quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - No meu receio de que o prazer que tivera)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 


     No meu receio de que o prazer que tivera naquele passeio solitário enfraquecesse em mim a lembrança de minha avó, procurei reavivá-la pensando num certo sofrimento moral que ela tivesse tido; a meu apelo, tal sofrimento buscava construir-se em meu coração, onde alicerçava seus imensos pilares; mas meu coração, sem dúvida, era muito pequeno para ele, eu não tinha forças para carregar comigo uma dor tão grande, minha atenção se esquivava no momento em que se reformava toda, e seus arcos desabavam antes de se juntarem, como desabam as ondas antes de ter formado a sua abóbada.
     Entretanto, apenas pelos meus sonhos quando estava adormecido, eu poderia compreender que minha mágoa pela morte de minha avó ia diminuindo, pois neles parecia menos oprimida pela ideia que eu me fazia de seu nada. Via-a sempre enferma, mas em vias de se restabelecer; achava-a melhor. E, se ela aludisse ao que havia sofrido, eu lhe fechava os lábios com meus beijos e lhe garantia que agora estava curada para sempre. Teria desejado fazer que os céticos constatassem que a morte é na verdade uma doença da qual nos restabelecemos. Apenas, já não achava em minha avó a rica espontaneidade de antigamente. Suas palavras não passavam de uma resposta dócil, enfraquecida, quase um simples eco das minhas; ela não era mais que o reflexo de meu próprio pensamento. 
     Incapaz como ainda me encontrava experimentando de novo um desejo físico, Albertine recomeçava, no entanto, inspirar-me como que um desejo de felicidade. Certos sonhos de ternura compartilhada, sempre flutuantes em nós, aliam-se de bom grado por uma espécie de afinidade à lembrança (desde que esta já se tenha tornado um tanto vaga) de uma mulher com quem tenhamos desfrutado prazeres. Este sentimento me recordava aspectos do rosto de Albertine, mais doces, menos alegres, bem diversos dos que o desejo físico teria evocado; e, como era também menos do que este último, eu teria de boa vontade adiado sua realização para o inverno seguinte, sem procurar rever Albertine em Balbec antes de partida. Porém, mesmo em meio a um desgosto ainda vivo, o desejo renasce. De minha cama, onde me faziam permanecer por muito tempo o repouso, todos os dias, eu desejava que Albertine viesse recomeçar no jogos de outrora. Não se vê, no próprio quarto em que perderam os esposos em breve de novo enlaçados darem um irmão ao pequeno morto? Eu tentava distrair-me desse desejo indo à janela a fim de contemplar o mar desse dia. Como no primeiro ano, os mares, de um dia para o outro, raramente eram os mesmos. Mas, além disso, de modo algum, assemelhavam aos daquele primeiro ano, fosse porque agora era a primavera com seus temporais, fosse porque, mesmo que eu tivesse vindo na mesma data da primeira vez, tempos diversos, mais mutáveis, teriam desaconselhado aquele litoral a certos mares indolentes, vaporosos e ágeis que eu vira dormir na praia durante os dias mais quentes. Ergue imperceptivelmente o seio azulado com suave palpitação, fosse principalmente porque meus olhos, instruídos por Elstir para reter precisamente os elementos que outrora eu voluntariamente eliminava, contemplavam longamente o que no primeiro ano não sabiam ver. Essa oposição, que então impressionava tanto, entre os passeios agrestes que dava com a Sra. Villeparisis e aquela vizinhança fluida, inacessível e mitológica, do oceano, já não existia para mim. E, pelo contrário, em certos dias o próprio mar me parecia agora quase rural. 
     Nos dias bem raros de verdadeiro bom tempo, o calor traçara na água, como através dos campos, uma estrada poeirenta e branca, por detrás da qual se erguia, como um campanário da aldeia, a fina ponta de um barco de pesca. Um rebocador, de que só a chaminé, fumegava ao longe como uma usina afastada, ao passo que sozinho no horizonte, um quadrado branco e inflado, pintado sem dúvida por uma vela, mas que parecia compacto e um tanto calcário, lembrava um ângulo ensolarado de alguma construção isolada, hospital ou escola. Nuvens e o vento, nos dias em que a eles se juntava o sol, rematavam, não o erro de julgamento, pelo menos a ilusão do primeiro olhar, que ele desperta na imaginação. Pois a alternância de espaços de cores nitidamente recortadas como as que resultam, no campo, da continuidade de culturas diferentes, as desigualdades ásperas, amarelas e mel, lamacentas da superfície marinha, as colheitas, os declives que escondia da vista um barco, onde uma equipagem de hábeis marinheiros parecia ceifar, tudo isso nos dias tempestuosos fazia do oceano algo de tão variado, tão consistente, tão acidentado, tão populoso, tão civilizado como caminho carroçável pelo qual eu passeava outrora, como não tardaria a passear agora. E uma vez, não mais podendo resistir ao meu desejo, em vez de voltar a deitar-me, vesti-me e fui procurar Albertine em Incarville. Pediria que me acompanhasse até Douville, onde iria fazer em