segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Émile Zola - Germinal: Terceira Parte - (IV.a)

Germinal


Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Terceira Parte

IV
 

— Escuta — disse a mulher de Maheu ao seu marido —, já que vais a Montsou receber o pagamento, traze uma libra de açúcar e um quilo de café.

     Ele costurava um pé de sapato para poupar o dinheiro do conserto. 

— Está bem — murmurou, sem abandonar o que fazia. 
— Talvez ainda pudesses passar pelo açougue... Não seria bom um pedaço de vitela? Há tanto tempo que não vemos carne...

     Desta vez ele ergueu a cabeça. 

— Tu estás pensando que vou receber milhares e centenas! Esta quinzena não deu quase nada, por causa da maldita ideia deles de suspenderem constantemente o trabalho.

      Ambos ficaram calados. Era depois do almoço de um sábado dos fins de outubro. A companhia, a pretexto de ter de fazer o pagamento naquele dia, suspendera a extração em todas as galerias. Em pânico diante da crise industrial cada dia mais grave, não querendo aumentar seu estoque já enorme, ela aproveitava os menores pretextos para forçar seus dez mil operários a ficarem em casa. 

— Tu sabes que Etienne te está esperando no Rasseneur — continuou a mulher. — Leva-o contigo, ele é mais esperto que tu e descobrirá as trapaças que farão na contagem das horas.

     Maheu disse que sim com a cabeça. 

— E fala com esses senhores sobre o caso de teu pai. O médico é pau mandado da direção... Não é verdade, velho, que o doutor está enganado, que o senhor ainda pode trabalhar?

     Havia dez dias que o velho Boa-Morte, os pés dormentes, como ele dizia, estava pregado a uma cadeira. A nora teve de repetir a pergunta, e ele então resmungou: 

— Claro que posso trabalhar. Estou doente das pernas, mas não estou morto. Tudo isso são histórias que eles inventam para não me pagarem a pensão de cento e oitenta francos.

     A mulher, que estava pensando nos quarenta soldos que o velho talvez nunca mais tornasse a trazer, soltou um grito de angústia. 

— Meu Deus do céu! Acabaremos todos mortos, se a coisa continua desse jeito. 
— Os mortos não têm fome — sentenciou Maheu.

     Terminou o conserto dos sapatos com alguns pregos e por fim saiu. O conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante só receberia por volta das quatro horas. Por isso os homens não tinham pressa, demoravam-se, iam um a um, perseguidos pelas mulheres que lhes suplicavam para que voltassem logo. Muitas delas encomendavam coisas para ver se assim os impediam de parar pelas tabernas.
     Etienne fora ao Rasseneur em busca de novidades. Corriam notícias alarmantes, dizia-se que a companhia andava cada vez mais descontente com o estaqueamento. Os operários viviam sendo multados, um conflito parecia fatal. Verdade é que aquela era apenas uma das faces da contenda, a visível; por baixo dela havia toda uma série de complicações, de causas graves e secretas.
     No momento em que Etienne entrou, um companheiro, que bebia cerveja e estava voltando de Montsou, falava sobre um cartaz que vira pregado na caixa, só que não sabia muito bem o que estava escrito ali. Em seguida entrou outro, e mais outro. Cada um deles contava uma história diferente, mas parecia certo que a companhia finalmente tomara uma resolução. 

— O que dizes disto? — perguntou Etienne, sentando-se ao lado de Suvarin, que não tinha mais que um pacote de tabaco sobre a mesa que ocupava.

     O mecânico não mostrou pressa em responder, continuou enrolando o seu cigarro. 

— Digo que era fácil de prever. Eles vão puxar a corda até arrebentá-la.

     Só ele tinha a inteligência bastante desenvolvida para analisar a situação. Explicava-se com seu ar tranquilo. A companhia, atingida pela crise, via-se forçada a reduzir seus gastos para não sucumbir. E naturalmente seriam os operários os primeiros a pagar pela situação: ela ia cercear os salários, inventando um pretexto qualquer. Havia dois meses que a hulha se amontoava no pátio das minas, quase todas as fábricas estavam fechando as portas. Como ela não ousava fazer o mesmo, temendo a inação, ruinosa para o material, planejava um meio-termo, talvez uma greve, da qual os mineiros sairiam domados, e corri menor salário. Por fim, a nova caixa de previdência inquietava-a: tornava-se uma ameaça para o futuro Com uma greve, ficaria livre dela, esvaziando-a, o que seria fácil já que a caixa ainda não tinha grandes reservas.
     Rasseneur sentara-se ao lado de Etienne e ambos escutavam, com um ar consternado, o que o outro dizia. Podiam falar em voz alta; lá só estava a mulher do taberneiro, sentada atrás do balcão. 

