Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
SEGUNDA PARTE
15
continuando...
Mas não estava. O escritório ficava no final de um longo corredor e, olhando para o fundo, devíamos ver Atticus Finch,
Advogado em pequenas letras discretas na porta, iluminadas pela luz do interior. Mas a luz estava apagada.
Jem conferiu a porta do banco para garantir. Girou a maçaneta. Estava trancada.
— Vamos subir a rua. Talvez ele esteja visitando o sr. Underwood.
O sr. Underwood não só chefiava o Maycomb Tribune como morava na redação. Quer dizer, no andar de cima. Ele cobria
as notícias do tribunal e da cadeia apenas olhando pela janela de casa. O prédio ficava no canto noroeste da praça e para
chegar lá tínhamos de passar pela cadeia.
A cadeia de Maycomb era o prédio mais imponente e mais horroroso do condado. Atticus dizia que poderia ter sido
projetado pelo primo Joshua St Clair, pois com certeza havia saído da fantasia de alguém. Totalmente deslocada em uma
cidade de lojas de fachada quadrada e casas de telhados íngremes, a cadeia era uma piada gótica em miniatura: com uma cela
de largura e duas de altura, arrematada com pequenas muralhas e delicados contrafortes. A fantasia aumentava com a fachada
de tijolos vermelhos e as grossas barras de ferro nas janelas eclesiásticas. Não ficava numa colina isolada, mas entre a loja de
ferragens Tyndal’s e a redação do Maycomb Tribune. A cadeia era o principal assunto da cidade: seus detratores diziam que
parecia uma latrina vitoriana; seus defensores diziam que ela dava à cidade uma aparência respeitável e nenhum forasteiro iria
suspeitar que estava lotada de pretos.
Enquanto caminhávamos pela calçada vimos uma luz ao longe.
— Que estranho, a cadeia não é iluminada por fora — disse Jem.
— Parece que a luz é em cima da porta — disse Dill.
Um comprido fio elétrico passava entre as barras de uma janela no segundo andar e descia a lateral do prédio. À luz da
lâmpada, Atticus estava sentado, recostado na porta da frente. Estava sentado em uma das cadeiras do escritório, lendo, sem
se incomodar com os insetos noturnos que dançavam ao redor de sua cabeça.
Eu ia correr ao encontro dele, mas Jem me segurou.
— Não vá até lá, ele pode não gostar. Ele está bem, vamos para casa. Eu só queria ver onde ele estava.
Estávamos cortando caminho pela praça, quando quatro carros empoeirados se aproximaram pela estrada de Meridian,
avançando devagar e em fila. Contornaram a praça, passaram pelo prédio do banco e pararam em frente à cadeia.
Ninguém saltou do carro. Atticus levantou os olhos do jornal. Fechou-o, dobrou-o pausadamente, colocou-o no colo e
empurrou o chapéu para trás. Parecia estar à espera deles.
— Vamos — sussurrou Jem.
Cruzamos a praça furtivos, atravessamos a rua e ficamos no portal da loja Jitney Jungle. Jem esticou o pescoço para
espiar.
— Podemos nos aproximar — concluiu.
Corremos até a loja de ferragens Tyndal, onde ficamos bem perto da cena e, ao mesmo tempo, num lugar discreto.
Um por um e em duplas, os homens saíram dos carros. As sombras se transformavam em formas concretas à medida que a
luz revelava figuras indo em direção à porta da cadeia. Atticus não se mexeu. Os homens o ocultaram do nosso campo de
visão.
— Ele está aí dentro, sr. Finch? — um deles perguntou.
— Está, e está dormindo. Não o acordem — respondeu Atticus.
Os homens obedeceram e vi o que mais tarde me dei conta de que era um aspecto tristemente cômico de uma situação nada
engraçada: os homens começaram a falar em voz baixa.
— O senhor sabe o que queremos. Saia da porta, sr. Finch — disse um outro homem.
— Dê meia-volta e vá para casa, Walter — disse Atticus, cordial. — Heck Tate está por perto.
— Está porcaria nenhuma — disse outro homem. — A patrulha de Heck está tão enfiada na mata que só sai amanhã de
manhã.
— É mesmo? Como sabe?
— Nós inventamos um motivo para eles irem até lá — foi a lacônica resposta. — Não pensou nisso, sr. Finch?
— Pensei, mas não acreditei. Bom, isso muda tudo, não?