Féterne uma visita à Sra. de Cambremer e, na La Raspeliere, uma visita à Sra. Verdurin. Durante esse tempo, Albertine me aguardaria na praia e voltaríamos juntos à noite. Fui tomar o trenzinho local, de que aprendera outrora, com Albertine e suas amigas, todos os apelidos que lhe davam na região, onde era chamado o Tortuoso, por causa de suas voltas inumeráveis; ora o Calhambeque, porque não avançava; Transatlântico, por causa de uma terrível sirena que possuía, para que os passageiros embarcassem; Decauville e Funi, embora não fosse de forma alguma um funicular, mas porque subia a falésia, nem sequer, a rigor, um Decauville, mas por possuir uma bitola de 60; o B.A.G., porque ia de Balbec a Grattevast passando por Angerville, Tram; e o T.S.N., porque fazia parte da linha dos tramways do sul da Normandia. Instalei-me num vagão onde estava sozinho; fazia um sol esplêndido, a gente abafava; baixei o estore azul, que não deixou passar mais que uma réstia de sol. Porém logo vi a minha avó, exatamente como se havia sentado no trem à nossa partida de Paris para Balbec, quando, na mágoa de me ver tomar cerveja, preferira não olhar, fechar os olhos e dar a impressão de estar dormindo. Eu, que antigamente não podia suportar a mágoa que ela sentia quando meu avô tomava conhaque, infligira-lhe esta, não apenas a de me ver tomar, a convite de outro, uma bebida que ela considerava funesta para mim, mas forçara-a a deixar-me livre para beber à vontade; mais ainda, por meus acessos de cólera, minhas crises de sufocação, eu a forçara a ajudar-me, a aconselhar-me que o fizesse, numa resignação suprema da qual guardava na memória a imagem muda, desesperada, de olhos fechados para não ver. Uma tal lembrança, como um toque de varinha mágica, me recuperara a alma que eu estava em vias de perder fazia algum tempo; que poderia eu fazer de Rosemonde (Albertine?), quando meus lábios inteiros eram percorridos unicamente pelo desejo desesperado de beijar uma morta? Que poderia eu dizer aos Cambremer e aos Verdurin, quando meu coração batia com tanta força porque, nele, reformava a cada instante a dor que minha avó sofrera? Não pude permanecer naquele vagão. Logo que o trem parou em Maineville-la-Teinturiere, desci, renunciando aos meus projetos.  
     Maineville adquirira desde algum tempo uma considerável importância e uma reputação especial, porque um gerente de numerosos cassinos, comerciante de bem-estar, mandara construir, não longe dali, com um luxo de mau; capaz de rivalizar com o de um palácio, um estabelecimento ao qual iremos, e que era, para falar francamente, a primeira casa pública para trato elegante que se teve ideia de construir nas costas da França. Na verdade cada porto tem a sua, porém boa apenas para marinheiro e amadores do pitoresco, a quem diverte ver, bem perto da igreja a patroa quase tão velha, venerável e musgosa, postar-se diante de sua mal afamada à espera do regresso dos barcos de pesca.
     Afastando-me da deslumbrante casa de "prazer", insolente, erguida ali apesar dos protestos das famílias debalde endereçados ao feito, atingi a falésia e por ali segui os tortuosos caminhos em direção à Balbec. Ouvi sem responder os apelos dos espinheiros-alvos. Vizinhos ricos das flores das macieiras, eles as achavam bem pesadas, embora reconhecendo a pele fresca das filhas, de pétalas róseas, desses fabricantes de cidra. Sabiam que, menos ricamente dotadas, eram no tanto, mais procuradas e que lhes bastava, para agradarem, uma branca amarrotada.
     Quando cheguei, o porteiro do hotel entregou-me um convite para um enterro assinado: pelo marquês e a marquesa de Gonneville, o visconde e a viscondessa d'Amfreville, o conde e a condessa de Berneville, o marquês e a marquesa de Graincourt, o conde d'Amenoncourt, a condessa de Mainville, o conde e a condessa de Franquetot, a condessa de Chaverny, nascida d'Aigleville, e que afinal compreendi porque me fora enviado, ao reconhecer os nomes da marquesa de Cambremer, e quando vi que a morta era uma prima dos Cambremers chamada Éléonore-Euphrasie-Humbertine de Cambremer, condessa de Criquetot. Em toda a extensão dessa família provinciana, cuja enumeração enchia linhas finas e cerradas, não havia um só burguês, e aliás nem um título conhecido, mas todo o grupo e subgrupo de nobres da região que faziam ressoar seus nomes em todos os lugares interessantes das redondezas com alegres finais em villie, em court, vezes mais surdos (em tot). Vestidos com a telha de seu castelo; ou com reboco de sua igreja, a cabeça vacilante mal ultrapassando a abóbada da construção central, e unicamente para ornarem-se com a claraboia; ou as armações do telhado em forma de cone, davam a impressão de terem ressoado o toque de reunião de todas as belas aldeias escalonadas ou dispersas num raio de cinquenta léguas e de as terem disposto em armação cerrada, sem uma só lacuna, sem um intruso, no tabuleiro retangular e compacto do convite aristocrático bordado de preto.
     Minha mãe tornara a subir para seu quarto, meditando na carta da Sra. de Sévigné:

