PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
11. Vila Rica de Ouro Preto: A Potosí de ouro
A febre do ouro, que continua impondo a morte ou a
escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no
Brasil; tampouco seus estragos.
Durante dois séculos a partir do descobrimento, o solo
do Brasil teimosamente negou os metais aos seus
proprietários portugueses. A exploração da madeira, o pau
brasil, ocupou o primeiro período da colonização do litoral, e
logo apareceram grandes plantações de cana-de-açúcar no
nordeste. No entanto, diferentemente da América hispânica,
o Brasil parecia vazio de ouro e prata. Os portugueses não
tinham encontrado ali civilizações indígenas de alto nível de
desenvolvimento e organização, somente tribos selvagens e
dispersas. Os aborígines desconheciam os metais; foram os
portugueses que, por sua conta, tiveram de descobrir os
locais em que se depositavam os aluviões de ouro no vasto
território que se abria, através da derrota e do extermínio
dos indígenas, à sua faina de conquistadores.
Os bandeirantes
[1] da região de São Paulo tinham
atravessado a vasta zona entre a Serra da Mantiqueira e a
cabeceira do rio São Francisco e notaram que os leitos e
bancos de areia de vários rios e riachos que por ali corriam
continham traços de ouro aluvial em pequenas quantidades
visíveis. A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de
ouro das rochas e os depositara nos rios, no fundo dos vales
e nas depressões das montanhas. Sob as camadas de areia,
terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de
ouro de fácil extração do cascalho de quartzo; os métodos
de extração se tornaram mais complexos na medida em que
se esgotavam os depósitos mais superficiais. Assim entrou
na história, impetuosamente, a região de Minas Gerais: a
maior quantidade de ouro até então descoberta no mundo
foi extraída no menor espaço de tempo.
“Aqui o ouro era mato”, diz agora o mendigo, com o
olhar planando sobre as torres das igrejas, “havia ouro pelos
caminhos, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos de
idade e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do
Carmo), a pequena cidade mineira vizinha de Ouro Preto,
que se conserva, como Ouro Preto, parada no tempo. “A
morte é certa, a hora incerta. Cada um tem seu tempo
marcado”, diz o mendigo. Cospe na escadaria de pedra e
sacode a cabeça: “Tinham dinheiro de sobra”, conta, como
se os tivesse visto, “não sabiam o que fazer com ele e então
faziam uma igreja atrás da outra”.
Em outros tempos, essa comarca era a mais importante
do Brasil. Agora... “Agora não”, diz o velho, “agora isto aqui
não tem vida alguma. Aqui não há moços. Os moços foram
embora.” Caminha descalço ao meu lado, passos lentos, sob
o morno sol da tarde: “Vê? Ali na frente da igreja estão o sol
e a lua, quer dizer que os escravos trabalharam dia e noite.
Este templo foi feito pelos negros; aquele, pelos brancos. E
aquela é a casa do monsenhor Alípio, que morreu aos 99
anos justos”.
Ao longo do século XVIII, a produção brasileira do
cobiçado mineral superou o volume total de ouro que a
Espanha extraiu em suas colônias durante os dois séculos
anteriores
[2].
Choviam aventureiros e caçadores de
tesouros. O Brasil tinha 300 mil habitantes em 1700; um
século depois, ao final dos anos do ouro, a população já se
multiplicara onze vezes. Não menos de 300 mil portugueses
emigraram para o Brasil durante o século XVIII, “um
contingente de população maior (...) do que aquele que a
Espanha transferiu para todas as suas colônias na
América”
[3]. Calcula-se em uns 10 milhões o total de negros
escravos trazidos da África, desde a conquista do Brasil e
até a abolição da escravatura: embora não se disponha de
uma cifra exata para o século XVIII, é preciso levar em conta
que o ciclo do ouro absorvia mão de obra escrava em
enormes proporções.
