Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
1 - As Massas
continuando...
O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos
países democráticos em geral e, em particular, dos Estados-nações europeus e do seu sistema
partidário. A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do
governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo
contrário, demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente
constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia
funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria. A
segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas
politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais
constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação. Agora, os
movimentos totalitários demonstravam que o governo democrático repousava na silenciosa
tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo, tanto quanto nas
instituições e organizações articuladas e visíveis do país. Assim; quando os movimentos
totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram
simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que
as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do
país, solapando com isto a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria.
Tem sido frequentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das
liberdades democráticas com o objetivo de suprimi-las. Não porque os seus líderes sejam
diabolicamente espertos ou as massas sejam infantilmente ignorantes. As liberdades
democráticas podem basear-se na igualdade de todos os cidadãos perante a lei; mas só adquirem
significado e funcionam organicamente quando os cidadãos pertencem a agremiações ou são
representados por elas, ou formam uma hierarquia social e política. O colapso do sistema de
classes como estratificação social e política dos Estados-nações europeus foi certamente "um
dos mais dramáticos acontecimentos da recente história alemã",[18] e favoreceu a ascensão do nazismo na mesma medida em que a ausência de estratificação
social na imensa população rural da Rússia (esse "grande corpo flácido destituído de educação
política, quase inacessível a ideias capazes de ação nobilitante", como disse Górki[19]) favoreceu
a deposição, pelos bolchevistas, do governo democrático de Kerenski. As condições sociais da
Alemanha antes de Hitler mostraram os perigos implícitos no desenvolvimento do Ocidente,
uma vez que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mesmo dramático colapso do sistema de
classes se repetiu em quase todos os países europeus, enquanto as ocorrências na Rússia
indicam claramente o rumo que podem tomar as inevitáveis mudanças revolucionárias na Ásia.
Na prática, pouco importa que os movimentos totalitários adotem os padrões do nazismo ou do
bolchevismo, que organizem as massas em nome de classes ou de raças, ou que pretendam
seguir as leis da vida e da natureza ou as da dialética e da economia. ^ A indiferença em relação
aos negócios públicos e a neutralidade em questões de política não são, por si, causas suficientes
para o surgimento de movimentos joiaüiárips. A sociedade competitiva de consumo criada pela
burguesia gerou apatia, e até mesmo hostilidade, em relação à vida pública, não apenas entre as
camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa no governo do país, mas acima de
tudo entre a sua própria classe. O longo período de falsa modéstia, em que a burguesia se
contentou em ser a classe social dominante sem aspirar ao domínio político, relegado à
aristocracia, foi seguido pela era imperialista, durante a qual a burguesia tornou-se cada vez
mais hostil às instituições nacionais existentes e passou a exigir o- poder político e a organizar
se para exercê-lo. Tanto a antiga apatia como a nova exigência de direção monopolística e
ditatorial resultavam de uma filosofia para a qual o sucesso ou o fracasso do indivíduo em
acirrada competição era o supremo objetivo, de4al modo que-o-exercício dos deveres e
responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia. Essas
atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um "homem forte"
assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos; mas constituem um
obstáculo para os movimentos totalitários, que não podem tolerar o individualismo burguês ou
qualquer outro tipo de individualismo. Os elementos apáticos da sociedade burguesa, por mais
que relutem em assumir as responsabilidades de cidadãos, mantêm intacta a sua personalidade,
pelo menos porque ela lhes permite sobreviver na luta competitiva pela vida.
É difícil perceber onde as organizações da ralé do século XIX diferem dos movimentos de
massa do século XX, porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e
mentalidade dos antigos líderes da escória, cujos padrões morais e esquemas políticos, aliás,
tanto se assemelhavam aos da burguesia. Embora o individualismo caracterizasse tanto a atitude
da burguesia como a da ralé em relação à vida, os movimentos totalitários podem, com justiça,
afirmar terem sido os primeiros partidos realmente anti-burgueses, o que não aconteceu com os seus predecessores do século XIX. Nem a Sociedade do 10 de Dezembro (que
ajudou a colocar Luís Napoleão no poder), nem as brigadas de açougueiros (que atuaram no Caso
Dreyfus), nem as Centenas Negras (que organizavam os pogroms na Rússia), nem os movimentos étnicos
de unificação envolveram os seus membros ao ponto de fazê-los perder completamente suas
reivindicações e ambições individuais, nem chegaram a conceber que uma organização, conseguisse
apagar a identidade do indivíduo para sempre, e não apenas por um instante de heroico gesto coletivo.
