quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Vila Rica de Ouro Preto: A Potosí de ouro

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     11. Vila Rica de Ouro Preto: A Potosí de ouro
          A febre do ouro, que continua impondo a morte ou a escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no Brasil; tampouco seus estragos.
     Durante dois séculos a partir do descobrimento, o solo do Brasil teimosamente negou os metais aos seus proprietários portugueses. A exploração da madeira, o pau brasil, ocupou o primeiro período da colonização do litoral, e logo apareceram grandes plantações de cana-de-açúcar no nordeste. No entanto, diferentemente da América hispânica, o Brasil parecia vazio de ouro e prata. Os portugueses não tinham encontrado ali civilizações indígenas de alto nível de desenvolvimento e organização, somente tribos selvagens e dispersas. Os aborígines desconheciam os metais; foram os portugueses que, por sua conta, tiveram de descobrir os locais em que se depositavam os aluviões de ouro no vasto território que se abria, através da derrota e do extermínio dos indígenas, à sua faina de conquistadores.
     Os bandeirantes [1] da região de São Paulo tinham atravessado a vasta zona entre a Serra da Mantiqueira e a cabeceira do rio São Francisco e notaram que os leitos e bancos de areia de vários rios e riachos que por ali corriam continham traços de ouro aluvial em pequenas quantidades visíveis. A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de ouro das rochas e os depositara nos rios, no fundo dos vales e nas depressões das montanhas. Sob as camadas de areia, terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de ouro de fácil extração do cascalho de quartzo; os métodos de extração se tornaram mais complexos na medida em que se esgotavam os depósitos mais superficiais. Assim entrou na história, impetuosamente, a região de Minas Gerais: a maior quantidade de ouro até então descoberta no mundo foi extraída no menor espaço de tempo.
     “Aqui o ouro era mato”, diz agora o mendigo, com o olhar planando sobre as torres das igrejas, “havia ouro pelos caminhos, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos de idade e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira vizinha de Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, parada no tempo. “A morte é certa, a hora incerta. Cada um tem seu tempo marcado”, diz o mendigo. Cospe na escadaria de pedra e sacode a cabeça: “Tinham dinheiro de sobra”, conta, como se os tivesse visto, “não sabiam o que fazer com ele e então faziam uma igreja atrás da outra”.
     Em outros tempos, essa comarca era a mais importante do Brasil. Agora... “Agora não”, diz o velho, “agora isto aqui não tem vida alguma. Aqui não há moços. Os moços foram embora.” Caminha descalço ao meu lado, passos lentos, sob o morno sol da tarde: “Vê? Ali na frente da igreja estão o sol e a lua, quer dizer que os escravos trabalharam dia e noite. Este templo foi feito pelos negros; aquele, pelos brancos. E aquela é a casa do monsenhor Alípio, que morreu aos 99 anos justos”.
     Ao longo do século XVIII, a produção brasileira do cobiçado mineral superou o volume total de ouro que a Espanha extraiu em suas colônias durante os dois séculos anteriores [2]. Choviam aventureiros e caçadores de tesouros. O Brasil tinha 300 mil habitantes em 1700; um século depois, ao final dos anos do ouro, a população já se multiplicara onze vezes. Não menos de 300 mil portugueses emigraram para o Brasil durante o século XVIII, “um contingente de população maior (...) do que aquele que a Espanha transferiu para todas as suas colônias na América” [3]. Calcula-se em uns 10 milhões o total de negros escravos trazidos da África, desde a conquista do Brasil e até a abolição da escravatura: embora não se disponha de uma cifra exata para o século XVIII, é preciso levar em conta que o ciclo do ouro absorvia mão de obra escrava em enormes proporções.