Salvador da Bahia foi a capital brasileira do próspero
ciclo do açúcar no Nordeste, mas a “idade do ouro” de
Minas Gerais transferiu para o Sul o eixo econômico e
político do país e, a partir de 1763, fez do Rio de Janeiro, o
porto da região, a nova capital do Brasil. No centro dinâmico
da florescente economia mineira brotaram as cidades,
acampamentos nascidos do boom e bruscamente crescidos
na vertigem da riqueza fácil, “santuários de criminosos,
vagabundos e malfeitores” nas gentis palavras de uma
autoridade colonial da época. A Vila Rica de Ouro Preto foi
elevada à categoria de cidade em 1711; nascida da
avalanche de mineiros, era a quintessência da civilização do
ouro. Simão Ferreira Machado a descrevia, 23 anos depois,
dizendo que os comerciantes de Ouro Preto, em matéria de
poder, superavam sem termo de comparação os mais
exitosos mercadores de Lisboa: “Para cá, como se fosse
para um porto, convergem e são recolhidas à casa real da
moeda grandiosas somas de ouro de todas as minas. Aqui
vivem os homens mais refinados, tanto os leigos como os
eclesiásticos. Este é o assento de toda a nobreza e a força
dos militares. Esta é, em virtude de sua posição natural, a
cabeça da América íntegra; e pelo poder de suas riquezas, a
pérola preciosa do Brasil”. Outro escritor da época,
Francisco Tavares de Brito, em 1732 definia Ouro Preto
como “a Potosí de ouro”.
[4]
Com frequência chegavam a Lisboa queixas e protestos
contra a vida pecaminosa em Ouro Preto, Sabará, São João
d’El Rei, Ribeirão do Carmo e todo o turbulento distrito
mineiro. As fortunas eram feitas e desfeitas num abrir e
fechar de olhos. O padre Antonil denunciava que sobravam
mineradores dispostos a pagar uma fortuna por um negro
que soubesse tocar corneta e o dobro por uma prostituta
mulata, “para com ela entregar-se a contínuos e
escandalosos pecados”, mas os homens de sotaina não se
portavam melhor: na correspondência oficial da época se
encontram numerosos testemunhos contra os “maus
clérigos” que infestavam a região. Eram acusados de usar a
imunidade para contrabandear ouro em pó dentro de
santinhos de madeira. Em 1705, afirmava-se que não havia
em Minas Gerais um só cura que se preocupasse com a fé
cristã do povo, e seis anos depois a Coroa chegou a proibir o
estabelecimento de qualquer ordem religiosa no distrito
mineiro.
Proliferavam,
no
entanto,
as
formosas igrejas
construídas e decoradas no original estilo barroco
característico da região. Minas Gerais atraía os melhores
artesãos da época. Externamente, os templos pareciam
sóbrios, despojados; no interior, símbolo da alma divina,
resplandeciam no ouro puro dos altares, retábulos, pilares e
painéis de baixo-relevo; não se economizavam os metais
preciosos para que as igrejas pudessem alcançar “também
as riquezas do céu”, como aconselhava o frei Miguel de São
Francisco, em 1710. Os serviços religiosos tinham preços
altíssimos, mas tudo era fantasticamente caro nas minas.
Como ocorrera em Potosí, Ouro Preto se lançava à
dissipação de sua súbita riqueza. As procissões e os
espetáculos proporcionavam a exibição de vestidos e
adornos de luxo fulgurante. Em 1733, uma festa religiosa
durou mais de uma semana. Além das procissões a pé, a
cavalo e em triunfais carros de nácar, sedas e ouro, com
trajes de fantasia e alegorias, havia também torneios
equestres, touradas e bailes de rua ao som de flautas,
gaitas e violas
[5].
Os mineradores desprezavam o cultivo da terra, e a
região padeceu epidemias de fome em plena prosperidade,
entre 1700 e 1713: os milionários tiveram de comer gatos,
cachorros, ratos, formigas e gaviões. Os escravos gastavam
suas forças e seus dias nas lavagens do ouro. “Ali
trabalham, ali comem”, escrevia Luis Gomes Ferreira
[6], “e
ali, geralmente, tem de dormir; e como ao trabalhar ficam
banhados de suor enquanto os pés se esfriam nas pedras ou
na água, quando descansam ou comem seus poros se
fecham e congelam de tal forma que eles se tornam
vulneráveis a muitas enfermidades perigosas, como as bem
severas
pleurisia,
apoplexia,
convulsões,
paralisia,
pneumonia e muitas outras.” A doença era uma bênção do
céu que aproximava a morte. Os capitães de mato recebiam
recompensas em ouro por cada cabeça cortada de escravo
fugitivo.