A relação entre a sociedade de classes dominada pela burguesia e as massas que emergiram do seu
colapso não é a mesma entre a burguesia e a ralé, que era um subproduto da produção capitalista. As
massas têm em comum com a ralé apenas uma característica, ou seja, ambas estão fora de qualquer
ramificação social e representação política normal. As massas não herdam, como o faz a ralé, os padrões
e atitudes da classe dominante, mas refletem, e de certo modo pervertem, os padrões e atitudes de todas as
classes em relação aos negócios públicos. Os padrões do homem da massa são determinados não apenas
pela classe específica à qual antes pertenceu, mas acima de tudo por influências e convicções gerais que
são tácita e silenciosamente compartilhadas por todas as classes da sociedade.
Fazer parte de uma classe, embora mais vaga e nunca tão inevitavelmente determinada pela origem social
como nas ordens e Estados da sociedade feudal, era geralmente uma questão de nascimento, e somente a
sorte ou dons extraordinários poderiam mudá-la. O status social era decisivo para que um indivíduo
participasse da política e, exceto em casos de emergência, quando se esperava que ele agisse apenas como
um nacional, independentemente de classe ou partido, ele nunca se defrontava diretamente com as coisas
públicas ou se sentia diretamente responsável por conduzi-las. À ascensão de uma classe correspondia a
intensificação da instrução e treinamento de certo número de seus membros para a política como carreira
e para o serviço do governo, pago ou gratuito, se a isso podiam permitir-se, e para a representação da
classe no Parlamento. A ninguém importava que a maioria dos membros de cada classe permanecesse
fora de qualquer partido ou organização política. Em outras palavras, o fato de um indivíduo pertencer a
uma classe, que tinha obrigações grupais limitadas e certas atitudes tradicionais em relação ao governo,
impediu o crescimento de um corpo de cidadãos que se sentissem, individual e pessoalmente,
responsáveis pelo governo do país. Esse caráter apolítico das populações dos Estados-nações veio à tona
somente quando o sistema de classes entrou em colapso e destruiu toda a urdidura de fios visíveis e
invisíveis que ligavam o povo à estrutura política.
O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário, porque os
partidos, cuja função era representar interesses, não mais podiam representá-los, uma vez que a sua fonte
e origem eram as classes. Sua continuidade tinha ainda certa importância para os membros das antigas
classes que esperavam inutilmente recuperar o status social, e mantinham-se coesos não porque ainda
tivessem interesses comuns, mas porque esperavam restaurá-los. Consequentemente, os partidos tornaram-se mais e mais psicológicos e ideológicos
em sua propaganda, e mais apologéticos e nostálgicos em sua orientação política. Além disso, haviam
perdido, sem que o percebessem, aqueles simpatizantes neutros que nunca se haviam interessado por
política por acharem que os partidos existiam para cuidar dos seus interesses. Assim, o primeiro sintoma
do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o
insucesso em recrutar membros dentre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio
silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixavam de lado a. apatia e marchavam para
onde vissem oportunidade de expressar a sua violeta oposição.
A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás de
todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada
tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs; que,
consequentemente, os mais respeitados, eloquentes e representativos membros da comunidade eram uns
néscios e que as autoridades constituídas eram não apenas perniciosas mas também obtusas e desonestas.