     Salvador da Bahia foi a capital brasileira do próspero ciclo do açúcar no Nordeste, mas a “idade do ouro” de Minas Gerais transferiu para o Sul o eixo econômico e político do país e, a partir de 1763, fez do Rio de Janeiro, o porto da região, a nova capital do Brasil. No centro dinâmico da florescente economia mineira brotaram as cidades, acampamentos nascidos do boom e bruscamente crescidos na vertigem da riqueza fácil, “santuários de criminosos, vagabundos e malfeitores” nas gentis palavras de uma autoridade colonial da época. A Vila Rica de Ouro Preto foi elevada à categoria de cidade em 1711; nascida da avalanche de mineiros, era a quintessência da civilização do ouro. Simão Ferreira Machado a descrevia, 23 anos depois, dizendo que os comerciantes de Ouro Preto, em matéria de poder, superavam sem termo de comparação os mais exitosos mercadores de Lisboa: “Para cá, como se fosse para um porto, convergem e são recolhidas à casa real da moeda grandiosas somas de ouro de todas as minas. Aqui vivem os homens mais refinados, tanto os leigos como os eclesiásticos. Este é o assento de toda a nobreza e a força dos militares. Esta é, em virtude de sua posição natural, a cabeça da América íntegra; e pelo poder de suas riquezas, a pérola preciosa do Brasil”. Outro escritor da época, Francisco Tavares de Brito, em 1732 definia Ouro Preto como “a Potosí de ouro”. [4]
     Com frequência chegavam a Lisboa queixas e protestos contra a vida pecaminosa em Ouro Preto, Sabará, São João d’El Rei, Ribeirão do Carmo e todo o turbulento distrito mineiro. As fortunas eram feitas e desfeitas num abrir e fechar de olhos. O padre Antonil denunciava que sobravam mineradores dispostos a pagar uma fortuna por um negro que soubesse tocar corneta e o dobro por uma prostituta mulata, “para com ela entregar-se a contínuos e escandalosos pecados”, mas os homens de sotaina não se portavam melhor: na correspondência oficial da época se encontram numerosos testemunhos contra os “maus clérigos” que infestavam a região. Eram acusados de usar a imunidade para contrabandear ouro em pó dentro de santinhos de madeira. Em 1705, afirmava-se que não havia em Minas Gerais um só cura que se preocupasse com a fé cristã do povo, e seis anos depois a Coroa chegou a proibir o estabelecimento de qualquer ordem religiosa no distrito mineiro.
     Proliferavam, no entanto, as formosas igrejas construídas e decoradas no original estilo barroco característico da região. Minas Gerais atraía os melhores artesãos da época. Externamente, os templos pareciam sóbrios, despojados; no interior, símbolo da alma divina, resplandeciam no ouro puro dos altares, retábulos, pilares e painéis de baixo-relevo; não se economizavam os metais preciosos para que as igrejas pudessem alcançar “também as riquezas do céu”, como aconselhava o frei Miguel de São Francisco, em 1710. Os serviços religiosos tinham preços altíssimos, mas tudo era fantasticamente caro nas minas. Como ocorrera em Potosí, Ouro Preto se lançava à dissipação de sua súbita riqueza. As procissões e os espetáculos proporcionavam a exibição de vestidos e adornos de luxo fulgurante. Em 1733, uma festa religiosa durou mais de uma semana. Além das procissões a pé, a cavalo e em triunfais carros de nácar, sedas e ouro, com trajes de fantasia e alegorias, havia também torneios equestres, touradas e bailes de rua ao som de flautas, gaitas e violas [5].
     Os mineradores desprezavam o cultivo da terra, e a região padeceu epidemias de fome em plena prosperidade, entre 1700 e 1713: os milionários tiveram de comer gatos, cachorros, ratos, formigas e gaviões. Os escravos gastavam suas forças e seus dias nas lavagens do ouro. “Ali trabalham, ali comem”, escrevia Luis Gomes Ferreira [6], “e ali, geralmente, tem de dormir; e como ao trabalhar ficam banhados de suor enquanto os pés se esfriam nas pedras ou na água, quando descansam ou comem seus poros se fecham e congelam de tal forma que eles se tornam vulneráveis a muitas enfermidades perigosas, como as bem severas pleurisia, apoplexia, convulsões, paralisia, pneumonia e muitas outras.” A doença era uma bênção do céu que aproximava a morte. Os capitães de mato recebiam recompensas em ouro por cada cabeça cortada de escravo fugitivo.