— Que ideia! — murmurou Rasseneur. — Para que tudo isso? A companhia não tem nenhum interesse numa greve e os operários também não. O melhor é que cheguem a um acordo.

      Era muito prudente, mostrava-se sempre partidário das reivindicações razoáveis. Com a rápida popularidade do seu antigo inquilino, ele ficara reticente, desdenhava desse sistema de progresso, dizendo que não obtinha nada quem queria ter tudo de uma só vez. Na sua bonomia de obeso, de homem alimentado a cerveja, germinava um ciúme secreto, agravado pelo esvaziamento de sua casa, onde os operários da Voreux entravam agora em menor número para beber e para ouvi-lo. Assim é que, às vezes, chegava a defender a companhia, esquecendo seu rancor de antigo mineiro despedido. 

— Então tu és contra a greve? — gritou a Sra. Rasseneur sem sair do balcão.

     E, como ele respondesse energicamente que sim, ela mandou-o calar. 

— Desalmado! Fica quieto e deixa os outros falarem. Etienne pensava, com os olhos postos na cerveja que ela lhe servira. Por fim levantou a cabeça. 
— Tudo o que o camarada disse é bem possível. Se eles nos forçarem, seremos obrigados a fazer greve. A esse respeito Pluchart me escreveu com muito acerto. Ele também é contra a greve, porque nessas ocasiões o operário sofre tanto quanto o patrão e sem conseguir qualquer coisa de definitivo. No entanto, ele vê nela uma ocasião excelente, capaz de levar os nossos homens a entrarem na sua grande organização. Aqui está a carta dele...

     Realmente, Pluchart, desolado com as desconfianças que a Internacional encontrava entre os mineiros de Montsou, esperava vê-los aderir em massa se um conflito os obrigasse a lutar contra a companhia. Apesar dos seus esforços, Etienne não conseguira colocar uma única carteira de membro em Montsou, mas também porque pusera todo o peso de sua influência na caixa de socorros, muito mais bem acolhida. A verdade, porém, é que a caixa ainda estava muito pobre, e deveria esvaziar-se rapidamente, como dizia Suvarin. Fatalmente, então, os grevistas voltar-se-iam para a Associação dos Trabalhadores, a fim de que seus irmãos de todos os países os auxiliassem. 

— Quanto é que vocês têm em caixa? — perguntou Rasseneur. 
— Não mais do que três mil francos — respondeu Etienne. — E como já sabem, a direção me chamou anteontem. São muito polidos, aqueles senhores... Repetiram que não impediam os operários de criar um fundo de reserva, mas deixaram subentendido que queriam controlá-lo... De qualquer maneira, vamos ter de travar uma batalha desse lado.

     O taberneiro pusera-se a andar de um lado para outro, assobiando desdenhosamente. 

— Três mil francos! E o que é que pretendem fazer com esse dinheiro? Não chega para seis dias de pão... E contar com os estrangeiros, essa gente que mora na Inglaterra, é um sonho, seria preferível ir logo preparando a cova. Não, francamente, esse plano de greve é uma grande besteira.

     Então, pela primeira vez, aqueles dois homens, que de ordinário acabavam por entender-se no seu ódio comum ao capital, trocaram palavras ríspidas. 

— Vejamos o que tu dizes disso — repetiu Etienne virando-se para Suvarin.

     Este respondeu com a sua habitual palavra depreciativa: 

— Greves? Ora, besteiras!

      Em seguida, em meio ao silêncio ressentido que se armara, acrescentou brandamente: 

— Em suma, não digo que não, se isso os diverte. Vai arruinar alguns, matar outros, é sempre uma limpezinha... Só que nesse ritmo gastaremos mil anos para renovar o mundo. Por que não começam fazendo explodir esse calabouço onde todos vocês deixam a pele?

     Com a sua mão fina apontou para a Voreux, cujas construções podiam-se ver pela porta aberta. Nesse momento um drama imprevisto interrompeu-o: Polônia, a grande coelha caseira, que se arriscara a sair, voltava de um salto, fugindo das pedras de um bando de meninos aprendizes. E no seu pânico, de orelhas murchas e rabo levantado, veio refugiar-se contra as pernas dele, arranhando-o, implorando para ser posta no colo. Tendo deitado o animal nos joelhos, abrigando-o com as duas mãos, o russo caiu naquela espécie de sonolência sonhadora em que mergulhava ao acariciar o pêlo macio e tépido da coelha.
     Maheu entrou quando as coisas estavam nesse pé. Não quis beber nada, apesar da insistência polida da Sra. Rasseneur, que vendia sua cerveja como se a estivesse oferecendo. Etienne levantou-se e ambos partiram para Montsou.

continua na página 149...
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Terceira Parte - (IV.a)
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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