"Não visito nenhum dos que desejam me divertir; palavras encobertas, o que eles querem é impedir-me de pensar em você e isso me ofende", porque o presidente do conselho lhe dissera que deveria distrair-se. Ele me sussurrou:

- É a princesa de Parma. -  

     Meu temor dissipou-se ao ver que a mulher que o magistrado me indicava não tinha qualquer relação com Sua Alteza Real. Mas, como esta mandara reservar um quarto para passar a noite ao voltar da casa da princesa de Luxemburgo, a notícia teve, para muitos, o efeito de fazê-los tomar pela princesa de Parma toda nova dama recém-chegada e, para mim, o de fazer-me subir e ficar fechado em meu sótão. Não gostaria de estar ali sozinho. Eram apenas quatro horas. Pedi a Françoise que fosse buscar Albertine, para que viesse passar comigo o final da tarde. 
     Creio que mentiria se dissesse que já principiara a dolorosa e perpétua desconfiança que Albertine devia me inspirar, e com maior razão o caráter especial, sobretudo gomorriano, que deveria revestir essa desconfiança. Decerto, desde aquele dia, mas que não era o primeiro minha espera foi um tanto ansiosa. Françoise, logo que partiu, demorou tanto tempo que comecei a desesperar. Não havia acendido a lâmpada. Quase não havia claridade. O vento fazia estalar a bandeira do cassino. E, mais débil ainda que o silêncio da praia, por onde o mar subia, e como uma voz que traduzisse e aumentasse a vagarosa enervante daquela hora inquieta e falsa, um realejo parado diante do hotel tocava valsas vienenses. Por fim Françoise chegou, mas sozinha. 

- Fui o mais rápido que pude, mas ela não queria vir porque não se achava bem penteada. Se não ficou uma hora se empoando, cinco minutos é que não foi. Vai ser uma verdadeira perfumaria aqui. Ela vem, ficou para trás para se arrumar diante do espelho. Pensava já encontrá-la aqui. -  

     Ainda se passou longo tempo antes que Albertine chegasse. Porém a alegria e a amabilidade que demonstrou dessa vez dissiparam a minha tristeza. Anunciou-me (ao contrário do que havia dito outro dia) que ficaria por toda a temporada e perguntou se não poderíamos, como no primeiro ano, ver-nos todos os dias. Disse-lhe que naquele momento estava triste demais e que seria melhor mandar buscá-la de vez em quando, no último instante, como em Paris. 

