domingo, 16 de novembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / II - Um dos espectros vermelhos daquele tempo

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     II - Um dos espectros vermelhos daquele tempo
     
          Quem naquela época passasse pela pequena cidade de Vernon e dirigisse o seu passeio para a sua bela e monumental ponte, a que dentro em pouco esperamos ver suceder alguma desgraciosa ponte-pênsil, teria ocasião de notar, se alongasse os olhos de cima do parapeito, um homem dos seus cinquenta anos, com um barrete de couro na cabeça, umas calças e uma jaqueta de grosseiro pano escuro, a que estava cosido um objeto amarelo que se conhecia ter sido uma fita vermelha, tamancos nos pés, crestado do sol, o rosto quase negro e os cabelos quase brancos, com uma larga cicatriz na testa, que se continuava até uma das faces, curvado, alquebrado, velho antes do tempo, certo ali quase todos os dias com uma enxada e uma foice na mão dentro de um dos recintos murados que ficam ao pé da ponte, orlando como uma cadeia de terraços a margem esquerda do Sena, vergéis graciosos cheios de flores, aos quais se poderia dar o nome de jardins, se fossem maiores, ou chamar ramalhetes, se fossem mais pequenos. Todos estes quintalinhos confinam por um lado com o rio e pelo outro com uma casa. Em 1817, o homem de quem acabamos de falar, habitava o menos amplo desses quintalinhos e a casa de mais humilde aparência de entre todas elas, onde vivia só e solitário, sem ruído e pobremente, na companhia de uma mulher, nem nova nem velha, nem bonita nem feia, nem camponesa nem da cidade, que era quem o servia. Era célebre na cidade o quadrado de terra a que ele chamava o seu jardim, pela beleza das flores que nele cultivava, cultura que constituía a sua única ocupação.
     A poder de trabalho, de perseverança, de cuidados e regas, aquele homem conseguira criar depois do criador e inventar certas tulipas e dálias que pareciam ter esquecido à natureza, O seu engenho precedera o de Soulange Bodin, na formação de alegretes de terra brava para a cultura dos raros e preciosos arbustos da América e da China. De Verão, ao romper do dia, já estava no seu cuidado vergel, sachando, mondando, cortando, regando, passeando pelo meio das suas flores com ar de bondade, de tristeza e doçura, às vezes pensativo e imóvel durante horas seguidas, escutando o canto de algum passarinho empoleirado nas árvores ou o ruidoso travessear de alguma criança nas casas da vizinhança, outras vezes com os olhos fixos numa gota de orvalho suspensa de alguma haste de erva, semelhando um carbúnculo pela reflexão dos raios do Sol.
      A sua mesa era frugal. O apaixonado cultor de tulipas bebia mais leite do que vinho. Ralhava-lhe a criada, uma criança bastava para o fazer ceder. A sua timidez chegava a ponto de o tornar insociável, saindo à rua raras vezes e falando apenas com os pobres que lhe batiam à porta e com o seu abade, o padre Mabeuf, que era um santo velho. Todavia, se alguns habitantes da cidade ou pessoas de fora lhe batiam à porta movidos da curiosidade de ver as suas tulipas e as suas rosas, ele abria-a risonho, mostrando lhes tudo com atenciosas maneiras.
     Era este o bandido do Loire.