A voz de meu pai continuava a mesma.
— Muda — respondeu outra voz grossa que vinha do escuro.
— Vocês acham mesmo?
Era a segunda vez em dois dias que eu ouvia Atticus fazer aquela pergunta, o que mostrava que alguém estava em maus
lençóis. Aquilo era bom demais, eu tinha de assistir de perto. Eu me livrei de Jem e corri o mais rápido que pude na direção
de Atticus.
Jem berrou e tentou me segurar, mas saí antes que ele e Dill pudessem me alcançar. Abri caminho no meio dos corpos
escuros e malcheirosos e fiquei sob a luz do poste.
— Oi, Atticus.
Pensei que fosse dar a ele uma bela surpresa, mas a expressão dele acabou com a minha alegria. Um lampejo inconfundível
de medo estava deixando seus olhos, mas voltou quando Dill e Jem apareceram atrás de mim.
Pairava no ar um cheiro de uísque barato e chiqueiro e, ao olhar em volta, vi que os homens eram estranhos. Não eram as
pessoas que eu tinha visto na noite anterior. Uma onda de vergonha me invadiu: eu tinha pulado, triunfante, no meio de gente
que eu nunca tinha visto.
Atticus levantou-se da cadeira e andou devagar, como um velho. Com cuidado, largou o jornal, dobrando-o
demoradamente. Seus dedos tremiam um pouco.
— Jem, vá para casa. Leve Scout e Dill — ele disse.
Estávamos acostumados a obedecer Atticus na hora, mesmo que não ficássemos muito satisfeitos, mas Jem não deu sinal de
que ia se mover.
— Eu já disse, vá para casa.
Jem fez que não com a cabeça. Quando Atticus pôs a mão na cintura e Jem também, e os dois ficaram se encarando, vi que
não eram nada parecidos: os olhos e os cabelos castanhos claros, o rosto oval e as orelhas bem feitas eram da nossa mãe, e
contrastavam com os cabelos grisalhos de Atticus e seu rosto anguloso. Mesmo assim, de certa forma eram parecidos. O
desafio mútuo os deixava parecidos.
— Filho, eu mandei ir para casa.
Jem balançou a cabeça de novo.
— Eu levo ele — disse um grandalhão, agarrando Jem pelo colarinho e quase o levantando do chão.
— Não toque nele! — dei um chute no homem. Como estava descalça, me surpreendi quando vi o homem recuar num gesto
de dor genuína. Pretendia chutar a canela dele, mas mirei alto demais.
— Chega, Scout — Atticus pôs a mão no meu ombro. — Não se deve chutar ninguém. Não… — ele disse enquanto eu me
justificava:
— Ninguém vai tratar Jem assim — eu disse.
— Tudo bem, sr. Finch, tire-os daqui. Tem quinze segundos para tirá-los daqui — resmungou alguém.
De pé no meio daquele estranho grupo, Atticus tentava fazer com que Jem o obedecesse.
— Não vou — foi a resposta firme de Jem às ameaças, pedidos e, finalmente, a súplica de Atticus:
— Por favor, Jem, leve Scout e Dill para casa.
Eu estava ficando meio cansada daquela história, mas percebi que Jem tinha suas razões para se comportar daquela forma,
apesar do que certamente o aguardava quando Atticus fosse para casa. Olhei ao redor. Era uma noite de verão, mas quase
todos os homens estavam de macacão e camisas de brim abotoadas até o pescoço. Achei que eles deviam ser friorentos, já que
as mangas não estavam dobradas, mas abotoadas no pulso. Alguns tinham o chapéu enfiado até as orelhas. Estavam sujos e
tinham os olhos cansados, como se não costumassem ficar acordados até tarde. Procurei de novo um rosto conhecido e achei
um no centro do semicírculo.
— Olá, sr. Cunningham.
Tive a impressão de que ele não ouviu.
— Olá, sr. Cunningham, como está o seu morgadio?
Eu estava inteirada de todos os assuntos legais do sr. Cunningham; uma vez Atticus os explicou em detalhes. O
homenzarrão piscou e segurou nas alças do macacão. Parecia desconfortável; pigarreou e desviou o olhar. Minha amistosa
aproximação tinha sido inútil.
O sr. Cunningham não estava usando chapéu e sua testa branca contrastava com o rosto bronzeado de sol, o que me fez
concluir que ele costumava usar chapéu no dia a dia. Moveu os pés, metidos em pesados sapatos de operário.