- Se alguma vez sentir-se aflito ou o coração o aconselhar, não hesite -disse ela -, mande me buscar, virei depressa; e, se não recear que isso faça escândalo no hotel, permanecerei o tempo que quiser. -

     Ao trazê-la, Françoise ostentara um ar feliz, como cada vez que se dava a um trabalho por mim e conseguia me agradar. Mas Albertine em si não entrava em nada nessa alegria, e já no dia seguinte Françoise devia me dizer estas palavras profundas: 

- O patrão não deveria ver essa moça; bem sei o tipo de caráter que ela tem, vai lhe dar desgostos.

     Reconduzindo Albertine, vi pela sala de jantar iluminada a princesa de Parma. Limitei-me a olhá-la, cuidando em não ser visto. Mas confesso: achei uma certa grandeza na régia polidez que me fizera sorrir na casa Guermantes. É um princípio que os soberanos estejam em sua casa à parte, e o protocolo o traduz em usos mortos e sem valor, como àquela que o dono da casa fique de chapéu na mão em sua própria realeza, para mostrar que não está mais em sua casa, mas na do príncipe; essa ideia, a princesa de Parma talvez não a formulasse, porém estava tão imbuída que todos os seus atos, espontaneamente inventados circunstâncias a traduziam. Quando se ergueu da mesa, deu uma cativa gorjeta a Aimé como se este estivesse ali apenas para servi-la recompensasse, ao deixar um castelo, um mordomo afeto a seu ser. Aliás, não se contentou com a gorjeta; mas, com um sorriso gracioso dirigiu-lhe algumas palavras amáveis e lisonjeiras de que sua mãe a abastecera. Um pouco mais, e ela lhe teria dito que, quanto mais bem dirigido o hotel, tanto mais florescente a Normandia, e que de todos os países do mundo ela preferia a França. Outra moeda deslizou das mãos da princesa para o copeiro que ela mandara chamar e a quem fez questão de exprimir seu contentamento, como um general que acaba de fazer uma revista. Naquele momento, o ascensorista viera dar uma resposta; ganhou uma frase, um sorriso e uma gorjeta, tudo isso misturado às palavras, estímulo, humildes, destinadas a lhes provar que ela não era mais que um deles. Como Aimé, o copeiro, o ascensorista e os demais julgaram, pouco polido não sorrir de orelha a orelha a uma pessoa que lhes sorria, ela foi em breve cercada por um grupo de criados, com quem conversou demoradamente; como tais maneiras eram desacostumadas nos palácios, pessoas que passavam pela praia, ignorando o seu nome, acreditaram estar vendo uma habituée de Balbec, e que, devido a uma extração medíocre; a um interesse profissional (talvez fosse a esposa de um corretor) era menos diferente da criadagem que seus clientes verdadeiramente elegantes. Quanto a mim, pensei no palácio de Parma, nos conselhos religiosos, meios políticos dados a essa princesa, que lidava com o povo; como se devesse conciliar-lhe as graças para reinar um dia; mais ainda, como se já reinasse.
     Voltei para o meu quarto, mas ali não me achava sozinho. Ouvia alguém tocando com suavidade trechos de Schumann. Com certeza ocorre as pessoas, mesmo aquelas a quem mais amamos, saturam-se com a tristeza ou a irritação que provém de nós. Entretanto, existe algo que tem capacidade de exasperar que pessoa alguma consegue atingir: Albertine me fizera anotar as datas em que deveria ausentar-se à casa de amigas durante alguns dias, e fizera-me também escrever os endereços para o caso que eu tivesse necessidade dela numa dessas noites, pois nenhuma residia muito longe. Isto fez com que, para achá-la, de moça em moça, bem naturalmente se foi formando a meu redor um laço de flores. Ouso confessar que muitas de suas amigas, eu não a amava ainda, me proporcionaram, numa ou noutra praia, alguns instantes de prazer. Essas jovens companheiras benevolentes não me pareciam muito numerosas. Mas ultimamente voltei a pensar nisso, seus nomes me regressaram.
     Contei que, somente naquela temporada, doze me concederam seus frívolos favores. Um nome a mais me acudiu logo, totalizando treze. Tive então uma espécie de medo infantil de permanecer nesse número. Ai de mim, pensava que havia esquecido a primeira, Albertine, que já não estava e foi a décima quarta.
     Para retomar o fio da narrativa, eu anotara os nomes e endereços das moças onde a encontraria nos tais dias em que ela não estivesse em Incarville, mas imaginara que aproveitaria melhor esses dias indo à casa da Sra. Verdurin. Além disso, nossos desejos por mulheres diferentes não têm sempre a mesma intensidade. Em determinada noite não podemos passar sem uma que, depois disso, não nos perturbará durante um ou dois meses. Ademais, além das causas de alternância de que não é aqui o lugar de estudar, depois das grandes fadigas carnais, a mulher cuja imagem frequenta a nossa momentânea senilidade; é uma mulher a quem quase não faríamos mais que beijar na fronte. Quanto a Albertine, eu a via raramente, e apenas em tardes muito espaçadas, quando não podia passar sem ela. Se um tal desejo me possuísse quando ela estivesse longe demais de Balbec para que Françoise pudesse ir a seu encontro, eu enviava o ascensorista a Épreville, a La Sogne, a Saint-Frichoux, pedindo-lhe que terminasse um pouco mais cedo o seu trabalho. Ele entrava em meu quarto, mas deixando a porta aberta, pois, embora cumprisse conscienciosamente com seu "batente", que era bem pesado, e consistia em numerosas limpezas desde as cinco da manhã, não podia resolver-se ao esforço de fechar uma porta e, se lhe observassem que estava aberta, voltava e, fazendo um esforço máximo, encostava-a de leve. Com o orgulho democrático que o caracterizava e ao qual não atingem em suas carreiras liberais os membros de profissões um tanto numerosas, advogados, médicos, que somente a um outro advogado, homem de letras ou médico chamam: 

