Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
SEGUNDA PARTE
17
.continuando...
— Mayella Ewell é sua filha? — foi a pergunta seguinte.
— Bom, se não é, não posso fazer nada, porque a mãe dela morreu — foi a resposta.
O juiz Taylor se mexeu na cadeira. Virou devagar e olhou com calma para a testemunha.
— Mayella Ewell é sua filha? — repetiu ele, de um jeito que fez os risos da plateia cessarem de repente.
— É, sim, senhor — respondeu o sr. Ewell, obediente.
O juiz Taylor continuou com um tom benevolente:
— É a primeira vez que comparece a um tribunal? Não me lembro de tê-lo visto aqui antes.
A testemunha assentiu e o juiz continuou:
— Bom, então vamos deixar uma coisa bem clara: enquanto eu presidir este tribunal, proíbo qualquer comentário
desrespeitoso sobre qualquer assunto. Entendido?
O sr. Ewell concordou com a cabeça, mas acho que não entendeu. O juiz Taylor deu um suspiro e perguntou:
— Certo, sr. Gilmer?
— Sim, meritíssimo. Agora, sr. Ewell, pode, por favor, nos dizer com suas próprias palavras o que aconteceu na tarde de
vinte e um de novembro?
Jem sorriu e afastou os cabelos para trás. A marca registrada do sr. Gilmer era a expressão “com suas próprias palavras”.
Nós dois sempre nos perguntávamos de quem seria as palavras que o sr. Gilmer temia que as testemunhas usassem.
— Bom, ao entardecer de vinte e um de novembro eu vinha do bosque trazendo lenha e, quando cheguei na cerca, ouvi
Mayella gritando como um porco no abate…
O juiz Taylor olhou atentamente para a testemunha, mas deve ter concluído que a declaração não tinha sido maldosa,
porque em seguida voltou a exibir seu ar sonolento.
— A que horas foi isso, sr. Ewell?
— Pouco antes do anoitecer. Bom, como eu dizia, Mayella berrava como uma danada…
Mais um olhar vindo da tribuna fez o sr. Ewell se calar.
— Ela estava gritando e depois? — perguntou o sr. Gilmer.
O sr. Ewell olhou confuso para o juiz.
— Bom, Mayella estava naquela gritaria, então larguei a lenha e corri, mas minha roupa prendeu na cerca e quando me
soltei, cheguei na janela e vi… — o rosto do sr. Ewell ficou vermelho. Ele se levantou e apontou o dedo para Tom Robinson.
— … vi aquele crioulo em cima da minha Mayella!
O tribunal do juiz Taylor era tão tranquilo que ele raramente usava o martelo para pedir silêncio, mas naquele momento
teve de martelar por cinco minutos. Atticus levantou-se, foi até a tribuna e estava dizendo alguma coisa a ele; o sr. Heck Tate,
na qualidade de principal autoridade policial do condado, postou-se no meio da sala tentando acalmar a plateia. Atrás de nós,
os negros sufocaram um grito de raiva contida.
O reverendo Sykes inclinou-se sobre Dill e sobre mim para segurar o braço de Jem.
— Sr. Jem, é melhor levar a srta. Jean Louise para casa. Ouviu, sr. Jem? — perguntou o reverendo.
Jem se virou para mim e disse:
— Scout, vá para casa. Dill, leve a Scout.
— Vai ter que me obrigar — ameacei, lembrando a bendita frase de Atticus.
Jem me olhou furioso e disse para o reverendo Sykes:
— Não tem problema, reverendo, ela não entende.
Fiquei mortalmente ofendida.
— Entendo sim, tão bem quanto você.
— Ah, fica quieta. Ela não entende, reverendo, não tem nem nove anos.
Os olhos negros do reverendo Sykes demonstravam preocupação.
— O sr. Finch sabe que vocês estão aqui? Isso não é lugar para a srta. Jean Louise, nem para vocês, meninos.
Jem negou com a cabeça.
— Papai está muito longe para nos enxergar. Está tudo bem, reverendo.
Eu sabia que Jem ia ganhar a discussão, porque tinha certeza de que ele não sairia dali por nada. Dill e eu estávamos a
salvo, por enquanto: se olhasse na nossa direção, Atticus podia nos ver.
Enquanto o juiz Taylor batia o martelo, o sr. Ewell ficou sentado cheio de pose no banco das testemunhas, apreciando sua
obra. Com uma única frase, ele tinha transformado uma plateia animada em uma multidão séria, tensa e murmurante sendo
lentamente hipnotizada pelas marteladas, que foram diminuindo de intensidade até que o único som que se ouvia na sala se
assemelhava a batidas de um lápis.
Quando tudo estava novamente sob controle, o juiz Taylor recostou-se na cadeira. De repente, ele pareceu cansado, como
se sentisse o peso da idade, e lembrei do que Atticus tinha dito, que ele e a sra. Taylor não se beijavam muito; ele devia ter
quase setenta anos.