Para o nascimento dessa solidariedade, pouco importava que o trabalhador desempregado odiasse o status
quo e as autoridades sob a forma do Partido Social Democrata; que o pequeno proprietário desapossado o
fizesse sob a forma de um partido centrista ou de direita; e que os antigos membros das classes média e
superior se manifestassem sob a forma de extrema-direita tradicional. Essa massa de homens insatisfeitos
e desesperados aumentou rapidamente na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial,
quando a inflação e o desemprego agravaram as consequências desastrosas da derrota militar, despontou
em todos os Estados sucessórios e apoiou os movimentos extremistas da França e da Itália desde a
Segunda Guerra Mundial.
Foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homem de
massa da Europa. O fato de que o mesmo, destino, com monótona mas abstrata uniformidade, tocava a
grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse, a si próprio, em termos de fracasso
individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica. Contudo, essa amargura egocêntrica,
embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora, não
chegaria a constituir laço comum, porque não se baseava em qualquer interesse comum, fosse econômico,
social ou político. Esse egocentrismo, portanto, trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de
auto conservação. A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão da
frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa. O velho provérbio de que o pobre e o oprimido
nada têm a perder exceto o sofrimento nem sequer se aplicava aos homens da massa porque, ao perderem
o interesse no próprio bem-estar, eles perdiam muito mais do que o sofrimento da miséria; perdiam a
fonte das preocupações e cuidados que inquietam e moldam a vida humana. Himmler, que conhecia tão
bem a mentalidade daqueles a quem organizava, descreveu não apenas os membros da SS, mas as vastas camadas de onde os recrutava, quando disse que eles
não estavam interessados em "problemas do dia-a-dia", mas somente em "questões ideológicas
de importância para as próximas décadas ou séculos", conscientes de que "trabalham numa
grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos".[20] A gigantesca formação de massas
produziu um tipo de mentalidade que, como Cecil Rhodes quarenta anos antes, raciocinava em
termos de continentes e sentia em termos de séculos.
Eminentes homens de letras e estadistas europeus predisseram, a partir do começo do século
XIX, o surgimento do homem da massa e o advento de uma era da massa. Toda uma literatura
sobre a conduta da massa e a psicologia da massa demonstrou e popularizou o conhecimento,
tão comum entre os antigos, da afinidade entre a democracia e a ditadura, entre o governo da
ralé e a tirania. Mas, embora as previsões quanto ao surgimento de demagogia, credulidades,
superstições e brutalidade tenham se realizado até certo ponto, grande parte do seu significado
se diluiu em vista de fenômenos inesperados e imprevistos, como a perda radical do interesse do
indivíduo em si mesmo,[21] a indiferença cínica ou enfastiada diante da morte, a inclinação
apaixonada por noções abstratas guindadas ao nível de normas de vida, e o desprezo geral pelas
óbvias regras do bom senso.
As massas, contrariamente ao que foi previsto, não resultaram da crescente igualdade de
condição e da expansão educacional, com a sua consequente perda de qualidade e popularização
de conteúdo, pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos
movimentos de massa. Nem o mais sofisticado individualismo evitava aquele auto abandono em
direção à massa que os movimentos de massa propiciavam. O fato de a individualização e a
cultura não evitarem a formação de atitudes de massa era tão inesperado que foi atribuído
à morbidez e ao niilismo da moderna intelligentsia, ao ódio de si próprios que supostamente
caracteriza os intelectuais. Não obstante, os caluniados intelectuais constituíam apenas o
exemplo mais ilustrativo e eram os porta-vozes mais eloquentes de um fenômeno geral. A
atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa, que,
muito antes de atraírem, com muito mais facilidade, os membros sociáveis e não-individualistas
dos partidos tradicionais, acolheram os completamente desorganizados, os típicos "não
alinhados" que, por motivos individualistas, sempre se haviam recusado a reconhecer laços ou
obrigações sociais.