— Não se lembra de mim, sr. Cunningham? Sou Jean Louise Finch. Uma vez, o senhor nos deu um saco de nozes, lembra?
Comecei a sentir o constrangimento de uma pessoa que é ignorada por alguém que conhece.
— Walter é meu colega na escola. Ele é seu filho, não é? — insisti.
O sr. Cunningham concordou com um leve gesto de cabeça. Ele realmente me conhecia, então.
— Ele é da minha turma e é muito bom aluno. É um bom garoto — acrescentei. — De verdade. Uma vez nós o convidamos
para almoçar conosco. Talvez ele tenha falado com o senhor sobre mim; uma vez dei uma surra nele, mas ele não ficou com
raiva. Diga que eu disse “oi”, está bem?
Atticus tinha me ensinado que era educado conversar com as pessoas sobre coisas que fossem do interesse delas, e não do
seu. O sr. Cunningham não demonstrava nenhum interesse no filho, então agarrei-me ao problema do morgadio, num derradeiro
esforço de aproximação.
— Morgadio é um problema — considerei e, aos poucos, notei que estava falando com o grupo inteiro. Os homens
olhavam para mim, alguns boquiabertos. Atticus tinha parado de insistir com Jem e os dois estavam de pé ao lado de Dill.
Estavam tão atentos que pareciam fascinados. Até Atticus estava de boca aberta, atitude que uma vez ele disse que era falta de
educação. Nossos olhares se cruzaram e ele fechou a boca.
— Bom, Atticus, eu estava dizendo ao sr. Cunningham que morgadios são um problema e tal, mas que você disse que não
era para se preocupar, às vezes demora muito mesmo… e vocês iam resolver tudo.
Aos poucos eu fui ficando sem palavras, pensando na idiotice que eu tinha feito. Morgadios pareciam um tema bom apenas
para conversas na sala de visitas.
As gotas de suor começaram a se acumular na minha testa, eu aguentava qualquer coisa, menos um bando de gente me
olhando. Eles estavam imóveis.
— O que houve? — perguntei.
Atticus não respondeu. Olhei para cima, para o sr. Cunningham, que também estava impassível. Então ele fez uma coisa
estranha. Agachou-se na minha frente e me segurou pelos ombros.
— Direi a ele que você mandou lembrança, mocinha — ele disse.
Em seguida levantou-se e fez sinal com a mão.
— Vamos indo, rapazes.
Da mesma maneira que chegaram, eles entraram um por um em seus calhambeques. As portas bateram, os motores
engasgaram e eles foram embora.
Virei-me para Atticus, mas ele tinha ido para a cadeia e estava com a testa encostada na parede. Fui até lá e puxei a manga
da camisa dele.
— Agora podemos ir para casa?
Ele concordou, pegou o lenço no bolso, passou no rosto e assoou o nariz com força.
— Sr. Finch.
Era uma voz rouca e baixa, vinda da escuridão acima.
— Eles foram embora?
Atticus deu um passou para trás e olhou para cima.
— Foram. Vá dormir, Tom. Não vão incomodá-lo mais — disse Atticus.
De outra direção, outra voz cortou a noite:
— Pode ter certeza de que não vão mesmo. Eu lhe dei cobertura o tempo todo, Atticus.
O sr. Underwood estava debruçado na janela do Maycomb Tribune com uma espingarda de cano duplo.
Minha hora de dormir já tinha passado fazia tempo e eu estava ficando cansada. Tive a impressão de que papai e o sr.
Underwood iam conversar pelo resto da noite: um na janela em cima, o outro no chão. Finalmente, Atticus voltou, apagou a luz
em cima da porta da cadeia e pegou a cadeira.
— Posso levar para o senhor, sr. Finch? — perguntou Dill. Ele tinha ficado quieto o tempo todo.
— Ah, obrigado, filho.
No caminho para o escritório, Dill e eu fomos atrás de Atticus e Jem. Dill vinha carregando a cadeira, mais devagar.
Atticus e Jem estavam bem à nossa frente e achei que Atticus estivesse dando uma bronca nele por não ter voltado para casa.
Mas me enganei. Quando passaram sob a luz de um poste, Atticus colocou a mão na cabeça de Jem e acariciou seu cabelo, o
único gesto de afeto que se permitia.
continua página 108...
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Leia também:
O Sol é para todos: 2ª Parte (15b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
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