- Meu confrade -, ele, usando com razão um termo reservado aos corpos restritos, como as academias por exemplo, me dizia, falando de um groom que era ascensorista uma vez a cada dois dias: 
- Vou tratar de ser substituído por meu colega. -

     Esse orgulho não o impedia, com o objetivo de melhorar o que denominava seus vencimentos, de aceitar remunerações pelos recados, o que fizera Françoise criar-lhe horror: 

- Sim, da primeira vez que a gente o vê é capaz de dar a hóstia sem confissão; mas há dias em que ele é cortês como a de uma prisão. Todos eles são caça-níqueis. -

     Categoria em que ela as vezes havia classificado Eulalie e onde infelizmente, por todas as doenças que aquilo um dia deveria trazer, ela já colocava Albertine, pois muitas vezes vinha pedir a mamãe, para a minha amiga pouco afortunada, miúdos, ninharias, o que Françoise achava indesculpável, porque a Sra. Bontemps só tinha uma criada para fazer tudo. Bem depressa, o ascensorista, tirando o que eu chamaria a sua libré e que ele denominava sua casaca, aparecia de bengala e chapéu de palha, cuidando do seu andar porte erguido, pois a mãe lhe recomendara que nunca assumisse o, -"operário" ou groom. Da mesma forma que, graças aos livros, a ciência„ acessível a um operário que não é mais operário depois que findou seu trabalho, assim, graças ao chapéu de palha e ao par de luvas, a elegância tornou-se acessível ao ascensorista, o qual, deixando à noite de fazer aos hóspedes, julgava-se, como um jovem cirurgião que despiu o jaleco; o sargento Saint-Loup sem o uniforme, um perfeito mundano. Aliás, não destituído de ambição, nem tampouco de talento para manipular a sua gaiola e nos deixar entre dois andares. Mas sua linguagem era defeituosa. Acreditava na sua ambição porque, referindo-se ao porteiro, de quem dependia: 