A verdade é que as massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura
competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas apenas quando se pertencia a uma classe. A principal característica do JhomeHL da
rftassa não é a brutalidade nem a mdezãl, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais
normais. Vindas da sociedade do Estado-nação, que era dominada por classes cujas fissuras
haviam sido cimentadas pelo sentimento nacionalista, essas massas, no primeiro desamparo da
sua existência, tenderam para um nacionalismo especialmente violento, que os líderes aceitavam
por motivos puramente demagógicos, contra os seus próprios instintos e finalidades.[22]
Nem o nacionalismo tribal nem o niilismo rebelde são característicos das massas, ou lhes são
ideologicamente apropriados, como o eram para a ralé. Mas os mais talentosos líderes de massa
de nossa época ainda vieram da ralé, e não das massas.[23] Hitler, cuja biografia se lê como um
livro-texto exemplar a esse respeito, e Stálin provinham da aparelhagem conspirativa do partido,
onde se misturavam proscritos e revolucionários. O antigo partido de Hitler, composto quase
exclusivamente de desajustados, fracassados e aventureiros, constituía na verdade "um exército
de boêmios"[24] que eram apenas o avesso da sociedade burguesa e a quem, consequentemente, a
burguesia alemã poderia ter usado com sucesso para seus próprios fins. Na realidade, a
burguesia se deixou enganar pelos nazistas do mesmo modo como a facção Rõhm-Schleicher no
Reichswehr [o Exército regular da República de Weimar], que também julgou que Hitler, a
quem havia usado como alcaguete, ou a SA, que tinha sido usada para propaganda militarista e
treino paramilitar, agiriam como seus agentes e ajudariam a criar uma ditadura militar.[25] Ambos
consideraram o movimento nazista em seus próprios termos de filosofia política da ralé,[26] e não perceberam o apoio
independente e espontâneo das massas aos novos líderes da ralé, nem o genuíno talento desses
líderes para a criação de novas formas de organização. A ralé, enquanto força motriz das
massas, já não era o agente da burguesia nem de ninguém a não ser das próprias massas.
Os movimentos totalitários dependiam menos da falta de estrutura de uma sociedade de massa
do que das condições específicas de uma massa atomizada e individualizada, como se pode
constatar por uma comparação do nazismo com o bolchevismo, que surgiram em seus
respectivos países em circunstâncias muito diversas. A fim de transformar a ditadura
revolucionária de Lênin em completo regime totalitário, Stálin teve primeiro de criar
artificialmente aquela sociedade atomizada que havia sido preparada para os nazistas na
Alemanha por circunstâncias históricas.
A vitória, surpreendentemente fácil, da Revolução de Outubro ocorreu num país onde a
burocracia despótica e centralizada governava uma massa populacional desestruturada, que não
se enquadrava organizacionalmente nem nos vestígios das ordens feudais rurais nem nas classes
capitalistas urbanas, nascentes e débeis. Quando Lênin declarou que em nenhuma outra parte do
mundo teria sido tão fácil galgar o poder e tão difícil conservá-lo, sabia não só da fraqueza da
classe operária russa, mas também das anárquicas condições sociais em geral, que propiciavam
mudanças súbitas. Desprovido do instinto de um líder de massas — pois não era orador e tinha o
vezo de confessar e analisar publicamente os próprios erros, o que atentava contra as regras da
demagogia —, Lênin se apegou imediatamente a toda diferenciação possível, fosse social,
nacional ou profissional, que pudesse dar alguma estrutura à população, e parecia estar
convencido de que só essa estratificação podia salvar a revolução. Legalizou a anárquica
expropriação dos donos de terra pelos camponeses, e assim estabeleceu na Rússia, pela primeira
vez e provavelmente a última, aquela classe camponesa emancipada que, desde a Revolução
Francesa, havia sido o mais firme esteio dos Estados-nações ocidentais. Tentou fortalecer a
classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes. Tolerou a tímida aparição de uma
nova classe média proveniente da NEP [Nova Política Econômica], após o fim da guerra civil.
