quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[b]- As Massas)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Uma Sociedade Sem Classes
     1 - As Massas

continuando...
 
          Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930[17] recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado_âpálkas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção. A maioria dos seus membros, portanto, consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política. Isto permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição: os movimentos, até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele, puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais. Assim, sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários, preferiram métodos que levavam à morte em vez da persuasão, que traziam terror em lugar de convicção. As discórdias ideológicas com outros partidos ser-lhes-iam desvantajosas se eles competissem sinceramente com esses partidos; não o eram, porém, porquanto lidavam com pessoas que tinham motivos para hostilizar igualmente a todos os partidos.
     O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e, em particular, dos Estados-nações europeus e do seu sistema partidário. A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo contrário, demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria. A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação. Agora, os movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo, tanto quanto nas instituições e organizações articuladas e visíveis do país. Assim; quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com isto a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria. Tem sido frequentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objetivo de suprimi-las. Não porque os seus líderes sejam diabolicamente espertos ou as massas sejam infantilmente ignorantes. As liberdades democráticas podem basear-se na igualdade de todos os cidadãos perante a lei; mas só adquirem significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são representados por elas, ou formam uma hierarquia social e política. O colapso do sistema de classes como estratificação social e política dos Estados-nações europeus foi certamente "um dos mais dramáticos acontecimentos da recente história alemã",[18] e favoreceu a ascensão do nazismo na mesma medida em que a ausência de estratificação social na imensa população rural da Rússia (esse "grande corpo flácido destituído de educação política, quase inacessível a ideias capazes de ação nobilitante", como disse Górki[19]) favoreceu a deposição, pelos bolchevistas, do governo democrático de Kerenski. As condições sociais da Alemanha antes de Hitler mostraram os perigos implícitos no desenvolvimento do Ocidente, uma vez que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mesmo dramático colapso do sistema de classes se repetiu em quase todos os países europeus, enquanto as ocorrências na Rússia indicam claramente o rumo que podem tomar as inevitáveis mudanças revolucionárias na Ásia. Na prática, pouco importa que os movimentos totalitários adotem os padrões do nazismo ou do bolchevismo, que organizem as massas em nome de classes ou de raças, ou que pretendam seguir as leis da vida e da natureza ou as da dialética e da economia. ^ A indiferença em relação aos negócios públicos e a neutralidade em questões de política não são, por si, causas suficientes para o surgimento de movimentos joiaüiárips. A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia, e até mesmo hostilidade, em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas acima de tudo entre a sua própria classe. O longo período de falsa modéstia, em que a burguesia se contentou em ser a classe social dominante sem aspirar ao domínio político, relegado à aristocracia, foi seguido pela era imperialista, durante a qual a burguesia tornou-se cada vez mais hostil às instituições nacionais existentes e passou a exigir o- poder político e a organizar se para exercê-lo. Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo, de4al modo que-o-exercício dos deveres e responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia. Essas atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um "homem forte" assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos; mas constituem um obstáculo para os movimentos totalitários, que não podem tolerar o individualismo burguês ou qualquer outro tipo de individualismo. Os elementos apáticos da sociedade burguesa, por mais que relutem em assumir as responsabilidades de cidadãos, mantêm intacta a sua personalidade, pelo menos porque ela lhes permite sobreviver na luta competitiva pela vida.
     É difícil perceber onde as organizações da ralé do século XIX diferem dos movimentos de massa do século XX, porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e mentalidade dos antigos líderes da escória, cujos padrões morais e esquemas políticos, aliás, tanto se assemelhavam aos da burguesia. Embora o individualismo caracterizasse tanto a atitude da burguesia como a da ralé em relação à vida, os movimentos totalitários podem, com justiça, afirmar terem sido os primeiros partidos realmente anti-burgueses, o que não aconteceu com os seus predecessores do século XIX. Nem a Sociedade do 10 de Dezembro (que ajudou a colocar Luís Napoleão no poder), nem as brigadas de açougueiros (que atuaram no Caso Dreyfus), nem as Centenas Negras (que organizavam os pogroms na Rússia), nem os movimentos étnicos de unificação envolveram os seus membros ao ponto de fazê-los perder completamente suas reivindicações e ambições individuais, nem chegaram a conceber que uma organização, conseguisse apagar a identidade do indivíduo para sempre, e não apenas por um instante de heroico gesto coletivo. A relação entre a sociedade de classes dominada pela burguesia e as massas que emergiram do seu colapso não é a mesma entre a burguesia e a ralé, que era um subproduto da produção capitalista. As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica, ou seja, ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal. As massas não herdam, como o faz a ralé, os padrões e atitudes da classe dominante, mas refletem, e de certo modo pervertem, os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos. Os padrões do homem da massa são determinados não apenas pela classe específica à qual antes pertenceu, mas acima de tudo por influências e convicções gerais que são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as classes da sociedade.
