Apolodoro[1] e um Companheiro
- Que pensas, ó
Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura
não percebes como é estranho o comportamento de todos os
animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto
dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa,
primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no
que diz respeito à criação do que nasceu? E como em vista disso
estão prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, E
mesmo morrer, não só se torturando pela fome a fim de
alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens,
continuou ela, poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles
agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu
comportamento amoroso? Podes dizer-me?
De novo eu lhe disse que não sabia; e ela me tornou:
-
Imaginas então algum dia te tornares temível nas questões do
amor, se não refletires nesses fatos?
- Mas é por isso mesmo, Diotima - como há pouco eu te dizia -
que vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize
me então não só a causa disso, como de tudo o mais que
concerne ao amor.
- Se de fato - continuou - crês que o amor é por natureza amor
daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques admirado. Pois
aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal
procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela
só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um
outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que
cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade,
apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia
que é o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo
alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e
em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na
alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres,
aflições, temores, cada um desses afetos jamais permanece o
mesmo em cada um de nós, mas uns nascem, outros morrem.
Mas ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é
só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais
somos os mesmos nas ciências, mas ainda cada uma delas sofre
a mesma contingência. O que, com efeito, se chama exercitar é
como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é
escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova
lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de
modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que tudo o que
é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser
sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar
o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo
era. É por esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da
imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal porém é de
outro modo. Não te admires portanto de que o seu próprio
rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da
imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor
acompanham.
Depois de ouvir o seu discurso, admirado disse-lhe:
- Bem, ó
doutíssima Diotima, essas coisas é verdadeiramente assim que
se passam?
E ela, como os sofistas consumados, tornou-me:
- Podes estar
certo, ó Sócrates; o caso é que, mesmo entre os homens, se
queres atentar à sua ambição, admirar-te-ias do seu
desarrazoamento, a menos que, a respeito do que te falei, não
reflitas, depois de considerares quão estranhamente eles se
comportam com o amor de se tornarem renomados e de “para
sempre uma glória imortal se preservarem”, e como por isso
estão prontos a arrostar todos os perigos, ainda mais do que
pelos filhos, a gastar fortuna, a sofrer privações, quaisquer que
elas sejam, e até a sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou ela,
que Alceste morreria por Admeto, que Aquiles morreria depois
de Pátroclo, ou o vosso Codro morreria antes, em favor da
realeza dos filhos, se não imaginassem que eterna seria a
memória da sua própria virtude, que agora nós conservamos? Longe disso, disse ela; ao contrário, é, segundo penso, por uma
virtude imortal e por tal renome e glória que todos tudo fazem,
e quanto melhores tanto mais; pois é o imortal que eles amam.
Por conseguinte, continuou ela, aqueles que estão fecundados
em seu corpo voltam-se de preferência para as mulheres, e é
desse modo que são amorosos, pela procriação conseguindo
para si imortalidade, memória e bem-aventurança por todos os
séculos seguintes, ao que pensam; aqueles porém que é em sua
alma - pois há os que concebem na alma mais do que no corpo,
o que convém à alma conceber e gerar; e o que é que lhes
convém senão o pensamento e o mais da virtude? Entre estes
estão todos os poetas criadores e todos aqueles artesãos que se
diz serem inventivos; mas a mais importante, disse ela, e a
mais bela forma de pensamento é a que trata da organização
dos negócios da cidade e da família, e cujo nome é prudência e
justiça - destes por sua vez quando alguém, desde cedo
fecundado em sua alma, ser divino que é, e chegada a idade
oportuna, já está desejando dar à luz e gerar, procura então
também este, penso eu, à sua volta o belo em que possa gerar;
pois no que é feio ele jamais o fará. Assim é que os corpos belos
mais que os feios ele os acolhe, por estar em concepção; e se
encontra uma alma bela, nobre e bem dotada, é total o seu
acolhimento a ambos, e para um homem desses logo ele se
enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que deve ser o
homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
contato sem dúvida do que é belo e em sua companhia, o que
de há muito ele concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem o
esquecer tanto em sua presença quanto ausente, e o que foi
gerado, ele o alimenta justamente com esse belo, de modo que
uma comunidade muito maior que a dos filhos ficam tais
indivíduos mantendo entre si, e uma amizade mais firme, por
serem mais belos e mais imortais os filhos que têm em comum.
E qualquer um aceitaria obter tais filhos mais que os humanos,
depois de considerar Homero e Hesíodo, e admirando com
inveja os demais bons poetas, pelo tipo de descendentes que
deixam de si, e que uma imortal glória e memória lhes
garantem, sendo eles mesmos o que são; ou se preferes,
continuou ela, pelos filhos que Licurgo deixou na Lacedemônia,
salvadores da Lacedemônia e por assim dizer da Grécia. E
honrado entre vós é também Sólon pelas leis que criou, e outros
muitos em muitas outras partes, tanto entre os gregos como
entre os bárbaros, por terem dado à luz muitas obras belas e
gerado toda espécie de virtudes; deles é que já se fizeram muitos cultos por causa de tais filhos, enquanto que por causa dos
humanos ainda não se fez nenhum.
São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates,
também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita
contemplação, em vista da qual é que esses graus existem,
quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em
todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei;
tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito,
começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim,
começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em
primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve
ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois
deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã
da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o
belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a
mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso,
deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse
amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo
mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele
considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo
se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso
encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e
procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que
então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e
a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue
enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para
as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja
também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito,
sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um
criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele,
nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas
voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos
discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em
inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido
contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o
belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima
atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido
orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e
corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do
amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua
natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as
penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer
nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a
isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a
uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe
á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo
tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem
certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo,
em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao
contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo
mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo
dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece
tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem
nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui
é belo, através do correto amor aos jovens, começa a
contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto
final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente
nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em
começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir
sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois
e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os
belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das
ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão
daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse
ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de
Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a
contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como
ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos
jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e
disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus
amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber,
se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar
ao seu lado. Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se
a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro,
simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras
muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele
em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que
é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele
objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com
ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então,
quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto,
ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em
sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no
real que estará tocando?
continua página 46...
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Apolodoro e um Companheiro(g)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão.
De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara.
Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas.
Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)
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