Os escravos eram chamados “peças das Índias” quando
eram medidos, pesados e embarcados em Luanda; os que
sobreviviam à travessia oceânica se transformavam, já no
Brasil, “nas mãos e nos pés” do amo branco. Angola
exportava escravos bantos e presas de elefante em troca de
roupa, bebidas e armas de fogo; mas os mineradores de
Ouro Preto preferiam os negros que vinham da pequena
praia de Whydah, na costa da Guiné, porque eram mais
vigorosos, duravam um pouco mais e tinham poderes
mágicos para descobrir o ouro. De resto, cada minerador
necessitava de pelo menos uma amante negra de Whydah
para que a sorte o acompanhasse nas explorações
[7]. A
explosão do ouro não só incrementou a importação de
escravos como também absorveu boa parte da mão de obra
negra empregada nas plantações de cana-de-açúcar e
tabaco de outras regiões do Brasil, que ficaram sem braços.
Um decreto real de 1711 proibiu a venda de escravos
empregados em terras agrícolas para o serviço nas minas,
com exceção daqueles que demonstravam “perversidade de
caráter”. Era insaciável a fome de escravos em Ouro Preto.
Os negros morriam rapidamente, apenas em casos
excepcionais chegavam a suportar sete anos contínuos de
trabalho. Isto sim: antes da travessia do Atlântico, os
portugueses os batizavam. E no Brasil tinham a obrigação
de assistir à missa, embora estivessem proibidos de entrar
na capela maior ou de sentar nos bancos.
Em meados do século XVIII, já muitos mineiros tinham
se deslocado para o Serro do Frio em busca de diamantes:
descobriu-se que as pedras cristalinas descartadas pelos
caçadores de ouro eram diamantes. Minas Gerais oferecia
ouro e diamantes casados, em proporções parelhas. O
f
lorescente acampamento de Tijuco se converteu no centro
do Distrito Diamantino, e ali, como em Ouro Preto, os ricos
vestiam a última moda europeia e encomendavam do outro
lado do mar roupas, armas e os móveis mais luxuosos:
horas de delírio e esbanjamento. Uma escrava mulata,
Francisca da Silva, conquistou sua liberdade ao tornar-se
amante do milionário João Fernandes de Oliveira, virtual
soberano de Tijuco, e ela, que era feia e tinha já dois filhos,
converteu-se na Xica que manda
[8]. Como nunca vira o mar
e queria estar perto dele, seu cavalheiro construiu para ela
um grande lago artificial, no qual colocou um barco com
tripulação e tudo. Nas faldas da serra de São Francisco
levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas
exóticas e cascatas artificiais; em sua honra oferecia
opíparos banquetes regados com os melhores vinhos, bailes
noturnos até o amanhecer, funções de teatro e concertos.
Em 1818, Tijuco ainda festejou grandiosamente o
casamento do príncipe da corte portuguesa, mas dez anos
antes, John Mawe, inglês que visitou Ouro Preto, já se
assombrara com a pobreza; encontrou casas vazias e sem
valor, com cartazes que em vão as colocavam à venda, e foi
servido com comida imunda e escassa
[9]. Tempos antes
havia estalado uma rebelião que coincidiu com a crise na
comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes,
foi enforcado e esquartejado, e outros lutadores pela
independência foram mandados para o cárcere ou para o
exílio.
continua na página...93
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Primeira Parte: Vila Rica de Ouro Preto: A Potosí de ouro[11]
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[1] As bandeiras paulistas eram bandos errantes de organização paramilitar e
de força variável. Suas expedições floresta adentro desempenharam importante
papel na colonização do interior do Brasil.
[2] FURTADO, op.cit.
[3] FURTADO, Celso. Formación económica del Brasil. México, 1959.
[4] BOXER, C. R. The Golden Age of Brazil. California, 1969.
[5] LIMA JUNIOR, Augusto de. Vila Rica de Ouro Preto. Síntese histórica e
descritiva. Belo Horizonte, 1957.
[6] BOXER, op. cit.
[7] BOXER, op. cit. Em Cuba, atribuíam-se propriedades medicinais às escravas.
Segundo o testemunho de Esteban Montejo, “havia um tipo de enfermidade que
atacava os brancos. Era uma enfermidade nas veias e nas partes masculinas.
Curava-se com as negras. Aquele que tinha sido atacado deitava-se com uma
negra e passava para ela. Assim se curava logo”. BARNET, Miguel. Biografía de
un cimarrón. Buenos Aires, 1968.
[8] SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Rio de
Janeiro, 1956.
[9] LIMA JUNIOR, op. cit.
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