- Meu porteiro - falava, com o mesmo tom que um homem, que possuindo em Paris o que o groom teria chamado "um hotel particular", falava do seu porteiro. Quanto à linguagem do ascensorista, é curioso que algo que ouvia um hóspede dizer cinquenta vezes por dia "elevador", nunca pudesse ser ele próprio senão "ascensor". Certas coisas nesse ascensorista eram muito irritantes: qualquer coisa que eu lhe dissesse, ele me interrompia e numa locução, "é claro!", ou "logo vi!", que parecia significar ou que minha observação era de uma tal evidência que todo mundo a teria feito, ou então atribuir a si o mérito, como se ele é que me chamasse a atenção ao fato. "É claro!" ou "logo vi!", proferidos com a maior energia, retornava de dois em dois minutos à sua boca, a propósito de coisas que nunca teriam ocorrido, o que irritava tanto que logo me punha a dizer o contrário para lhe mostrar que não compreendia nada. Mas à minha segunda aflição, embora não fosse conciliável com a primeira, ele também não deixava de retrucar: "É claro!", ou "logo vi!", como se estas palavras fossem inevitáveis. Também dificilmente lhe perdoava que empregasse certos termos seu ofício, e que, por isso mesmo, seriam perfeitamente adequados no sentido próprio, apenas no sentido figurado, o que lhes dava uma intenção espirituosa bem tola; por exemplo, o verbo pedalar. Ele nunca o usava quando fazia uma corrida de bicicleta. Mas se, a pé, correra para chegar na hora para indicar que havia caminhado depressa dizia:
- Como pedalei! - 

     O ascensorista era antes baixinho, malfeito de corpo e muito feio. Isso não impedia que, cada vez que lhe falavam de um rapaz alto, esbelto e fino, ele dissesse: 

- Ah, sim, sei, um que é bem do meu tamanho. -  

     E um dia em que esperava uma resposta sua, como alguém subisse a escada, eu, ao ruído dos passos, abrira com impaciência a porta do quarto e vira um groom, belo como Endimião, os traços incrivelmente perfeitos, que vinha a chamado de uma dama que eu não conhecia. Quando o ascensorista regressou, ao lhe dizer com que impaciência eu havia esperado a sua resposta, contei que julgara que era ele quem subia, mas que se tratava de um groom do Hotel da Normandia. E ele disse: 

- Ah, sim, sei quem é, só existe um, um rapaz do meu tamanho. De cara, também se parece muito comigo, de tal modo que poderiam nos tomar um pelo outro, dir-se-ia que é meu irmão. -

     Enfim, queria parecer ter compreendido tudo desde o primeiro instante, o que fazia com que, logo que lhe recomendassem alguma coisa, dissesse: 

- Sim, sim, sim, sim, sim, compreendo muito bem com uma clareza e um tom inteligente que me iludiram por algum tempo; mas as pessoas, à medida que a gente as conhece, são como um metal mergulhado numa mistura alteradora, e aos poucos vemo-las perderem suas qualidades (como às vezes seus defeitos). Antes de lhe fazer minhas recomendações, vi que deixara aberta a porta; chamei-lhe a atenção, receava que nos ouvissem; condescendeu ao meu desejo e voltou, após ter diminuído a abertura. 
- É para agradá-lo. Mas não há ninguém neste andar senão nós dois.

     E logo ouvi passar uma pessoa, depois duas, e depois três. Isso me irritava por causa da possível indiscrição, mas sobretudo porque via que aquilo não o admirava de maneira nenhuma e se tratava de um vaivém normal. 

- Sim, é a camareira do lado que vai buscar suas coisas. Oh, não tem importância, é o copeiro que traz as suas chaves. Não, não, não é nada, o senhor pode falar, é meu colega que vai pegar no serviço. -

     E, como todos os motivos que as pessoas tinham para passar não diminuíssem o meu aborrecimento pelo fato de que podiam me ouvir, diante de minhas ordens formais ele foi, não fechar a porta, pois isto estava acima das forças daquele ciclista que desejava uma moto, mas empurrá-la um bocadinho mais. 

- Assim ficaremos tranquilos. -

continua na página 88...
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