     Fazer parte de uma classe, embora mais vaga e nunca tão inevitavelmente determinada pela origem social como nas ordens e Estados da sociedade feudal, era geralmente uma questão de nascimento, e somente a sorte ou dons extraordinários poderiam mudá-la. O status social era decisivo para que um indivíduo participasse da política e, exceto em casos de emergência, quando se esperava que ele agisse apenas como um nacional, independentemente de classe ou partido, ele nunca se defrontava diretamente com as coisas públicas ou se sentia diretamente responsável por conduzi-las. À ascensão de uma classe correspondia a intensificação da instrução e treinamento de certo número de seus membros para a política como carreira e para o serviço do governo, pago ou gratuito, se a isso podiam permitir-se, e para a representação da classe no Parlamento. A ninguém importava que a maioria dos membros de cada classe permanecesse fora de qualquer partido ou organização política. Em outras palavras, o fato de um indivíduo pertencer a uma classe, que tinha obrigações grupais limitadas e certas atitudes tradicionais em relação ao governo, impediu o crescimento de um corpo de cidadãos que se sentissem, individual e pessoalmente, responsáveis pelo governo do país. Esse caráter apolítico das populações dos Estados-nações veio à tona somente quando o sistema de classes entrou em colapso e destruiu toda a urdidura de fios visíveis e invisíveis que ligavam o povo à estrutura política.
     O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário, porque os partidos, cuja função era representar interesses, não mais podiam representá-los, uma vez que a sua fonte e origem eram as classes. Sua continuidade tinha ainda certa importância para os membros das antigas classes que esperavam inutilmente recuperar o status social, e mantinham-se coesos não porque ainda tivessem interesses comuns, mas porque esperavam restaurá-los. Consequentemente, os partidos tornaram-se mais e mais psicológicos e ideológicos em sua propaganda, e mais apologéticos e nostálgicos em sua orientação política. Além disso, haviam perdido, sem que o percebessem, aqueles simpatizantes neutros que nunca se haviam interessado por política por acharem que os partidos existiam para cuidar dos seus interesses. Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixavam de lado a. apatia e marchavam para onde vissem oportunidade de expressar a sua violeta oposição.
     A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs; que, consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e representativos membros da comunidade eram uns néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas. Para o nascimento dessa solidariedade, pouco importava que o trabalhador desempregado odiasse o status quo e as autoridades sob a forma do Partido Social Democrata; que o pequeno proprietário desapossado o fizesse sob a forma de um partido centrista ou de direita; e que os antigos membros das classes média e superior se manifestassem sob a forma de extrema-direita tradicional. Essa massa de homens insatisfeitos e desesperados aumentou rapidamente na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial, quando a inflação e o desemprego agravaram as consequências desastrosas da derrota militar, despontou em todos os Estados sucessórios e apoiou os movimentos extremistas da França e da Itália desde a Segunda Guerra Mundial.
     Foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homem de massa da Europa. O fato de que o mesmo, destino, com monótona mas abstrata uniformidade, tocava a grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse, a si próprio, em termos de fracasso individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica. Contudo, essa amargura egocêntrica, embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora, não chegaria a constituir laço comum, porque não se baseava em qualquer interesse comum, fosse econômico, social ou político. Esse egocentrismo, portanto, trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de auto conservação. A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa. O velho provérbio de que o pobre e o oprimido nada têm a perder exceto o sofrimento nem sequer se aplicava aos homens da massa porque, ao perderem o interesse no próprio bem-estar, eles perdiam muito mais do que o sofrimento da miséria; perdiam a fonte das preocupações e cuidados que inquietam e moldam a vida humana. Himmler, que conhecia tão bem a mentalidade daqueles a quem organizava, descreveu não apenas os membros da SS, mas as vastas camadas de onde os recrutava, quando disse que eles não estavam interessados em "problemas do dia-a-dia", mas somente em "questões ideológicas de importância para as próximas décadas ou séculos", conscientes de que "trabalham numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos".[20] A gigantesca formação de massas produziu um tipo de mentalidade que, como Cecil Rhodes quarenta anos antes, raciocinava em termos de continentes e sentia em termos de séculos.