     Quem ao mesmo tempo lesse as memórias militares, as biografias, o «Moniteur» e os boletins do exército, ficaria impressionado com um nome frequentes vezes repetido em tudo isto, o nome de Jorge Pontmercy. Quando jovem, este Jorge Pontmercy fora soldado no regimento de Saintonge. Rebentou a revolução. O regimento de Saintonge fez parte do exército do Reno, conservando o nome da sua província, porquanto os antigos regimentos da monarquia nem mesmo depois da queda dela os perderam, vindo a ser organizados em brigadas somente em 1794. Pontmercy combateu em Spire, Worms, Neustadt, Turkheim, Alzey e em Mayença, onde fazia parte dos duzentos que formavam a retaguarda de Houchard. Ali fez frente só com doze companheiros ao corpo do príncipe de Hessc, por trás da antiga trincheira de Andernach, retirando-se para juntar-se ao corpo do exército, somente quando o canhão do inimigo abriu brecha na trincheira desde o rebordo do parapeito até à escarpa do fosso. Em Marchiennes e na ação de Mont-Palissel, combateu às ordens de Kleber, ficando nesta última com um braço quebrado por uma bala de biscainho. Em seguida passou à fronteira de Itália, onde fez parte dos trinta granadeiros que defenderam o desfiladeiro de Tende com Joubert. Joubert, em virtude disso, foi nomeado ajudante-general e Pontmercy alferes. Na batalha de Lodi que fez dizer a Bonaparte: «Berthier serviu de artilheiro, de granadeiro e de soldado de cavalaria», Pontmercy combateu ao lado de Berthier debaixo de uma chuva de balas. Em Novi viu cair o seu antigo general Joubert no momento em que de espada em punho, gritava: «Avançar!» Tendo uma ocasião embarcado com a sua companhia por assim o exigirem as necessidades da campanha, numa embarcação ligeira que se dirigia de Genova para não sabemos que portozito da costa, entestou com sete ou oito navios ingleses pela proa. Queria o capitão genovês atirar as peças ao mar, esconder os soldados no porão e escapulir-se como navio mercante, mas Pontmercy mandou içar a bandeira tricolor no mastro de ré e passou altivamente em frente dos canhões das fragatas britânicas. Daí a vinte léguas, animado pelo próspero sucesso da sua audácia, atacou e apresou um transporte inglês que conduzia tropas para a Sicília, o qual ia atulhado de homens e cavalos até às escotilhas. Em 1805, fizera parte da divisão Malher que tirou Gunzburgo do poder do arquiduque Fernando. Em Wettingen amparou em seus braços, debaixo de uma saraivada de balas, o coronel Maupetit, mortalmente ferido à frente do 9.º regimento de dragões. Em Austerlitz, distinguira-se na admirável subida feita debaixo do fogo do inimigo.
     Quando a cavalaria da guarda municipal russa derrotou um batalhão do 4 de infantaria de linha, Pontmercy foi um dos que se desforraram desbaratando aquela guarda, o que lhe mereceu ser condecorado pelo imperador. Pontmercy viu sucessivamente ficarem prisioneiros Wurmser em Mantua, Melas em Alexandria, Make em Ulm. Fez parte do oitavo corpo do grande exército que Mortier comandava e que tomou Hamburgo. Depois passou para o 55 de linha, que era o antigo regimento de Flandres. Em Eylau, achou-se no cemitério onde o heroico capitão Luís Hugo, o do autor deste livro, susteve durante duas horas, só com a sua companhia que constava de oitenta e três homens, todo o ímpeto do exército inimigo. Pontmercy foi um dos três que saíram vivos daquele cemitério. Esteve em Friedland, depois do que viu Moscovo, Beresina, Lutzen, Bautzen, Dresde, Wachau, Leipzick e os desfiladeiros de Gelenhau-sen; depois Montmirail, Chateau-Thierry, Craon, as margens do Marne, as do Aisne e a temível posição de Laon. Em Arnay-le-Duc, sendo então capitão, carregou à espada dez cossacos e salvou não o seu general, mas o seu cabo. Nessa ocasião ficou gravemente ferido e só do braço esquerdo tiraram-lhe vinte e sete esquirolas. Oito dias antes da capitulação de Paris, havia pouco que ele tinha trocado com um camarada e passado para a cavalaria. Pontmercy possuía o que no antigo regime se chamava a mão dupla, isto é, igual aptidão para manejar como soldado a espada ou a espingarda, e para fazer manobrar como oficial um esquadrão ou um batalhão.