Introduziu outras formas de distinção, organizando e, às vezes, até inventando o maior número possível de nacionalidades, fomentando a consciência
nacional e a percepção de diferenças históricas e culturais mesmo entre as tribos mais primitivas
da União Soviética. Parece claro que, nessas questões políticas puramente práticas, Lênin seguiu
seus instintos de estadista e não as suas convicções marxistas; de qualquer forma, a sua política
demonstra que temia mais a ausência de uma estrutura social ou de outra natureza do que possível desenvolvimento de tendências centrífugas nas nacionalidades recém-emancipadas,
ou mesmo o crescimento de uma nova burguesia a partir das classes média e camponesa recém
estabelecidas. Sem dúvida, Lênin sofreu a sua maior derrota quando, com o espoucar da guerra
civil, o supremo poder que ele originalmente planejava concentrar nos Sovietes passou
definitivamente às mãos da burocracia do Partido; mas mesmo isto, trágico como era para o
curso da Revolução, não teria levado necessariamente ao totalitarismo. Uma ditadura
unipartidária acrescentava apenas mais uma classe à estratificação do país já em curso, isto é, a
burocracia que, segundo os críticos socialistas da revolução, "possuía o Estado como
propriedade privada" (Marx).[27] No momento da morte de Lênin, os caminhos ainda estavam
abertos. A formação de operários, camponeses e classes médias não precisaria levar à luta de
classes que havia sido característica do capitalismo europeu. A agricultura ainda podia ser
desenvolvida numa base coletiva, cooperativa ou privada, e a economia nacional ainda estava
livre para seguir um padrão capitalista, estatal-capitalista ou de mercado. Nenhuma dessas
alternativas teria destruído automaticamente a nova estrutura do país.
Todas essas novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin quando ele começou a
preparar o país para o governo totalitário. A fim de_ produzir uma massa atomizada e amorfa,
necessitava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes que, como órgão principal de
representação nacional, ainda tinham certa função e impediam o domínio absoluto da
hierarquia! do Partido. Assim, debilitou primeiro os Sovietes nacionais, introduzindo neles
células bolchevistas das quais sairiam, com exclusividade, os funcionários superiores para os
comitês centrais.[28] Por volta de 1930, os últimos vestígios das antigas instituições comunais
haviam desaparecido: em seu lugar existia uma burocracia-partidária firmemente centralizada, cujas tendências para a russificação não eram muito
diferentes daquelas do regime czarista, exceto que os novos burocratas já não tinham medo de quem
soubesse ler e escrever.
O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou, por motivos ideológicos e
de propaganda, com as classes proprietárias, a nova classe média das cidades e os camponeses do interior.
Por serem numerosos e possuírem propriedades, os camponeses haviam sido até então, potencialmente, a
classe mais poderosa da União; consequentemente, a sua liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de
qualquer outro grupo, e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação, a pretexto de
expropriação dos kulaks e de coletivização. A liquidação das classes média e camponesa terminou no
início da década de 30: os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de
deportados sabiam agora "quem mandava neste país" e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas
de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos, mas somente dos caprichos do governo, aos quais
tinham de enfrentar em completa solidão, sem qualquer tipo de auxílio do grupo a que pertencessem.
Nem estatísticas nem documentos situam o momento exato em que a nova classe agrícola, produzida pela
coletivização e ligada por interesses comuns, passou a representar um perigo latente para o governo
totalitário, devido ao seu número e posição vital da economia do país. Mas, para aqueles que sabem
decifrar as "informações oficiais" do totalitarismo, esse instante ocorrera dois anos antes da morte de
Stálin, quando ele propôs dissolver as fazendas coletivas e transformá-las em unidades maiores. Não
sobreviveu para realizar esse plano; dessa vez, os sacrifícios teriam sido ainda mais altos, e as caóticas
consequências para a economia global ainda mais catastróficas do que por ocasião do extermínio da
primeira classe camponesa, mas não há motivo para julgar que ele não o teria conseguido; não há classe
que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros.
A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários. Como classe, eram mais débeis e
ofereciam muito menor resistência que os camponeses, porque a expropriação dos donos de fábricas, que
eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução, ao contrário da expropriação dos donos de
terra pelos camponeses, havia sido imediatamente frustrada pelo governo, que confiscara as fábricas
como sendo propriedade do Estado, sob o pretexto de que o Estado, de qualquer modo, pertencia ao
proletariado. O sistema stakha-novista, adotado no início da década de 30, eliminou a solidariedade e a
consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma
aristocracia operária, separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância
entre os trabalhadores e a gerência. Esse processo foi completado em 1938, quando a criação do documento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de
trabalhadores forçados.