     Eminentes homens de letras e estadistas europeus predisseram, a partir do começo do século XIX, o surgimento do homem da massa e o advento de uma era da massa. Toda uma literatura sobre a conduta da massa e a psicologia da massa demonstrou e popularizou o conhecimento, tão comum entre os antigos, da afinidade entre a democracia e a ditadura, entre o governo da ralé e a tirania. Mas, embora as previsões quanto ao surgimento de demagogia, credulidades, superstições e brutalidade tenham se realizado até certo ponto, grande parte do seu significado se diluiu em vista de fenômenos inesperados e imprevistos, como a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo,[21] a indiferença cínica ou enfastiada diante da morte, a inclinação apaixonada por noções abstratas guindadas ao nível de normas de vida, e o desprezo geral pelas óbvias regras do bom senso.
     As massas, contrariamente ao que foi previsto, não resultaram da crescente igualdade de condição e da expansão educacional, com a sua consequente perda de qualidade e popularização de conteúdo, pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos de massa. Nem o mais sofisticado individualismo evitava aquele auto abandono em direção à massa que os movimentos de massa propiciavam. O fato de a individualização e a cultura não evitarem a formação de atitudes de massa era tão inesperado que foi atribuído à morbidez e ao niilismo da moderna intelligentsia, ao ódio de si próprios que supostamente caracteriza os intelectuais. Não obstante, os caluniados intelectuais constituíam apenas o exemplo mais ilustrativo e eram os porta-vozes mais eloquentes de um fenômeno geral. A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa, que, muito antes de atraírem, com muito mais facilidade, os membros sociáveis e não-individualistas dos partidos tradicionais, acolheram os completamente desorganizados, os típicos "não alinhados" que, por motivos individualistas, sempre se haviam recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais.
     A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas apenas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do JhomeHL da rftassa não é a brutalidade nem a mdezãl, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais. Vindas da sociedade do Estado-nação, que era dominada por classes cujas fissuras haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista, essas massas, no primeiro desamparo da sua existência, tenderam para um nacionalismo especialmente violento, que os líderes aceitavam por motivos puramente demagógicos, contra os seus próprios instintos e finalidades.[22]
     Nem o nacionalismo tribal nem o niilismo rebelde são característicos das massas, ou lhes são ideologicamente apropriados, como o eram para a ralé. Mas os mais talentosos líderes de massa de nossa época ainda vieram da ralé, e não das massas.[23] Hitler, cuja biografia se lê como um livro-texto exemplar a esse respeito, e Stálin provinham da aparelhagem conspirativa do partido, onde se misturavam proscritos e revolucionários. O antigo partido de Hitler, composto quase exclusivamente de desajustados, fracassados e aventureiros, constituía na verdade "um exército de boêmios"[24] que eram apenas o avesso da sociedade burguesa e a quem, consequentemente, a burguesia alemã poderia ter usado com sucesso para seus próprios fins. Na realidade, a burguesia se deixou enganar pelos nazistas do mesmo modo como a facção Rõhm-Schleicher no Reichswehr [o Exército regular da República de Weimar], que também julgou que Hitler, a quem havia usado como alcaguete, ou a SA, que tinha sido usada para propaganda militarista e treino paramilitar, agiriam como seus agentes e ajudariam a criar uma ditadura militar.[25] Ambos consideraram o movimento  nazista em seus próprios termos de filosofia política da ralé,[26] e não perceberam o apoio independente e espontâneo das massas aos novos líderes da ralé, nem o genuíno talento desses líderes para a criação de novas formas de organização. A ralé, enquanto força motriz das massas, já não era o agente da burguesia nem de ninguém a não ser das próprias massas. Os movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de massa do que das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada, como se pode constatar por uma comparação do nazismo com o bolchevismo, que surgiram em seus respectivos países em circunstâncias muito diversas. A fim de transformar a ditadura revolucionária de Lênin em completo regime totalitário, Stálin teve primeiro de criar artificialmente aquela sociedade atomizada que havia sido preparada para os nazistas na Alemanha por circunstâncias históricas.
