimentos que se têm sempre observado entre os homens. Quereis conhecer os sentimentos, as inclinações e o modo de viver dos gregos e dos romanos? Estudai bem o temperamento e as ações dos franceses e dos ingleses: não estareis muito equivocado se transferirdes aos primeiros a maioria das observações que fizestes sobre os segundos. A humanidade é bastante parecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa de novo ou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir os princípios universais e constantes da natureza humana, mostrando-nos os homens em variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quais podemos formar nossas observações e ficarmos familiarizados com as fontes regulares da ação e da conduta humana. Os relatos de guerras, intrigas, partidos políticos e revoluções são outras tantas coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou o filósofo moral fixa os princípios de sua ciência, do mesmo modo que o médico ou o filósofo da natureza se familiariza com a natureza das plantas, dos minerais e de outros objetos externos, pelas experiências que fazem sobre eles. A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates são tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, como os homens descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens que governam atualmente o mundo.
     Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descrevesse a existência de homens totalmente diferentes daqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de avareza, de ambição ou de espírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, da generosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a falsidade do relato e lhe demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesse acumulado sua narrativa com contos de centauros e dragões, milagres e prodígios. E se quisermos desacreditar alguma falsificação histórica, não devemos usar argumentos mais adequados do que os que provam que as ações atribuídas a uma pessoa são diretamente contrárias à ordem natural das coisas, e que nenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la induzido a tal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descreve a coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinho multidões, e quando descreve sua força e sua atividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes. Deste modo, admitimos facilmente a uniformidade nos motivos e ações humanas, como também nas operações do corpo.
     Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiência adquirida por uma longa vida, pela variedade de ocupações e convivência, instruindo-nos acerca dos princípios da natureza humana e regrando tanto nossa conduta fritura como nossa especulação. Por meio deste guia, elevamo-nos ao conhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de suas ações, de suas manifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a interpretação de suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. As observações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutor da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações. Nem os pretextos e nem as aparências voltam a enganar-nos. Supõe-se que as declarações feitas em público são especiosos disfarces de uma causa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio peso e autoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta frequência proclamado, jamais se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seus condutores e apenas, às vezes, de indivíduos de qualquer posição ou categoria. Mas, se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e anômalo, seria impossível coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma experiência, por mais que a reflexão a houvesse assimilado, serviria para algum fim. Porque o velho agricultor é mais hábil em sua profissão do que o jovem principiante, apenas porque há uma certa uniformidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, e porque a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras que governam e dirigem estas operações.
     Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanas se estenda de tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias, sempre agirão exatamente da mesma maneira, sem fazer nenhuma concessão à diversidade dos caracteres, dos preconceitos e das opiniões. Semelhante uniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma parte da natureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferentes homens, tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, sem dúvida, ainda supõem um grau de uniformidade e regularidade.[5]
     Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países diferentes? Daqui aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam o espírito humano desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. O comportamento e a conduta de um sexo são muito diferentes dos do outro? Deste modo é que chegamos a conhecer os diferentes caracteres que a natureza tem imprimido nos sexos e que ela mantém com regularidade e constância. As ações de uma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes períodos de sua vida, desde sua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias considerações gerais acerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentes máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; de outro modo, nosso conhecimento das pessoas e nossa observação de sua conduta jamais nos poderiam ensinar acerca de suas disposições ou servir para dirigir nosso comportamento diante delas.
     Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexão regular com quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regras de conduta que se estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemos saber que juízo devemos formar das ações tão irregulares e extraordinárias, poderíamos considerar as opiniões que nutrimos comumente com respeito a eventos irregulares, que aparecem na ordem natural das coisas e nas operações dos objetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos efeitos usuais com igual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte pode fracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seres sensatos e inteligentes.
     O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas, atribui a incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo das últimas as frequentes falhas em sua influência habitual, embora não encontrem obstáculos impedindo sua ação. Mas os filósofos, verificando que na maioria dos fenômenos naturais há uma enorme variedade de fontes e princípios ocultos em razão de sua pequenez ou de seu afastamento, consideram que, pelo menos, é possível que a oposição dos eventos não proceda de uma contingência da causa, mas da operação desconhecida de causas contrárias. Esta possibilidade se converte em certeza, quando observam posteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma contrariedade de efeitos sempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua mútua oposição. Um camponês, não encontrando melhor explicação, para a parada de um relógio, diz que geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente que igual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre as engrenagens, não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão de poeira que detém todo o movimento. Observando vários casos paralelos, os filósofos estabelecem como um princípio que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e que sua aparente incerteza em certos casos decorre da desconhecida oposição de causas contrárias.
     Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomas usuais de saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando os medicamentos não atuam com seus poderes habituais; quando eventos irregulares resultam de uma causa determinada, o filósofo e o médico não se surpreendem com isto, nem são jamais tentados a negar — em sua totalidade — a necessidade e a uniformidade daqueles princípios que regulam a organização corporal. Entendem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que várias forças desconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que devemos sempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, os eventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de que as leis naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções e movimentos internos.

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[1] Os dois níveis explicativos da causalidade (veja-se nota 50, seção VII) são circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade, como todas as disciplinas compreendidas pela ciência da natureza humana. E deste modo que a causalidade se instala como princípio explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade insita-nos fenômenos naturais (base de toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de descortinar a ideia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da ideia de conexão necessária, a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade: deu continuidade lógica aos argumentos baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da ideia de “necessidade’, pois dela irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da ideia de “liberdade”. [N. do T.]
[2] Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na segunda seção: busca da impressão originária da ideia de necessidade. [N. do T.]
[3] O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas “operações dos corpos” e, de outro lado, em consequência desta constatação, podemos levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]
[4] O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos — do fim do século XVI ao fim do século XVII" (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das ideias centrais de sua filosofia. [N. do T.]
[5] Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais, devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.a)

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