      Foi desta aptidão, aperfeiçoada pela educação militar, que nasceram certas armas especiais; os dragões, por exemplo, que são ao mesmo tempo cavaleiros e infantes. Pontmercy acompanhou Napoleão à ilha de Elba. Em Waterloo era chefe de esquadrão de couraceiros na brigada Dubois, Foi ele quem tomou a bandeira do batalhão de Luneburgo e em seguida a foi lançar coberto de sangue, aos pés do imperador. No momento de se apoderar da bandeira recebera uma cutilada no rosto. O imperador, cheio de contentamento, gritou-lhe: «És coronel, barão e oficial da Legião de Honra!» Pontmercy respondeu: «Sire, agradeço-vos pela minha viúva». Passada uma hora, caía na vala de Ohain.
     Agora, quem era Jorge Pontmercy? Era aquele mesmo salteador do Loire.
     Já se viu, pois, alguma coisa da sua história. Depois de Waterloo, Pontmercy tirado, como se não deve ter esquecido, do caminho enterrado de Ohain, conseguira reunir-se ao exército, e arrastara-se de ambulância em ambulância, até aos acantonamentos do Loire.
     A restauração pusera-o a meio soldo e depois reformara-o, isto é, afastara-o, sob a vigilância superior para Vernon. O rei Luís XVIII, não confirmando nada do que fora feito durante os Cem Dias, não lhe reconhecera a sua qualidade de oficial da Legião de Honra, nem o posto de coronel, nem o título de barão. Ele pela sua parte não desprezava a mínima ocasião de se assinar: «Coronel barão Pontmercy», não tinha senão uma casaca azul bastante velha, e não saía nunca sem que lhe pusesse na botoeira a roseta de oficial da Legião de Honra. O procurador-régio mandou-o prevenir de que o ministério público o perseguiria por «usar indevidamente» aquela condecoração.
      Quando lhe foi comunicado este aviso por um intermediário oficioso, Pontmercy respondeu com amargo sorriso: «Não sei se sou eu que já não entendo francês, ou se é o senhor que já o não fala; o fato é que não entendo». Em seguida saiu oito dias sucessivos com a roseta. Não ousaram mais inquietá-lo. Por duas ou três vezes, o ministro da guerra e o general da província, lhe escreveram com este sobrescrito: Ao senhor comandante Pontmercy. O coronel reenviou as cartas sem as abrir. Por esta ocasião, tratava Napoleão do mesmo modo em Santa Helena, as missivas de Sir Hudson Lowe, dirigidas ao general Bonaparte. Pontmercy chegara afinal, desculpem-nos a frase, a ter na boca a mesma saliva que o seu imperador.
     Do mesmo modo havia em Roma soldados cartagineses, prisioneiros, que se recusavam a saudar Fiamínio, e que participava da alma de Aníbal.
     Uma manhã, encontrou numa rua de Vernon o procurador-régio, e foi direito a ele: «Senhor procurador-régio», disse-lhe ele, «ser-me-á permitido usar o meu gilvaz?»
     Pontmercy não tinha mais coisa alguma além do exíguo meio soldo de chefe de esquadrão. Arrendara em Vernon a casa mais pequena que pudera encontrar e nela vivia só, como há pouco se viu.
      No tempo do império, entre duas guerras, achara meio de ter tempo para desposar a menina Gillenormand. O idoso burguês, indignado do íntimo do coração, dera o seu consentimento, suspirando: «Até as mais nobres famílias se vêm obrigadas a isto».
     Em 1815, a esposa de Pontmercy, senhora realmente admirável, espírito elevado e raro, e digna de seu marido, falecera, deixando um filho. Este filho teria sido a alegria do coronel na sua solidão; mas o avô reclamara imperiosamente seu neto, declarando que se o não entregassem, o deserdaria. O pai cedera no interesse do filho e passara a amar as flores.
     Pontmercy, que renunciara a tudo sem resistência nem murmúrio, dividia o seu pensamento entre as coisas inocentes que fazia e as grandes coisas que fizera. Passava todo o seu tempo a esperar o reflorir dos seus cravos ou embebido nas recordações de Austerlitz.