     A vitória, surpreendentemente fácil, da Revolução de Outubro ocorreu num país onde a burocracia despótica e centralizada governava uma massa populacional desestruturada, que não se enquadrava organizacionalmente nem nos vestígios das ordens feudais rurais nem nas classes capitalistas urbanas, nascentes e débeis. Quando Lênin declarou que em nenhuma outra parte do mundo teria sido tão fácil galgar o poder e tão difícil conservá-lo, sabia não só da fraqueza da classe operária russa, mas também das anárquicas condições sociais em geral, que propiciavam mudanças súbitas. Desprovido do instinto de um líder de massas — pois não era orador e tinha o vezo de confessar e analisar publicamente os próprios erros, o que atentava contra as regras da demagogia —, Lênin se apegou imediatamente a toda diferenciação possível, fosse social, nacional ou profissional, que pudesse dar alguma estrutura à população, e parecia estar convencido de que só essa estratificação podia salvar a revolução. Legalizou a anárquica expropriação dos donos de terra pelos camponeses, e assim estabeleceu na Rússia, pela primeira vez e provavelmente a última, aquela classe camponesa emancipada que, desde a Revolução Francesa, havia sido o mais firme esteio dos Estados-nações ocidentais. Tentou fortalecer a classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes. Tolerou a tímida aparição de uma nova classe média proveniente da NEP [Nova Política Econômica], após o fim da guerra civil. Introduziu outras formas de distinção, organizando e, às vezes, até inventando o maior número possível de nacionalidades, fomentando a consciência nacional e a percepção de diferenças históricas e culturais mesmo entre as tribos mais primitivas da União Soviética. Parece claro que, nessas questões políticas puramente práticas, Lênin seguiu seus instintos de estadista e não as suas convicções marxistas; de qualquer forma, a sua política demonstra que temia mais a ausência de uma estrutura social ou de outra natureza do que possível desenvolvimento de tendências centrífugas nas nacionalidades recém-emancipadas, ou mesmo o crescimento de uma nova burguesia a partir das classes média e camponesa recém estabelecidas. Sem dúvida, Lênin sofreu a sua maior derrota quando, com o espoucar da guerra civil, o supremo poder que ele originalmente planejava concentrar nos Sovietes passou definitivamente às mãos da burocracia do Partido; mas mesmo isto, trágico como era para o curso da Revolução, não teria levado necessariamente ao totalitarismo. Uma ditadura unipartidária acrescentava apenas mais uma classe à estratificação do país já em curso, isto é, a burocracia que, segundo os críticos socialistas da revolução, "possuía o Estado como propriedade privada" (Marx).[27] No momento da morte de Lênin, os caminhos ainda estavam abertos. A formação de operários, camponeses e classes médias não precisaria levar à luta de classes que havia sido característica do capitalismo europeu. A agricultura ainda podia ser desenvolvida numa base coletiva, cooperativa ou privada, e a economia nacional ainda estava livre para seguir um padrão capitalista, estatal-capitalista ou de mercado. Nenhuma dessas alternativas teria destruído automaticamente a nova estrutura do país.
     Todas essas novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin quando ele começou a preparar o país para o governo totalitário. A fim de_ produzir uma massa atomizada e amorfa, necessitava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes que, como órgão principal de representação nacional, ainda tinham certa função e impediam o domínio absoluto da hierarquia! do Partido. Assim, debilitou primeiro os Sovietes nacionais, introduzindo neles células bolchevistas das quais sairiam, com exclusividade, os funcionários superiores para os comitês centrais.[28] Por volta de 1930, os últimos vestígios das antigas instituições comunais haviam desaparecido: em seu lugar existia uma burocracia-partidária firmemente centralizada, cujas tendências para a russificação não eram muito diferentes daquelas do regime czarista, exceto que os novos burocratas já não tinham medo de quem soubesse ler e escrever.