Finalmente, veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de
extermínio. Stálin levou dois anos, de 1936 a 1938, para se desfazer de toda a aristocracia administrativa
e militar da sociedade soviética; quase todas as repartições públicas, fábricas, entidades econômicas e
culturais e agências governamentais, partidárias e militares passaram a novas mãos, quando "quase a
metade do pessoal administrativo, do partido ou não, üavia sido eliminada", e foram liquidados mais de
50% de todos os membros do partido é""pélõ menos outros 8 milhões de pessoas".[29] A criação de um
passaporte interno, no qual tinham de ser registradas e autorizadas todas as viagens de uma cidade para
outra, completou a destruição da burocracia como classe. No que diz respeito ao seu status jurídico, a
burocracia e os funcionários do partido estavam agora no mesmo nível dos operários; eram também parte
da vasta multidão de trabalhadores forçados russos, e o seu status como classe privilegiada na sociedade
soviética era mera lembrança do passado. E, como esse expurgo geral terminou com a liquidação das
mais altas autoridades policiais — as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral —, nem
mesmo os oficiais da GPU, que haviam instaurado o terror, podiam pensar que, como grupo, ainda
representassem alguma coisa, muito menos poder.
Nenhum desses imensos sacrifícios de vida humana foi motivado por uma raison d'état no antigo sentido
do termo. Nenhuma das camadas sociais liquidadas era hostil ao regime, nem era provável que se tornasse
hostil num futuro previsível. A oposição ativa e organizada havia cessado de existir por volta de 1930
quando Stálin, em seu discurso no Décimo Sexto Congresso do Partido, declarou ilegais as divergências
ideológicas dentro do partido, sendo que mesmo essa frouxa oposição mal pudera basear-se em alguma
classe existente.[30] O terror ditatorial — que difere do terror totalitário por ameaçar apenas adversários
autênticos, mas não cidadãos inofensivos e carentes de opiniões políticas — havia sido suficientemente
implacável para sufocar toda a atividade política, ostensiva ou clandestina, mesmo antes da morte de
Lênin. A intervenção do exterior, que poderia apoiar um dos setores descontentes da população, já não constituía perigo em 1930, quando a União Soviética, já reconhecida pela maioria dos Estados e
firmemente implantada, tornou-se parceira do sistema internacional vigente. Contudo, se Hitler
fosse um conquistador comum e não um governante totalitário rival, poderia ter tido excelente
oportunidade de conquistar pelo menos a Ucrânia com o consentimento de sua população.
Se politicamente o extermínio de classes não fazia sentido, foi simplesmente desastroso para a
economia soviética. As consequências da fome artificialmente criada em 1933 foram sentidas
durante anos em todo o país; a introdução do sistema stakhanovista em 1935, com a arbitrária
aceleração da produção individual, resultou num "desequilíbrio caótico" da jovem indústria;[31] a
liquidação da burocracia, isto é, da classe de gerentes e engenheiros das fábricas, terminou
privando as empresas industriais da escassa experiência e do pouco know-how que a nova
intelligentsia técnica russa havia conseguido adquirir.
Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um
dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o
governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não-políticos entre os subjugados,
tais como laços de família é de interesses culturais comuns. O totalitarismo que se preza deve
chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que
seja, mesmo que se trate de xadrez. Os amantes do "xadrez por amor ao xadrez",
adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da "arte por amor à arte",[32] demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade,
cuja uniformidade inteiramente homogênea é a condição fundamental para o totalitarismo. Do
ponto de vista dos governantes totalitários, uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao
xadrez difere apenas um pouco da classe de agricultores que o são por amor à agricultura,
embora seja menos perigosa. Himmler definiu muito bem o elemento da SS como o novo tipo
de homem que em nenhuma circunstância fará, jamais "alguma coisa apenas por amor a essa
coisa".[33]
continua página 356...