— Recebemos um pedido para esvaziar a sala ou, pelo menos, retirar as senhoras e as crianças, pedido que por enquanto
será negado. Em geral, as pessoas veem o que querem ver e ouvem o que querem ouvir, e têm o direito de expor os filhos ao
que quiserem, mas posso lhes garantir uma coisa: ou veem e ouvem em silêncio, ou terão de deixar o recinto, mas não sem
antes serem formalmente acusados de desacato. Sr. Ewell, dê seu testemunho nos limites da linguagem cristã, se possível.
Prossiga, sr. Gilmer.
O sr. Ewell me lembrava um surdo-mudo. Eu tinha certeza de que ele jamais tinha ouvido as palavras ditas pelo juiz, sua
boca tentava reproduzi-las em silêncio, mas sua expressão revelava que ele sabia que eram importantes. O sr. Ewell passou
da presunção para a seriedade obstinada, mas não enganou o juiz, que ficou de olho nele, como se o desafiasse a dar um passo
em falso.
O sr. Gilmer e Atticus se entreolharam. Atticus sentou-se outra vez, apoiou o rosto na mão fechada e não conseguimos ver
sua expressão. O sr. Gilmer parecia desesperado, mas relaxou ao ouvir a pergunta do juiz:
— Sr. Ewell, o senhor viu o réu tendo relações sexuais com a sua filha?
— Vi, sim.
A plateia ficou em silêncio, mas o réu disse alguma coisa. Atticus sussurrou alguma coisa para ele, e Tom Robinson se
calou.
— O senhor disse que olhou pela janela? — perguntou o sr. Gilmer.
— Sim, senhor.
— A que altura fica a janela?
— Um metro, mais ou menos.
— Dava para ver bem o cômodo?
— Sim, senhor.
— Como estava o cômodo?
— Bom, estava todo desarrumado, como se tivesse havido uma briga.
— O que o senhor fez ao ver o réu?
— Bom, contornei a casa para entrar, mas ele saiu antes pela porta da frente. Mas vi bem que era ele. Eu estava
preocupado com Mayella, por isso não corri atrás dele, ela estava no chão, berrando…
— O que o senhor fez, então?
— Corri para chamar Tate o mais rápido que pude. Eu sabia quem ele era, morava naquele chiqueiro de pretos, passava
pela casa todos os dias. Juiz, há quinze anos peço para o condado acabar com aquele chiqueiro, os moradores são perigosos
para os vizinhos e desvalorizam a minha propriedade…
— Obrigado, sr. Ewell — apressou-se em dizer o sr. Gilmer.
A testemunha saiu do banco e deu um encontrão em Atticus, que tinha se levantado para interrogá-lo. O juiz Taylor
permitiu que a plateia risse da cena.
— Um momento, senhor. Posso lhe fazer algumas perguntas?
O sr. Ewell sentou-se de novo no banco das testemunhas, acomodou-se e olhou desconfiado para Atticus, o que costumava
acontecer com as testemunhas do condado quando ficavam frente a frente com o advogado da parte contrária.
— Sr. Ewell, parece que houve muita correria naquela noite. Vejamos: o senhor disse que entrou correndo na propriedade,
correu até a janela, correu para dentro da casa, correu até Mayella, correu para chamar o sr. Tate. Nesse tempo todo, não
correu para chamar um médico? — perguntou Atticus.
— Não precisava. Eu vi o que aconteceu.
— Não entendi um detalhe: não ficou preocupado com o estado de Mayella? — insistiu Atticus.
— Claro que sim. Mas vi quem tinha feito aquilo — respondeu o sr. Ewell.
— Eu me refiro às condições físicas: o senhor não achou que a natureza dos ferimentos exigia cuidados médicos urgentes?
— Como?
— O senhor não achou que ela deveria ser examinada por um médico imediatamente?
A testemunha disse que não pensou nisso, nunca tinha chamado médico na vida e se chamasse ia gastar cinco dólares.
Perguntou então:
— Isso é tudo?
— Ainda não — respondeu Atticus, casualmente. E acrescentou:
— Sr. Ewell, o senhor ouviu o depoimento do xerife, não
ouviu?
— Como assim?
— Estava presente quando o sr. Heck Tate depôs, não estava? Ouviu tudo, não ouviu?
O sr. Ewell pensou bem e pareceu concluir que a pergunta não era capciosa.
— Ouvi — ele respondeu.
— Concorda com a descrição dos ferimentos de Mayella?
— Como assim?
Atticus olhou para o sr. Gilmer e sorriu. Pelo jeito, o sr. Ewell não ia dar refresco para a defesa.
— O sr. Tate declarou que Mayella estava com o olho direito roxo e bastante machucada...
— Ah, sim. Concordo com tudo o que Tate disse.
— Concorda mesmo? — disse Atticus, candidamente. — Eu só queria confirmar. — Depois, foi até o estenógrafo, disse
alguma coisa para ele e o homem leu o depoimento do sr. Tate como se fossem as cotações da Bolsa:
— “… o olho era o esquerdo, ah, sim, era o direito, sr. Finch. Agora lembro que ela estava toda machucada.” — O
estenógrafo virou a página e continuou lendo: — “Naquele lado do rosto, xerife, por favor, repita o que disse, eu falei que era
o olho direito…”
— Obrigado, Bert. O senhor ouviu de novo, sr. Ewell. Quer acrescentar alguma coisa? Concorda com o xerife? —
perguntou Atticus.