     O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou, por motivos ideológicos e de propaganda, com as classes proprietárias, a nova classe média das cidades e os camponeses do interior. Por serem numerosos e possuírem propriedades, os camponeses haviam sido até então, potencialmente, a classe mais poderosa da União; consequentemente, a sua liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de qualquer outro grupo, e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação, a pretexto de expropriação dos kulaks e de coletivização. A liquidação das classes média e camponesa terminou no início da década de 30: os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de deportados sabiam agora "quem mandava neste país" e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos, mas somente dos caprichos do governo, aos quais tinham de enfrentar em completa solidão, sem qualquer tipo de auxílio do grupo a que pertencessem. Nem estatísticas nem documentos situam o momento exato em que a nova classe agrícola, produzida pela coletivização e ligada por interesses comuns, passou a representar um perigo latente para o governo totalitário, devido ao seu número e posição vital da economia do país. Mas, para aqueles que sabem decifrar as "informações oficiais" do totalitarismo, esse instante ocorrera dois anos antes da morte de Stálin, quando ele propôs dissolver as fazendas coletivas e transformá-las em unidades maiores. Não sobreviveu para realizar esse plano; dessa vez, os sacrifícios teriam sido ainda mais altos, e as caóticas consequências para a economia global ainda mais catastróficas do que por ocasião do extermínio da primeira classe camponesa, mas não há motivo para julgar que ele não o teria conseguido; não há classe que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros.
     A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários. Como classe, eram mais débeis e ofereciam muito menor resistência que os camponeses, porque a expropriação dos donos de fábricas, que eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução, ao contrário da expropriação dos donos de terra pelos camponeses, havia sido imediatamente frustrada pelo governo, que confiscara as fábricas como sendo propriedade do Estado, sob o pretexto de que o Estado, de qualquer modo, pertencia ao proletariado. O sistema stakha-novista, adotado no início da década de 30, eliminou a solidariedade e a consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma aristocracia operária, separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância entre os trabalhadores e a gerência. Esse processo foi completado em 1938, quando a criação do documento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de trabalhadores forçados.
     Finalmente, veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de extermínio. Stálin levou dois anos, de 1936 a 1938, para se desfazer de toda a aristocracia administrativa e militar da sociedade soviética; quase todas as repartições públicas, fábricas, entidades econômicas e culturais e agências governamentais, partidárias e militares passaram a novas mãos, quando "quase a metade do pessoal administrativo, do partido ou não, üavia sido eliminada", e foram liquidados mais de 50% de todos os membros do partido é""pélõ menos outros 8 milhões de pessoas".[29] A criação de um passaporte interno, no qual tinham de ser registradas e autorizadas todas as viagens de uma cidade para outra, completou a destruição da burocracia como classe. No que diz respeito ao seu status jurídico, a burocracia e os funcionários do partido estavam agora no mesmo nível dos operários; eram também parte da vasta multidão de trabalhadores forçados russos, e o seu status como classe privilegiada na sociedade soviética era mera lembrança do passado. E, como esse expurgo geral terminou com a liquidação das mais altas autoridades policiais — as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral —, nem mesmo os oficiais da GPU, que haviam instaurado o terror, podiam pensar que, como grupo, ainda representassem alguma coisa, muito menos poder.
     Nenhum desses imensos sacrifícios de vida humana foi motivado por uma raison d'état no antigo sentido do termo. Nenhuma das camadas sociais liquidadas era hostil ao regime, nem era provável que se tornasse hostil num futuro previsível. A oposição ativa e organizada havia cessado de existir por volta de 1930 quando Stálin, em seu discurso no Décimo Sexto Congresso do Partido, declarou ilegais as divergências ideológicas dentro do partido, sendo que mesmo essa frouxa oposição mal pudera basear-se em alguma classe existente.[30] O terror ditatorial — que difere do terror totalitário por ameaçar apenas adversários autênticos, mas não cidadãos inofensivos e carentes de opiniões políticas — havia sido suficientemente implacável para sufocar toda a atividade política, ostensiva ou clandestina, mesmo antes da morte de Lênin. A intervenção do exterior, que poderia apoiar um dos setores descontentes da população, já não constituía perigo em 1930, quando a União Soviética, já reconhecida pela maioria dos Estados e firmemente implantada, tornou-se parceira do sistema internacional vigente. Contudo, se Hitler fosse um conquistador comum e não um governante totalitário rival, poderia ter tido excelente oportunidade de conquistar pelo menos a Ucrânia com o consentimento de sua população. Se politicamente o extermínio de classes não fazia sentido, foi simplesmente desastroso para a economia soviética. As consequências da fome artificialmente criada em 1933 foram sentidas durante anos em todo o país; a introdução do sistema stakhanovista em 1935, com a arbitrária aceleração da produção individual, resultou num "desequilíbrio caótico" da jovem indústria;[31] a liquidação da burocracia, isto é, da classe de gerentes e engenheiros das fábricas, terminou privando as empresas industriais da escassa experiência e do pouco know-how que a nova intelligentsia técnica russa havia conseguido adquirir.
     Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não-políticos entre os subjugados, tais como laços de família é de interesses culturais comuns. O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Os amantes do "xadrez por amor ao xadrez", adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da "arte por amor à arte",[32]  demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade, cuja uniformidade inteiramente homogênea é a condição fundamental para o totalitarismo. Do ponto de vista dos governantes totalitários, uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez difere apenas um pouco da classe de agricultores que o são por amor à agricultura, embora seja menos perigosa. Himmler definiu muito bem o elemento da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância fará, jamais "alguma coisa apenas por amor a essa coisa".[33]

Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[b]- As Massas)
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[17] F. Borkenau descreve corretamente a situação: "Os comunistas obtiveram sucesso apenas modesto na tentativa de influenciar as massas da classe trabalhadora; portanto, sua base DerMonat [O Mês], Berlim, 1949, vol. 4).
[18] William Ebenstein, The Nazi state, Nova York, 1943, p. 247.
[19] Na descrição de Maksim Górki. Ver Souvarine, op. cit., p. 290.
[20] Discurso de Heinrich Himmler sobre a "Organização e dever da SS e da polícia", publicado em National politischerLehrgang der Wehrmacht vom 15-23. Januarl937 [Instrução político-nacional das Forças Armadas, 15-23 de janeiro de 1937]. Tradução citada de Nazi conspiracy and aggression. Office of the United States Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality. U. S. Government, Washington, 1946, IV, 616 ss.
[21] Gustave heBon, La psychologie des foules, 1895, menciona o peculiar desprendimento das massas. Ver o cap. II, parágrafo 5.
[22] Os fundadores do partido nazista referiam-se uma vez ou outra a esse nacionalismo, mesmo antes de Hitler havê-lo chefiado como "partido da Esquerda". Interessante também é um incidente que ocorreu após as eleições parlamentares de 1932: "Gregor Strasser disse ao Führer, com certa amargura, que antes das eleições os nazistas poderiam ter constituído no Reichstag uma maioria com o Centro; agora já não havia essa possibilidade, os dois partidos tinham menos da metade das cadeiras do parlamento; (...) Mas com os comunistas ainda tinham uma maioria, disse Hitler; e por isto ninguém pode governar contra nós" (Heiden, op. cit., pp. 94 e 495, respectivamente).
[23] Compare-se Carlton J. H. Hayes, op. cit., que não diferencia entre a ralé e as massas, e supõe que os ditadores totalitários "vieram das massas e não das classes".
[24] Essa é a teoria central de K. Heiden, cujas análises do movimento nazista ainda são das mais importantes. "Dos escombros das classes mortas surge a nova classe de intelectuais, e à sua frente vão os mais inescrupulosos, aqueles que menos têm a perder e, portanto, os mais fortes: os boêmios armados, para quem a guerra é o lar, e a pátria é a guerra civil" (op. cit., p. 100).
[25] A trama entre o general Schleicher, do Reichswehr, e Rohm, o chefe da SA, consistia em um plano para colocar todas as formações paramilitares sob o comando militar do Reichswehr, o que de imediato acrescentaria milhões às fileiras do Exército. Isto, naturalmente, teria certamente levado a uma ditadura, militar. Em junho de 1934, Hitler liquidou Rohm e Schleicher. As negociações iniciais começaram com o pleno conhecimento de Hitler, que usou as conexões de Rohm com o Reichswehr para ludibriar os círculos militares alemães acerca de suas verdadeiras intenções. Em abril de 1932, Rohm declarou, como testemunha em um dos processos legais de Hitler, que a condição militar da SA era perfeitamente entendida pelo Reichswehr. (Para documentação comprovatória do plano Rõhm Schleicher, ver Nazi conspiracy, V, 466 ss. Ver também Heiden, op. cit., p. 450.) O próprio Rõhm fala com orgulho das suas negociações com Schleicher que, segundo ele, foram iniciadas em 1931. Schleicher havia prometido colocar a SA sob o comando dos oficiais do Reichswehr em caso de emergência. (Ver Die Memoiren des Stabschefs Rôhm [As memórias do comandante Rõhm], Saarbrücken, 1934, p. 170.) O caráter militar da SA, moldado por Rôhm e constantemente combatido por Hitler, continuou a ditar o seu vocabulário mesmo depois da liquidação da facção de Rõhm. Ao contrário dos SS, os membros da SA sempre insistiram em que eram os "representantes da vontade militar da Alemanha", e para eles o Terceiro Reich era uma "comunidade militar [apoiada em] duas colunas: o Partido e a Wehrmacht" (ver Handbuch der SA, Berlim, 1939, e Victor Lutze, "Die Sturmabteilungen" [As Seções de Assalto — ou seja, a SA], em Grundlagen, Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialisxischen Staates, n? 7a).