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Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[b]- As Massas)
________________[17] F. Borkenau descreve corretamente a situação: "Os comunistas obtiveram sucesso apenas modesto na tentativa de influenciar as massas da classe trabalhadora; portanto, sua base DerMonat [O Mês], Berlim, 1949, vol. 4).
[18] William Ebenstein, The Nazi state, Nova York, 1943, p. 247.
[19] Na descrição de Maksim Górki. Ver Souvarine, op. cit., p. 290.
[20] Discurso de Heinrich Himmler sobre a "Organização e dever da SS e da polícia", publicado em National
politischerLehrgang der Wehrmacht vom 15-23. Januarl937 [Instrução político-nacional das Forças Armadas, 15-23
de janeiro de 1937]. Tradução citada de Nazi conspiracy and aggression. Office of the United States Chief of
Counsel for the Prosecution of Axis Criminality. U. S. Government, Washington, 1946, IV, 616 ss.
[21] Gustave heBon, La psychologie des foules, 1895, menciona o peculiar desprendimento das massas. Ver o cap.
II, parágrafo 5.
[22] Os fundadores do partido nazista referiam-se uma vez ou outra a esse nacionalismo, mesmo antes de Hitler
havê-lo chefiado como "partido da Esquerda". Interessante também é um incidente que ocorreu após as eleições
parlamentares de 1932: "Gregor Strasser disse ao Führer, com certa amargura, que antes das eleições os nazistas
poderiam ter constituído no Reichstag uma maioria com o Centro; agora já não havia essa possibilidade, os dois
partidos tinham menos da metade das cadeiras do parlamento; (...) Mas com os comunistas ainda tinham uma
maioria, disse Hitler; e por isto ninguém pode governar contra nós" (Heiden, op. cit., pp. 94 e 495, respectivamente).
[23] Compare-se Carlton J. H. Hayes, op. cit., que não diferencia entre a ralé e as massas, e supõe que os ditadores
totalitários "vieram das massas e não das classes".
[24] Essa é a teoria central de K. Heiden, cujas análises do movimento nazista ainda são das mais importantes. "Dos
escombros das classes mortas surge a nova classe de intelectuais, e à sua frente vão os mais inescrupulosos, aqueles
que menos têm a perder e, portanto, os mais fortes: os boêmios armados, para quem a guerra é o lar, e a pátria é a
guerra civil" (op. cit., p. 100).
[25] A trama entre o general Schleicher, do Reichswehr, e Rohm, o chefe da SA, consistia em um plano para colocar
todas as formações paramilitares sob o comando militar do Reichswehr, o que de imediato acrescentaria milhões às
fileiras do Exército. Isto, naturalmente, teria certamente levado a uma ditadura, militar. Em junho de 1934, Hitler
liquidou Rohm e Schleicher. As negociações iniciais começaram com o pleno conhecimento de Hitler, que usou as
conexões de Rohm com o Reichswehr para ludibriar os círculos militares alemães acerca de suas verdadeiras
intenções. Em abril de 1932, Rohm declarou, como testemunha em um dos processos legais de Hitler, que a condição
militar da SA era perfeitamente entendida pelo Reichswehr. (Para documentação comprovatória do plano Rõhm
Schleicher, ver Nazi conspiracy, V, 466 ss. Ver também Heiden, op. cit., p. 450.) O próprio Rõhm fala com orgulho
das suas negociações com Schleicher que, segundo ele, foram iniciadas em 1931. Schleicher havia prometido colocar a SA sob o comando dos oficiais do Reichswehr em caso de
emergência. (Ver Die Memoiren des Stabschefs Rôhm [As memórias do comandante Rõhm], Saarbrücken, 1934, p. 170.) O caráter
militar da SA, moldado por Rôhm e constantemente combatido por Hitler, continuou a ditar o seu vocabulário mesmo depois da
liquidação da facção de Rõhm. Ao contrário dos SS, os membros da SA sempre insistiram em que eram os "representantes da
vontade militar da Alemanha", e para eles o Terceiro Reich era uma "comunidade militar [apoiada em] duas colunas: o Partido e a
Wehrmacht" (ver Handbuch der SA, Berlim, 1939, e Victor Lutze, "Die Sturmabteilungen" [As Seções de Assalto — ou seja, a SA],
em Grundlagen, Aufbau und Wirtschaftsordnung des nationalsozialisxischen Staates, n? 7a).
