segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Partilha e Multiplicação. O Socialismo e a Produção

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Partilha e Multiplicação. O Socialismo e a Produção

      A questão da justiça é tão antiga quanto a da partilha. Onde quer que homens tenham partido juntos para a caça, a ela seguiu-se o momento da partilha. Na malta, eram todos um só, apartando-se posteriormente, quando da partilha. Dentre os homens, jamais se desenvolveu um estômago coletivo, que possibilitasse a um grande número deles alimentar-se como uma única criatura. Na comunhão, desenvolveram um rito que se aproximou ao máximo da ideia de um tal estômago. Uma aproximação insu ciente, é certo, mas, ainda assim, uma aproximação rumo a uma situação ideal de que sentiam necessidade. O isolamento no ato da incorporação do alimento constitui uma das raízes dessa pavorosa excrescência que é o poder. Aquele que come sozinho e em segredo tem de matar sozinho. Quem mata na companhia de outros tem também de dividir com eles a presa.
     Com o reconhecimento dessa divisão tem início a justiça. Sua regulamentação é a primeira das leis. Essa lei permanece sendo até hoje a mais importante de todas e, como tal, aquilo que verdadeiramente importa a todos os movimentos preocupados com a coletividade da atividade e da própria existência humana.
     A justiça demanda que todos tenham o que comer. Mas espera também que cada um contribua com a sua parte para a obtenção desse alimento. A avassaladora maioria dos homens ocupa-se da produção de bens de todo tipo. Algo de errado ocorreu na sua repartição. Eis aí o conteúdo do socialismo, reduzido à mais simples das fórmulas.
     Contudo, o que quer que pensem acerca da natureza da repartição dos bens em nosso mundo moderno, adeptos e opositores do socialismo não divergem no tocante à premissa do problema. Tal premissa é a produção. De ambos os lados do conflito ideológico que cindiu a terra em duas metades, hoje dotadas de força equivalente, a produção é fomentada e estimulada de todas as maneiras. Produza-se para vender ou para repartir, o processo em si dessa produção permanece não apenas intocado por ambos os lados, como também é venerado por ambos, e não constitui exagero afirmar que, aos olhos da maioria, ele possui hoje algo de sagrado.
     É possível que as pessoas se perguntem de onde vem essa veneração. Talvez se possa identificar um ponto na história da humanidade no qual a sanção à produção teve seu início. Alguma reflexão revela-nos, porém, que não existe um tal ponto. A sanção à produção remete a tempos tão remotos que toda tentativa de fixá-la em termos históricos afigura-se insuficiente.
     A hybris da produção remonta à malta de multiplicação. É possível que as pessoas não percebam essa conexão, uma vez que já não são mais as maltas que se dedicam na prática à multiplicação. Massas gigantescas formaram-se, e seguem ainda crescendo diariamente em todos os centros da civilização. Quando se pensa, porém, na imprevisibilidade do fim desse crescimento; que uma quantidade cada vez maior de homens produz uma quantidade cada vez maior de bens; que, dentre esses bens, encontram-se inclusive seres vivos, animais e plantas; e que os métodos para a geração de bens animados e inanimados já mal se diferenciam — considerando-se, pois, todos esses fatores, ter-se-á de admitir que a malta de multiplicação foi o constructo mais rico em consequências e mais bem-sucedido que a humanidade jamais produziu. As cerimônias que visavam a multiplicação transformaram-se em máquinas e em processos técnicos. Toda fábrica constitui uma unidade a servir a um mesmo culto. A novidade reside na aceleração do processo. O que antes era geração e intensificação de uma expectativa — de chuva, do trigo, da aproximação de manadas de animais de caça e do crescimento de animais domésticos — hoje transformou-se em produção imediata. Apertam-se alguns botões, acionam-se algumas alavancas, e aquilo que se quer, na forma que se deseja, sai pronto em poucas horas, ou ainda mais rápido.
     É notável que a relação rigorosa e exclusiva entre proletariado e produção, que adquiriu tamanha reputação há aproximadamente cem anos, restabeleça de modo particularmente puro aquela antiga noção que estava na base da malta de multiplicação. São os proletários que se multiplicam a uma maior velocidade, e seu número aumenta de duas maneiras. Por um lado, eles têm mais filhos do que as demais pessoas, já em função dessa descendência adquirindo um caráter de massa. Mas, por outro lado, seu número se multiplica também de uma outra maneira: multiplica-se na medida em que cada vez mais pessoas afluem do campo para os centros de produção. Precisamente esse mesmo duplo sentido do crescimento, porém, caracterizava — lembremo-nos — a primitiva malta de multiplicação. As pessoas afluíam para suas festas e cerimônias e, assim — na qualidade de muitas —, dedicavam-se a procedimentos que deveriam propiciar-lhes uma farta descendência.
     Com o estabelecimento e a entrada em ação do conceito de um proletariado privado de seus direitos, deixou-se a cargo desse proletariado todo o otimismo do crescimento. Em nenhum momento ponderou-se que, vivendo ele tão mal, menor deveria ser o seu número. Confiou-se na produção. Graças ao crescimento desta, deveria haver mais proletários. A produção a seu cargo deveria servir a eles próprios. Proletariado e produção deveriam crescer um em função do outro. O que se tem aí, contudo, é exatamente a mesma conexão inseparável que se verificava na atividade das primitivas maltas de multiplicação. Quer se ser mais e, assim, tudo aquilo de que se vive deve também fazer-se mais. Não há como separar uma coisa da outra: ambas se apresentam tão intimamente relacionadas que, frequentemente, não fica claro o que deve fazer-se mais.
      Já se demonstrou aqui que, por meio de suas metamorfoses naqueles animais que sempre viveram em grandes grupos, o homem adquiriu um sentimento mais vigoroso da multiplicação. Poder-se-ia dizer que ele somente o aprendeu com aqueles animais. Diante de seus olhos, ele via cardumes de peixes, enxames de insetos e gigantescas manadas de ungulados; quando, então, em suas danças, representava tão bem esses animais a ponto de transformar-se neles, de sentir-se igual a eles; quando, ademais, lograva fixar como totens algumas dessas metamorfoses específicas, transmitindo-as a seus descendentes na qualidade de uma tradição sagrada, com isso transmitia-lhes também uma intenção de multiplicar-se que ultrapassava em muito aquela que é natural nos homens.
     Precisamente essa mesma relação possui hoje o homem moderno com a produção. As máquinas são capazes de produzir mais do que qualquer homem do passado jamais sonhou. Graças a elas, a multiplicação cresceu atingindo níveis gigantescos. Como, porém, e de um modo geral, se trata de objetos, e não tanto de criaturas, a devoção do homem ao número de tais objetos intensifica-se na medida em que se intensificam as suas necessidades. É cada vez maior o número de coisas para as quais ele tem uma utilidade, e, conforme ele as vai empregando, novas necessidades têm origem. Esse é o aspecto da produção — a multiplicação desenfreada enquanto tal, em todas as direções — que mais chama a atenção nos países “capitalistas”. Nos países que atribuem particular ênfase ao “proletariado” — onde se impede o grande acúmulo de capital nas mãos de indivíduos isolados —, os problemas referentes à partilha geral encontram-se teoricamente em pé de igualdade com aqueles relativos à multiplicação.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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