[26] A autobiografia de Rõhm é, em especial, um verdadeiro clássico desse tipo de literatura.
[27] Os anti-stalinistas basearam a sua crítica do desenvolvimento da União Soviética nessa formulação marxista, e até hoje continuam dominados por essa ideia. Rakovsky, escrevendo do seu exílio na Sibéria em 1930, é da seguinte opinião: "Sob as nossas vistas surgiu e está sendo formada uma ampla classe de diretores que tem suas subdivisões internas e que cresce através de cooptação calculada e nomeações diretas ou indiretas. [...] O que une essa classe original é uma forma, também original, de propriedade privada, a saber, o poder do Estado" (citado por Souvarine, op. cit., p. 564). Trata-se de uma análise bastante precisa do desenvolvimento da era pré-stalinista. Para a evolução da relação entre o partido e os sovietes, que tem importância decisiva no curso da Revolução de Outubro, ver'1. Deutscher, The prophet armed: Trotsky 1879-1921, 1954.
[28] Em 1927, 90% dos membros dos sovietes rurais e 75% dos seus presidentes não eram membros do Partido; os comitês executivos das regiões eram formados por 50% de não-partidários, enquanto no Comitê Central 75% dos delegados eram membros do partido. Ver o artigo "Bolshe-vism", de Maurice Dobb, na Encyclopedia of social sciences.
A. Rosenberg, A history ofbolshevism, Londres, 1934, cap. VI, descreve em detalhes como os membros do partido nos sovietes, votando "de acordo com as instruções que recebiam das autoridades permanentes do Partido", destruíram internamente o sistema dos sovietes.
[29] Citamos esses algarismos do livro de Victor Kravchenko, I chose freedom: thepersonal andpolitical life ofa Soviet official, Nova York, 1946, pp. 278 e 303. Trata-se, naturalmente, de uma fonte altamente duvidosa. Mas, como no caso da Rússia soviética, basicamente não se pode recorrer a não ser a fontes duvidosas, e temos de confiar inteiramente em reportagens, relatos e estimativas de um tipo ou de outro — tudo o que podemos fazer é usar qualquer informação que, pelo menos, pareça ter alto grau de probabilidade. Alguns historiadores acreditam que o método oposto — ou seja, usar exclusivamente o material fornecido pelo governo russo — é mais fidedigno, mas não é o caso, porque o material oficial não passa de propaganda.
[30] O Relatório de Stálin ao Décimo Sexto Congresso denunciava o deviacionismo como "reflexo" da resistência dos camponeses e das classes pequeno-burguesas nos escalões do partido. (Ver Leninism, 1933, vol. II, cap. III.) O curioso é que a oposição ficava indefesa contra esses ataques, porque também os opositores, e especialmente Trótski, estavam "sempre ansiosos por descobrir uma luta de classes por trás da luta de cliques" (Souvarine, pp. cit., p. 440).
[31] Kravchenko, op. cit., p. 187.
[32] Souvarine, op. cit., p. 575.
[33] A senha da SS, formulada pelo próprio Himmler, começa com as palavras: "Não existe tarefa dedicada a si mesma". Ver Gunter d'Alquen, "Die SS", em Schriften der Hochschule für Politik [Escritos da Escola Superior de Política], 1939. Os panfletos publicados pela SS para o consumo interno repetidamente insistem na "absoluta necessidade de se compreender a futilidade de tudo o que venha a ser um fim por si mesmo" (ver Der Reichsführer SS und Chef der deutschen Polizei [O líder nacional da SS e chefe da polícia alemã], sem data, "exclusivamente para uso interno da polícia").

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