     Os escravos eram chamados “peças das Índias” quando eram medidos, pesados e embarcados em Luanda; os que sobreviviam à travessia oceânica se transformavam, já no Brasil, “nas mãos e nos pés” do amo branco. Angola exportava escravos bantos e presas de elefante em troca de roupa, bebidas e armas de fogo; mas os mineradores de Ouro Preto preferiam os negros que vinham da pequena praia de Whydah, na costa da Guiné, porque eram mais vigorosos, duravam um pouco mais e tinham poderes mágicos para descobrir o ouro. De resto, cada minerador necessitava de pelo menos uma amante negra de Whydah para que a sorte o acompanhasse nas explorações [7]. A explosão do ouro não só incrementou a importação de escravos como também absorveu boa parte da mão de obra negra empregada nas plantações de cana-de-açúcar e tabaco de outras regiões do Brasil, que ficaram sem braços. Um decreto real de 1711 proibiu a venda de escravos empregados em terras agrícolas para o serviço nas minas, com exceção daqueles que demonstravam “perversidade de caráter”. Era insaciável a fome de escravos em Ouro Preto. Os negros morriam rapidamente, apenas em casos excepcionais chegavam a suportar sete anos contínuos de trabalho. Isto sim: antes da travessia do Atlântico, os portugueses os batizavam. E no Brasil tinham a obrigação de assistir à missa, embora estivessem proibidos de entrar na capela maior ou de sentar nos bancos.
     Em meados do século XVIII, já muitos mineiros tinham se deslocado para o Serro do Frio em busca de diamantes: descobriu-se que as pedras cristalinas descartadas pelos caçadores de ouro eram diamantes. Minas Gerais oferecia ouro e diamantes casados, em proporções parelhas. O f lorescente acampamento de Tijuco se converteu no centro do Distrito Diamantino, e ali, como em Ouro Preto, os ricos vestiam a última moda europeia e encomendavam do outro lado do mar roupas, armas e os móveis mais luxuosos: horas de delírio e esbanjamento. Uma escrava mulata, Francisca da Silva, conquistou sua liberdade ao tornar-se amante do milionário João Fernandes de Oliveira, virtual soberano de Tijuco, e ela, que era feia e tinha já dois filhos, converteu-se na Xica que manda [8]. Como nunca vira o mar e queria estar perto dele, seu cavalheiro construiu para ela um grande lago artificial, no qual colocou um barco com tripulação e tudo. Nas faldas da serra de São Francisco levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas exóticas e cascatas artificiais; em sua honra oferecia opíparos banquetes regados com os melhores vinhos, bailes noturnos até o amanhecer, funções de teatro e concertos. Em 1818, Tijuco ainda festejou grandiosamente o casamento do príncipe da corte portuguesa, mas dez anos antes, John Mawe, inglês que visitou Ouro Preto, já se assombrara com a pobreza; encontrou casas vazias e sem valor, com cartazes que em vão as colocavam à venda, e foi servido com comida imunda e escassa [9]. Tempos antes havia estalado uma rebelião que coincidiu com a crise na comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado e esquartejado, e outros lutadores pela independência foram mandados para o cárcere ou para o exílio.

Primeira Parte: Vila Rica de Ouro Preto: A Potosí de ouro[11]
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[1] As bandeiras paulistas eram bandos errantes de organização paramilitar e de força variável. Suas expedições floresta adentro desempenharam importante papel na colonização do interior do Brasil.
[2] FURTADO, op.cit.
[3] FURTADO, Celso. Formación económica del Brasil. México, 1959.
[4] BOXER, C. R. The Golden Age of Brazil. California, 1969.
[5] LIMA JUNIOR, Augusto de. Vila Rica de Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte, 1957.
[6] BOXER, op. cit.
[7] BOXER, op. cit. Em Cuba, atribuíam-se propriedades medicinais às escravas. Segundo o testemunho de Esteban Montejo, “havia um tipo de enfermidade que atacava os brancos. Era uma enfermidade nas veias e nas partes masculinas. Curava-se com as negras. Aquele que tinha sido atacado deitava-se com uma negra e passava para ela. Assim se curava logo”. BARNET, Miguel. Biografía de un cimarrón. Buenos Aires, 1968.
[8] SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Rio de Janeiro, 1956.
[9] LIMA JUNIOR, op. cit.

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