     Gillenormand não mantinha relações de espécie nenhuma com seu genro. Para ele, o coronel era «um bandido», e ele para o coronel «um pedaço de asno». O bom velho nunca falava dele a não ser para fazer zombeteiras alusões ao «seu baronato». Tinham expressamente ajustado que Pontmercy nunca tentaria ver seu filho nem falar-lhe, sob pena daquele o tornar a entregar, expulso para sempre e deserdado.
     Segundo esse contrato, Pontmercy, que para Gillenormand e sua família era um empestado, deixaria o sistema da educação de seu filho inteiramente à escolha dele. Talvez o coronel não andasse bem em aceitar tais condições, mas julgava ele que fazia bem e que só a si se sacrificava, e por isso aceitou.
     A herança que por morte de Gillenormand viria a tocar ao filho de Pontmercy, era pequena, mas não assim a de sua filha mais velha, que era considerável, por ela ser riquíssima pela parte materna, e o filho de sua irmã o seu herdeiro natural. A criança, que se chamava Mário, sabia que tinha pai e nada mais. Ninguém lhe dizia uma só palavra a tal respeito. Não obstante, com o andar do tempo, os segredinhos, as meias palavras, o piscar de olhos das pessoas que constituíam as sociedades a que seu avô o levava, tinham-lhe aclarado o espírito e feito perceber por último alguma coisa, e como naturalmente e por uma espécie de infiltração e lenta penetração ele recebia as ideias e opiniões, que, para assim dizer, constituíam o seu meio respirável, viera por último a não lembrar-se de seu pai senão com vergonha e dolorosa impressão.
     Enquanto ele assim crescia, o coronel de três em três meses saía furtivamente de casa e vinha a Paris, como um preso fugido que evita as garras da justiça, onde, apenas chegava, ia postar-se na igreja de S. Sulpício, à hora em que a filha de Gillenormand levava seu sobrinho à missa, e daí contemplava seu filho, tremendo com receio de que a tia de Mário se voltasse, escondido por trás de um pilar, imóvel, com a respiração comprimida. Tinha medo daquela velha este homem, que assistira a tantos combates.
     Daqui foi que se originaram as suas relações com o padre Mabeuf, abade de Vernon.
     Este digno eclesiástico era irmão do sacristão de S. Sulpício, que muitas vezes tinha feito reparo naquele homem contemplando seu filho, e na cicatriz que ele tinha no rosto e nas lágrimas furtivas que lhe marejavam dos olhos. Impressionara-o a vista daquele homem valente que chorava como uma mulher, a ponto de nunca se lhe varrerem da memória as suas feições. Um dia, estando em Vernon, aonde fora visitar seu irmão, encontrou-se na ponte com o coronel Pontmercy e reconheceu o homem de S. Sulpício. Contou então a história ao abade e ambos foram visitar o coronel sob o pretexto que primeiro lhes lembrou, visita a que se seguiram outras. O coronel, que a princípio se mostrara sobremodo reservado, veio por último a desabafar, e tanto o abade como o sacristão de S. Sulpício chegaram a saber toda a história e o modo como Pontmercy sacrificava a sua ventura ao futuro de seu filho. Isto deu lugar a que o abade daí por diante principiasse a tratá-lo com o maior respeito e afeição, e que pela sua parte o coronel também se afeiçoasse ao abade. Quanto mais não há quem mais facilmente se penetre e amalgame do que um padre velho e um velho soldado, quando ambos são sinceros e dotados de bons sentimentos. No fundo, são um e o mesmo homem. Um dedicou-se pela pátria terrena, outro pela celeste; a diferença é só esta.
     Mário escrevia a seu pai duas vezes por ano, no primeiro de Janeiro e dia de S. Jorge. Eram cartas de cumprimentos ditadas por sua tia, mas que pareciam copiadas de algum formulário; era quanto tolerava Gillenormand; o pai respondia com outras afetuosíssimas, que o avô metia no bolso sem sequer as ler.

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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - II - Um dos espectros vermelhos daquele tempo
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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