— Concordo com Tate. Ela estava com o olho roxo e muito machucada.
Dessa vez o homenzinho parecia ter esquecido a humilhação anterior na tribuna. Estava ficando claro que ele considerava
Atticus um adversário fraco. Pareceu enrubescer outra vez, estufou o peito e lembrou de novo um garnisé. Quando Atticus fez a
pergunta seguinte, tive a impressão de que os botões da camisa dele iam estourar:
— Sr. Ewell, o senhor sabe ler e escrever?
O sr. Gilmer interrompeu:
— Protesto. Não vejo o que o fato de a testemunha ser alfabetizada tem a ver com o caso. A pergunta é irrelevante e
impertinente.
O juiz Taylor ia falar, quando Atticus apartou:
— Juiz, permita mais uma pergunta e verá o motivo do interesse.
— Está bem, vamos ver — disse o juiz Taylor. — Mas se assegure de que vamos ver, Atticus. Protesto indeferido.
O sr. Gilmer parecia tão intrigado quanto nós quanto à ligação do nível de escolaridade do sr. Ewell com o processo.
— Vou repetir a pergunta: o senhor sabe ler e escrever? — disse Atticus.
— Claro que sim.
— Pode assinar seu nome e nos mostrar?
— Claro que sim. Como acham que assino os cheques da assistência social?
O sr. Ewell estava querendo conquistar seus concidadãos. Os sussurros e risinhos que vinham da plateia provavelmente se
deviam às gracinhas dele.
Eu estava ficando nervosa. Atticus parecia saber o que estava fazendo mas, na minha opinião, ele parecia estar num mato
sem cachorro. Num interrogatório, jamais fazer uma pergunta a uma testemunha sem saber de antemão a resposta era um
princípio que eu conhecia desde que era bebê. Faça isso e, na maior parte das vezes, vai ter uma resposta que não quer e que
pode arruinar o seu caso.
Atticus enfiou a mão no bolso do paletó e retirou um envelope. Pegou então uma caneta-tinteiro no bolso do colete. Ele se
movia calmamente, para que todos os jurados pudessem acompanhar. Tirou a tampa da caneta-tinteiro e colocou-a sobre a
mesa. Sacudiu um pouco a caneta e entregou-a para a testemunha com o envelope.
— Pode assinar seu nome para nós? Com clareza, de forma que os jurados vejam que sabe escrever.
O sr. Ewell escreveu nas costas do envelope e olhou, complacente, para o juiz Taylor, que o examinava como se ele fosse
uma perfumada gardênia no banco das testemunhas, e para o sr. Gilmer, que estava meio sentado, meio em pé diante da mesa.
Os jurados o observavam, e um deles se inclinou para a frente, apoiando as mãos na balaustrada.
— Qual é o problema? — perguntou o sr. Ewell.
— O senhor é canhoto, sr. Ewell — concluiu o juiz Taylor.
O sr. Ewell virou-se zangado para o juiz e disse que não via o que o fato de ele ser canhoto tinha a ver com a história, que
ele era um homem temente a Deus e que Atticus Finch estava se aproveitando dele. Advogados cheios de artimanhas como
Atticus Finch se aproveitavam dele o tempo todo. Ele tinha contado o que aconteceu e podia repetir várias vezes, o que fez.
Nada do que Atticus perguntou depois mudou sua história: o sr. Ewell tinha olhado na janela, tinha botado o preto para correr
e tinha saído correndo atrás do xerife. Atticus finalmente o dispensou.
O sr. Gilmer fez mais uma pergunta:
— Sobre o fato de escrever com a mão esquerda, o senhor é ambidestro, sr. Ewell?
— Com certeza não, mas eu posso usar as duas mãos da mesma maneira. As duas servem — ele acrescentou, olhando
firme para a mesa da defesa.
Jem parecia prestes a ter um ataque. Bateu de leve na grade do balcão e disse baixinho:
— Pegamos ele.
Eu não achava. Atticus estava querendo mostrar, ao que me parecia, que o sr. Ewell podia ter espancado Mayella. Até aí,
eu tinha entendido. Se ela estava com o olho direito roxo e as marcas eram quase todas desse mesmo lado, isso sugeria que ela
tinha sido atacada por uma pessoa canhota. Sherlock Holmes e Jem Finch concordariam comigo. Mas Tom Robinson também
podia ser canhoto. Imaginei, como tinha feito o sr. Heck Tate, uma pessoa na minha frente, pensei rápido na cena e concluí que
ele podia tê-la segurado com a mão direita e ter batido nela com a esquerda. Olhei para Tim. Ele estava de costas para nós e
tinha ombros largos e o pescoço grosso como o de um touro. Podia ter feito isso facilmente. Achei que Jem estava contando
com o ovo dentro da galinha.
continua página 123...
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Leia também:
O Sol é para todos: 2ª Parte (17b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
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