[26] A autobiografia de Rõhm é, em especial, um verdadeiro clássico desse tipo de literatura.
[27] Os anti-stalinistas basearam a sua crítica do desenvolvimento da União Soviética nessa formulação marxista, e até hoje
continuam dominados por essa ideia. Rakovsky, escrevendo do seu exílio na Sibéria em 1930, é da seguinte opinião: "Sob as nossas
vistas surgiu e está sendo formada uma ampla classe de diretores que tem suas subdivisões internas e que cresce através de
cooptação calculada e nomeações diretas ou indiretas. [...] O que une essa classe original é uma forma, também original, de
propriedade privada, a saber, o poder do Estado" (citado por Souvarine, op. cit., p. 564). Trata-se de uma análise bastante precisa do
desenvolvimento da era pré-stalinista. Para a evolução da relação entre o partido e os sovietes, que tem importância decisiva no
curso da Revolução de Outubro, ver'1. Deutscher, The prophet armed: Trotsky 1879-1921, 1954.
[28] Em 1927, 90% dos membros dos sovietes rurais e 75% dos seus presidentes não eram membros do Partido; os comitês
executivos das regiões eram formados por 50% de não-partidários, enquanto no Comitê Central 75% dos delegados eram membros
do partido. Ver o artigo "Bolshe-vism", de Maurice Dobb, na Encyclopedia of social sciences.
A. Rosenberg, A history ofbolshevism, Londres, 1934, cap. VI, descreve em detalhes como os membros do partido
nos sovietes, votando "de acordo com as instruções que recebiam das autoridades permanentes do Partido",
destruíram internamente o sistema dos sovietes.
[29] Citamos esses algarismos do livro de Victor Kravchenko, I chose freedom: thepersonal andpolitical life ofa
Soviet official, Nova York, 1946, pp. 278 e 303. Trata-se, naturalmente, de uma fonte altamente duvidosa. Mas, como
no caso da Rússia soviética, basicamente não se pode recorrer a não ser a fontes duvidosas, e temos de confiar
inteiramente em reportagens, relatos e estimativas de um tipo ou de outro — tudo o que podemos fazer é usar
qualquer informação que, pelo menos, pareça ter alto grau de probabilidade. Alguns historiadores acreditam que o
método oposto — ou seja, usar exclusivamente o material fornecido pelo governo russo — é mais fidedigno, mas não
é o caso, porque o material oficial não passa de propaganda.
[30] O Relatório de Stálin ao Décimo Sexto Congresso denunciava o deviacionismo como "reflexo" da resistência
dos camponeses e das classes pequeno-burguesas nos escalões do partido. (Ver Leninism, 1933, vol. II, cap. III.) O
curioso é que a oposição ficava indefesa contra esses ataques, porque também os opositores, e especialmente Trótski,
estavam "sempre ansiosos por descobrir uma luta de classes por trás da luta de cliques" (Souvarine, pp. cit., p. 440).
[31] Kravchenko, op. cit., p. 187.
[32] Souvarine, op. cit., p. 575.
[33] A senha da SS, formulada pelo próprio Himmler, começa com as palavras: "Não existe tarefa dedicada a si
mesma". Ver Gunter d'Alquen, "Die SS", em Schriften der Hochschule für Politik [Escritos da Escola Superior de
Política], 1939. Os panfletos publicados pela SS para o consumo interno repetidamente insistem na "absoluta
necessidade de se compreender a futilidade de tudo o que venha a ser um fim por si mesmo" (ver Der Reichsführer SS
und Chef der deutschen Polizei [O líder nacional da SS e chefe da polícia alemã], sem data, "exclusivamente para uso
interno da polícia").
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